terça-feira, 2 de junho de 2009

PASSO A PASSO PARA SE DESCOBRIR O AMOR

Assim descobriram o amor:

Morava sozinho e fumava duas carteiras de cigarros baratos por dia. Tinha uma leve verruga no nariz desde a nascença, olhos verdes e escrevia poemas. Seu pequeno conjugado dispunha de um quarto e uma sala onde se dividia a cozinha por um lençol estendido num varal. Trabalhava num emprego público, destes conseguido via concurso. Mantinha a barba por sentir-se feio e de poucas namoradas na vida. Chamava-se Nelônio, mas adotara o Nê como signo para reconhecimento social...

Ela também morava sozinha. Já fizera aborto e gostava de chocolates. Não fumava e só bebia vinho tinto, um copo o suficiente. Já tivera cabelos ruivos, verdes, meio loiro e optara de vez pelos castanhos. Nem mais lembrava qual cor era o original... Gostava de Neruda e Quintana, mas abominava os concretos (“exceto Ferreira Gullar”, frisava). Porem não era muito de ler, só dois ou três por ano (nem sempre obedecendo esta ordem...). Assistia novelas na TV e pintava as unhas de negro. Seu lar tinha dois quartos, um seu e outro para visitas casuais. Não tinha fé, mas mantinha um Santo Antônio de rosto descascado e alguns anjos como bibelô. Suzana no RG, Sú para os amigos. Detestava tal nomenclatura...

Viram-se pela primeira vez através de um amigo em comum, um ex da garota. De começo não se bateram: achou-a baixa demais, ela encrencou com a barba do sujeito. Mas concordaram que foi uma boa o cantor da boate tocar Jorge Ben. Nem chegaram a trocar telefone e em meio tempo ele esqueceu o nome dela, logo nem lembrando mais do seu rosto. Ela, ao contrário, fechava os olhos e lhe vinha à imagem daquele desgrenhado, o fumante de mata-ratos... A sua justificativa para tal opção de cigarros fora inesquecível para ela: “Fumo porque sou meio masoquista - adoro a taquicardia casual, a vertiginosa queda de pressão, a tontura inevitável...”. Achou lindo aquilo, meio parnasiano, meio Augusto dos Anjos. Anotou a frase na sua agenda e de alguma forma aquilo se tornou iconoclasta para as lembranças daquele momento... Passou-se um mês, uma primavera, algumas chuvas e ainda sim não se viram. Neste meio tempo houve problemas no encanamento da casa dele e ela teve que hospedar uma tia chata que viera do interior a tratamento médico...

Nê começou a sair com uma mulher de nome Marly. Sú tentou reatar namoros antigos, inclusive com Rondinelli, o tal amigo em comum... E foi durante um destes encontros sem procedentes que se bateram novamente. Ele sabia que a conhecia de algum lugar. Ela julgou a garota que andava ao lado dele, desdenhando-a. Foi Sú que falou o primeiro “olá, quanto tempo...”. Ele respondeu o mesmo, contudo sem o “olá”. Nê demorou em lembrar o nome dela, porém a garota recitou na mente a frase dele que a marcou. Tendo Rondinelli como cicerone daquele instante, acabaram tomando umas cervejas e foi ali que Nê percebeu Sú pela primeira vez... A voz da garota era suave, de agradável audição. Suas conversas cheias de conteúdos, um refinamento pra falar as palavras, apesar de errar nos oblíquos. Falava e balançava os cabelos, ou então brincava com os pequenos fios de sua nuca, como se num jeito bem inocente. Usava pouca maquiagem, um brilho nos lábios, bem tênue. Pouca sombra nos olhos, o que realçava mais ainda seus olhos ora azuis, ora verdes cristalinos. Usava uma camiseta branca, estilo Hering, e um casaco amarronzado por cima desta. Um médio brinco de argola e uns dois anéis na mão direita. Quando a cena acabou, trocaram telefones.

Ele só ligou depois de cinco dias. Pensou antes em terminar com Marly aquilo que chamaram de namoro. Sú estava ansiosa, esperava a cada momento pelo toque do telefone. Nê vasculhou nos bolsos o papel com o número, talvez por isto tenha demorado mais tempo que o previsto para fazer a ligação. Falaram os primeiros alôs, mas logo veio o silêncio sentenciador. Foi ela quem puxou assunto, destes do tipo “como a noite está estrelada, né ?!”. Ele perguntou qual era o lance dela com o Rondinelli. Ela gostou da pergunta e respondeu que era carência, coisa a toa, um “casinho”... Ficaram exatamente 59 minutos se falando. Sú desligou pensando em casamento. O homem foi escovar os dentes...

Passaram mais cinco dias sem se falar – ele tivera que fazer uma viagem a serviço. Ela pensou que havia pintado desinteresse por parte dele. Espantada ficou quando se viu chorando. E então rodopiava pela casa lendo aquela frase, “fumo porque sou meio masoquista...”, repetindo várias vezes enquanto ouvia “It’s Very Nice Pra Xuxu”, dos Mutantes. Nestes dias choveu, não houve sol e o joão-de-barro, que acabara sendo seu único confidente, resolvera não aparecer para terminar sua obra nos galhos do flamboyant no quintal da vizinha. Sentiu-se tão só...
Mas foi num dia ensolarado, segunda ou terça - não lembrava - pela manhã e o com o joão-de-barro novamente a enfeitar a árvore que ilustrava a janela do seu lugar de dormir, um destes dias de se encontrar o amor, neste momento em que tudo conspirava, que o telefone tocou. Disse um alô de ansiedade, de quem aguarda, de quem quer o exato alô medido, a voz rouca que respondia, tênue e agressiva tonalidade e palavras soando meio azedume, meio banho de cachoeira... Nê pergunta se incomodava, ela responde que quase onze não era cedo. Ambos riem, um riso de quem não se conhece, completamente insosso. Ela puxa o telefone para perto da janela e de lá observa o pássaro terminar sua construção. “Você tá ouvindo o quê aí ?”, pergunta Sú, que percebera um som que quase incomodava o colóquio. “Ah, é Fela Kuti... “Water No Get Enemy”...”. Ela nunca havia escutado falar em Fela Kuti, nem sabia quem ele era. Não sabia se era homem ou mulher, banda ou orquestra... pra falar a verdade, ela nem sabia porquê havia perguntado aquilo – nem prestara atenção no som. “Eu gosto de Mutantes...”, disse timidamente, como se fizesse questão de mostrar seus conhecimentos... ou então para meramente fazer alguma associação com a música que o outro ouvia... “Mutantes é bom também...”, ele disse. Ficaram quietos depois disto. Um silêncio perturbador, uns quarentas segundos... “Então...”, um pergunta. A outra voz responde igualmente. “Vamos sair ?!”, a sentença parecia tão simples, mas causou formigamento na garganta daqueles amantes. “Bem, pode ser...”, “Quinta tá bom pra você ?!”, “Quinta agora ?! Ah, pode ser sim...”, “Então tá... Quinta-feira. Combinado?!”. Concordou.

(2007/2009)

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