Não confundir com aquele conto de Bukowski...
Era a garota mais bonita, a garota mais bonita...
A mais bonita, uma beleza simples, pincelada. A garota mais bonita, era apenas uma garota, a mais bonita da cidadezinha em que nasci e agora regressava para procurar emprego. Não havia empregos, mas ainda existia a garota mais bonita. Não era tão bonita como dantes, engordara ou sei lá. Existiam outras mais bonitas, algumas colegiais, nas praças ou no parque que visitava a cidade. Porém ainda era a mais bonita, a garota mais bonita...
Ela fazia-me lembrar poemas de Castro Alves. Ou cachos de uvas, deusas do Renascimento, ninfas de mármore... Não lembrava mais se era loira ou ruiva. Mas certamente era tintura a morenice atual. A garota mais bonita não tinha esses seios de agora. De conservador apenas seus olhos de amêndoas, únicos. E neles tinham óculos de grau, armação singela. A garota mais bonita, quantas lembranças: ainda lembrava-me das histórias de Pollyana Moça que a professora lia, ou das páscoas, dias de luas e chuvas. Recordo as poças d’águas, o barquinho de papel, “o que serei quando crescer ?”. A garota mais bonita agora usava pulseiras indianas e brincos com adornos tribais.
Passou por minha frente, não disse olá ou nada que ferisse seu ar de tão soberana. A garota mais bonita, a mais bonita. Não sei se descreverei com real louvor tudo o que ela foi. Era destas belezas de ganhar concursos, de miss mesmo. Ainda é vago, mas deixarei do vago o sucinto. Uma daquelas de causar amor platônico, destas que um dia mereceriam uma imortalidade de cancioneiros e poetas populares, suicídios dos tresloucados... E passou por mim, assim sem um cumprimento ou arquear de sobrancelhas.
A garota mais bonita, mais bonita...
Então a olhei secamente, como se lhe pedisse um segredo. Seus lânguidos passos continuavam, continuaram até o sumir de minhas vistas. Resolvi segui-la sem saber porquê. Na cidade já havia fumaça, mas velhinhos ainda jogavam dominó sob a sombra dos pessegueiros. A mais bonita trazia consigo uma bolsa de tiracolo, não parecia perceber a perseguição. Na cidadezinha também já tinha sinais de trânsito e homens que vendiam ouro em enormes plaquetas penduradas no corpo. Ela parou numa lanchonete não muito tradicional e de design arrojado. Sentou-se, procurei uma cadeira e fingi ler o jornal. A garota mais bonita pegou um livro da sua bolsa, um destes de bolso mesmo. Não conseguia ver o título, mas deu a entender que ela não se interessou pela leitura. Uma recepcionista chegou perto dela e ela fez um pedido. O mesmo aconteceu comigo, mas eu não pedi nada. Olhou o relógio várias vezes, aparentava impaciência. Finalmente chegou-lhe a limonada e, quase que imediatamente, um senhor. Sorriu e o senhor sentou ao seu lado. Acariciava-lhe uma das mãos, não sabia se era pai ou amigo. Talvez amante, a garota mais bonita...
Usava pouca maquiagem. Somente uma tenaz quantidade de pó-de-arroz nas bochechas, a boca virginal e vermelha, pura de qualquer artificialismo. Nunca percebera que ao lado de seus lábios havia uma pinta. Ou fora feita com algum lápis ou minha imagem de infância refletia-se difusa. A garota mais bonita (deveria classificá-la mulher ?!) sorveu minúsculos goles do copo, olhava e concordava com todas as falas de seu acompanhante. Ele era calvo, constatei após a retirada de seu chapéu. Pô-lo na mesa, onde também estava o abandonado livro. O senhor pigarreou, olhou as horas e virou a cabeça para um lado e outro.
Levantaram, ela primeiro. Colocou o livro na bolsa e tirou uma carteira, dela algumas cédulas amassadas. Tomou a bebida quase por inteiro e colocou o dinheiro embaixo do copo. O senhor pegou o chapéu (destes de gangster) e levou-o à cabeça, cobrindo toda a superfície nua. Tirou dos bolsos de seu paletó um molho de chaves e ambos dirigiram-se a um carro, um Dodge, creio. Saíram mansamente, nem gravei a última visão daquilo tudo.
A mais bonita, garota mais bonita, apenas uma garota. A garota mais bonita.
Gaguejava mentalmente estes palavreados...
A garota mais bonita.
Garota...
A garota mais bonita.
(2006)
2 comentários:
Grande Mateus, vou lhe confessar uma coisa. Também tive uma "garota mais bonita" a vagar em meu pensamento adolescentinfantil. E hoje ela sai com um "senhor" com seus "dodges" com rodas cromadas. mas ainda, apesar de tudo, continua a ser "a garota mais bonita". E ela tem nome, o mesmo de antes, tem o mesmo olhar a garota mais bonita e ainda, sim, deve ter o mesmo cheiro daquela antiga garota mais bonita. Fantástico texto, mestre. Muito bom! (Germano)
Pois é, man...
Creio q todos nós já tivemos uma "garota mais bonita" a vagar por nossas vidas... O conto foi meio inspirado neste fato em comum. E minha geração de Escola Dinãmica dos anos 80/90 tb tinhamos nossa musa: a fofinha da Poliana Leite. Foi pra ela e pelas apaixonites juvenis q escrevi o conto...
Fico grato em tê-lo agradado e causado em vc esta sensação boa de deja-vu num conto meu...
Abraços !!!!
Postar um comentário