
Liam o mesmo livro. Não sabiam disto,
contudo: ambos antípodas nos lados de trilhos do metrô, separados por metros, não
se percebem... Cada um com sua leitura e ocupações diversas: ele um tanto
desatento, passeava os olhos pela mesma página, lia repetidamente o mesmo
parágrafo, observava a capa em bis, queria um cigarro ou uma bala, quiçá os
dois... Ela concentrava-se numa passagem do livro, aquilo que lhe trouxera um
estranho arrepio, uma inédita vontade de fumar ou de comer algo doce, olhou o relógio
e analisou demoras em sua habitual condução... O sistema de som anuncia atraso
numa das vias, ele bufa, observa as horas numa das telas da estação, deduz não
conseguir chegar a tempo hábil de uma reunião marcada, resolve procurar uma
bebida, decide-se por um café preto num médio copo plástico... Ela lamenta não
fumar, tira umas balinhas da bolsa, desembrulha um, marca a página lida com o
papel que sobrou; olhando pra frente, descontenta-se pela cafeteria estar tão
distante. Ainda não se percebem...
O livro dele estava fechado, acabara de
comprá-lo num sebo, edição antiga, folhas cheirando a mofo, imaginava ser uma
raridade, “o último deste exemplar foi comprado a pouco por uma jovem...”,
lembrou-se de cada palavra do vendedor... Ela, em êxtase por ter aquela obra
que tanto desejara, não via a hora de chegar em casa, tirar os sapatos, fazer
um chá verde, relaxar em sua preguiçosa e começar a devorar cada página,
inebriando-se do odor velho de cada uma delas, o prazer do intemporal destino
que alguns objetos saboreiam... Leu uma dedicatória encontrada em uma página, “De
Gui para Cicí, maio de 1973”. Achou infantilmente bonito os apelidos, a forma
de se tratarem, não sabia quem era o masculino e o feminino, mas torceu pro
mencionado Gui ser a mocinha da história, “combinaria mais comigo, sendo meu
nome Guilhermina...”, divagou-se sorrindo... Ele pegou o livro do mármore
balcão da cafeteria, examinou-o mais uma vez, cheirou-o num repeat já exegese,
pediu mais um café, calculou que o atraso do metrô iria retardar a entrega do
trabalho acadêmico, premiou-se com um cigarro, logo reprimido pelo guarda
municipal e devidamente apagado num vaso de plantas próximo. Riu daquilo tudo
sem saber ao certo porquê...
Contrariando algum capítulo de novela, o
tempo passou sem um ditame de “meses depois...” e os metrôs finalmente chegam.
Ambos se tranquilizam: ele por não querer prejudicar o seu grupo da faculdade,
ela por saber que seu tranquilo e utopizado momento íntimo com o livro recém-comprado
dependia apenas de variações do movimento uniforme do trem... Cotovelos e
empurrões, por sorte conseguem lugar para sentar. “Janela, que bom!”, a moça exclama
em silêncio. Acomoda sua bolsa num canto; ele contenta-se com o lugar ruim que
lhe era concebido. Os metrôs ainda demoram um tempo para começar suas epopeias
diárias, muitos entram, exprimem-se, rostos que pareciam aquele famoso quadro
operário da Tarsila do Amaral, mas numa certa desordem nada constelar... Ela
olha o teto do local, os transeuntes, um rapaz de boné que mexe em seu
minúsculo aparelho de som. Como é de seu hábito, tenta driblar o contorcer
natural e ver no visor qual música o dito escuta. A moça quase entra em
faniquito ao descobrir que o estranho ouve Cícero, “Açúcar ou Adoçante”.
Julgou-o ser seu príncipe encantado, embora não tenha gostado da sua barba por
fazer – “quem neste mundo, além de mim, ouve Cícero?! Meu Deus, Cícero é meu,
ninguém tem o direito de ouvi-lo, só eu...”, soberanou-se. No outro metrô, para
azar dele, ao seu lado senta-se uma velhinha de chapéu e um perceptível mau
hálito. Tenta puxar assunto, ele desvia olhares como uma estratégia de guerra.
Olha para a janela defronte, tenta ler o que há no outro vagão... Ainda não se
percebem.
Os metrôs movem-se, a inércia age como
ondas diante um mar de gente, murmúrios como um estranho marulhar ritualístico:
broncas, ofensas, palavrões, discursos sobre as más condições do transporte
públicos, lamúrias e lamentações, crianças chorosas aqui e ali... Ela abre o
livro, ama ler seu parágrafo inicial, “muitos anos depois, diante do pelotão de
fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota
em que seu pai o levou para conhecer o gelo...”. Olha para o rapaz do boné, que
freneticamente aperta botões de seu Ipod. “Por que este cara fica mudando de
faixas o tempo todo? Cara, ele tá ouvindo Cícero!!! Quem, em sua sanidade
normal, ousaria pecar ao não se deleitar duma faixa inteira e interrupta de
Cícero?! Ai, devia ter posto meu batom... Aposto que é só pose deste carinha
e...”. Hipnótica, ela enxerga algo pela janela. Ambos se percebem...
(Contrariando qualquer lógica do
escrito, recomendo, como trilha do encontro das personagens, ouvir em mantra “Pode
Ser”, faixa 05 do debút da Banda do Mar...)
Física newtoniana ou desígnios divinos,
Cupido ou o “S=so+vt” das equações dos encontros materiais, os vagões, em
processo duma desaceleração incomum, se encontram num ponto, culminando numa
pane no exato momento em que janelas se defrontam uma com a outra, o instante
hollywoodianamente necessário para que ambos se percebam, como já fora
mencionado... Ele a acha bonita, observa a coincidência dos livros, das
edições, das capas... Ela, embasbacada com aquilo tudo, cogita, doidivana, em
sair dali e correr atrás daquela figura que lhe parecia um ímpar espelho...
Respira, pensa esmiuçar um sorriso insinuante, congela num derrame qualquer. Ele
quer disfarçar o olhar de bobo diante aquilo tudo, não consegue. Admira mais
sua beleza do que a obra em comum, mas mantém o livro em haste como alguma
espécie de código. Definitivamente ela lamenta não ter passado batom, se sente
horrível, mas petrifica-se num magnetismo incompreensível... Alguns segundos
depois a solução se apresenta e os metrôs saem da estática. A visão de um do
outro se torna passado num passar fugaz, não podiam agir. Desesperam-se... Ele,
ainda muito atordoado, blasfema em palavrões audíveis, para horror da senhora
adjacente... Ela pondera, pensa como agir e então deduz as paradas em algumas
estações que o transporte, de praxe, faria. Se desse sorte dele não descer na
próxima e ainda observar a janela, quem sabe conseguiriam algum sinal de
proximidade... Pelos cálculos, isto seria em breve, não dava para sistematizar
muito... Numa loucura digna dos que ousam goetheanamente, ela pega o batom e
escreve na última página do livro, uma mera folha em branca aparentemente destinada
para estas emergências... Do nada, ainda abstraiu Caetano “e o meu coração
embora finja fazer mil viagens/ fica batendo parado naquela estação...”,
substituindo o “naquela” por “nesta” e desenhando uma seta - era uma aposta,
esperava que ele entendesse... Os metrôs param, ele se infla duma esperança de
ainda ver a garota, observa a janela e vê o recado escrito numa folha de livro.
Inclinou-se para ler, não se deu em abstrações ou surrealismos, mas entendeu...
Ao ver a figura saindo de seu campo de
visão e indo em direção ao desembarque, ela também fez o mesmo, acotovelando-se
na multidão como um bom halback de futebol americano... Ele, em mimetismo,
correu entre empurrões, numa disritmia longe de sua racionalidade cética,
saindo do vagão e procurando no diluviano populacional aquela que seria talvez
o sentido de existir das suas pupilas... Ela se desvencilha dos empecilhos
alguns segundos depois, apura sua visão atrás dele, procura-o entre todos,
deseja uma escuridão de cinema oriundo de uma iluminação particular de filme,
um holofote apenas nele, queria somente aquilo... Encontram-se...
“oi...” – tímido.
“olá... oi” – ofegante.
“pois é... Cem Anos, né...”
“é, a mesma edição e tudo...”
“Guilhermina...” – estende a mão.
“Cícero...”
Ela ri dos destinos...