Colocou-as
bem no fundo da bolsa – afinal alertara o horóscopo: “Ótimo dia para perder as
chaves de casa”. Tinha trauma disto. Afinal, já perdera mais de uma e sabia o
quão chato era todo aquele lance protocolar de chamar chaveiro e cadeados... Ia
sair de sua moradia sem um porquê aparente, talvez visitar uma amiga ou
procurar um novo apê, mas sentia arrepios e um aviso de que não deveria ter
saído dos cobertores. A manhã estava fria, ótima pruma sessão Hitchcock ou
simplesmente divagar, nua, poemas em seu caderno de anotação....
Resolveu,
contudo, sair – sem antes conferir pela enésima vez se o molho de chaves estava
ou não no canto posto. Sim, estavam... Sorriu como um smile de rede social,
passou seu batom mais vermelho, mandou um beijo pro reflexo do espelho oval do
banheiro, onomatopizou algo e trancou a porta. Esperou um tempo no ponto, pediu
ônibus, abriu a bolsa pra entregar as moedas ao cobrador, apertou com força as
chaves. Observou a paisagem, o passageiro ao lado, o pastor que pregava
apocalipses, leu cartazes e outdoors... Desceu, pagou no cartão uma blusa que
paquerava à meses, tomou um sorvete, depois um outro, salivou por um expresso,
desistindo logo em seguida... Caminhou pela galeria, olhou vitrines, admirou o
violinista que se apresentava na praça de alimentação, atendeu o telefonema de
uma amiga, reclamou pra si própria dos preços e, abrindo a bolsa, tentou tatear
pelas benditas chaves. Lá ainda estavam, aliviou-se rindo por ainda crer em
oráculos de pasquim...
Distraiu-se,
desencanou durante o dia todo: nem lembrara do que fizera, tinha divagações e
ria daquilo tudo. Tudo é tão corrido que os momentos passam como flash, como
quem aperta o botão de acelerar de um DVD... Na volta de casa, ainda pensou em
adotar um gato que vira vadio pelas ruas. Contudo policiou-se, lembrando das
proibições da sindicância de seu prédio. Sentiu pena do indefeso felino,
fez-lhe um carinho, pensou batizá-lo de Jim e mandou-lhe um tchau,
denominando-o assim.
Chegou
estafada em casa – ninguém aguenta congestionamento e ônibus lotado. Como
selvagem urbana que é, reclamou da metrópole e sentiu saudade de quando era a
filha de alguém e não mero número de RG... Enfim chegou no prédio, saudando o
porteiro que conferia os resultados de jogos de azar no chiado de um velho
rádio a pilha. Apertou levemente o 6, tendo que acionar novamente o botão prum
melhor funcionamento. Pensou numa nova combinação pro batido Miojo de jantar,
talvez mais cebolinha, açafrão talvez... Chega no andar, de frente pra porta,
soltou ar pela boca de alívio, meteu a mão na bolsa... Espanto, desespero, um
vasculho mais incessante, sudorese na testa: onde foram parar estas malditas
chaves ?! Acocorou-se e despejou todo o conteúdo da bolsa: celular, kit de
maquiagem, filipetas recebidas de anônimos, recibos... Nada das chaves !!! Olhou
novamente pra toda aquela bagunça minunciosamente, concluindo enfim aquela
repetida ordem. Quis chorar, chamou-se de besta três vezes seguidas, tentou não
descontrolar, mas descontrolou-se. Espancou a parede, encostou-se nela, intuiu
que deveria haver algum gnomo nefasto que rouba chaves sem mais nem porquê... Perguntou-se
como aquilo ocorrera, como mero ou meros instantes de distração poderiam ser
tão decisivos pra tal sumiço. Pensou em repetir o processo e conferir
reconferir ad infinitum... Chamou-se de besta novamente, adjetivando-se mais e
mais com outras nomenclaturas e palavrões. Cambaleada, dando-se por vencida
naquele martírio, aportou-se em via crúcis na casa de um vizinho amigo de
longas datas. Amanhã seria aquela enfadonha burocracia de chamar chaveiro e
cadeados...
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