domingo, 20 de janeiro de 2008

O MENINO AZUL

Esta história eu ouvi da minha avó, que diz ter escutado da sua avó,e esta da avó de minha bisavó. Apócrifa ou não, lendária talvez, contudo seduziu-me pela beleza e por alguns trocados eu contá-la-ei para todos vocês... Sim, sim, isto, isto, muito carecido e agradecido... Por favor, ajudem este pobre arlequim que aqui vos pede pela migalha esmolar de cada dia... Muito obrigado, muito obrigado ! Todos são servos de Deus e que o grande São Bastião, que vive abraçadinho com o louvado Padim Ciço, os abençoe e protejam-nos para todo o sempre...
Bem, dizem que pelas bandas do sertão vivia um humilde garoto cujo nome fora esquecido por todo o sempre. Filho de família de tamanha pobreza, um pai, uma mãe, alguns irmãos mortos e dois cachorros esquálidos e cheios de nobreza no olhar. Pois este menino, meninote mesmo, mirrado e de shorts, pés descalços e bodoque, tinha alguns dons especiais. Um deles era de, por pura marotice, transformar pedras em pássaros. De todos os tipos e jeitos, sabiás, quero-queros, bem-te-vis... Ele ia até o riacho seco e lá catava alguns pedregulhos. Do nada, fechava os olhos e supimpa ! Uma revoada de pássaros que voavam e cantarolavam pelos cantos em desencantos dali. Todos se assombravam pela repentina chuva de pássaros que por aquela região seca havia de aparecer. O menino escondia de todo mundo este milagre que poderia ocasionar somente com o poder de suas mãos. Quer dizer, escondia de todos, menos de Piaf, a minha tetravó, nome de cantora francesa que o pai dela escutava num gramofone comprado das mãos de uns ciganos que por ali sempre passavam.
Pois então... Piaf, minha finada tetravó, guardava este segredo e via, com os próprios olhos, ao milagre acontecer. Achava-o lindo ! Piaf, do canto de pardal... Dizem os mais antigos que minha tetravó nasceu cantando. Talvez fosse a sina do nome, concordam ?! Sempre fora a primeira solista do coro da igreja, destaque dos reisados, atração das quermesses de São Pedro... Mas voltando ao menino: outro de seus dons era a visão que ele tinha de Omolu, orixá Senhor das Mortes. Todos os dias, numa plantação de mamona existente entre cercados do povoado, ele conversava com a entidade. No começo achava-o engraçado e belo com sua palha-da-costa como vestimenta, contas em vermelho, preto e branco. Ignorava sua divindade, tinha-o como uma excêntrica figura humana. Omolu dava-lhe pipoca e ensinava ladainhas que deveriam ser invocadas em momento de luto. Este segredo ele não contou a minha tetravó Piaf. E nem precisava: logo todos perceberam o colóquio travado entre o menino e o vazio. Começaram a duvidar de sua sanidade. Mas logo concluíram se tratar de um fenômeno quando a população se via, todos sem exceção, às lágrimas diante da visão. Também foram de notar que o cenário iluminava-se duma luz azul proveniente dum feixe vindo do céu. Por este motivo passaram-no a chamar de “O menino azul”. Por pedido do orixá, o menino dizia aos aglomerados que conversava com São Lázaro. Durante o verdadeiro mantra em que se envolvia o menino, minha tetravó rezava cabisbaixa e ,em êxtase, cantarolava canções em diversas línguas inexistente na cultura e sabedoria do local. Diante de tal canto, Omolu dançava sua opanijé e a atmosfera exalava-se de colônia e cheiros de flores. O espetáculo, milagre, sabe-se lá como denominá-lo, demorava umas duas horas e acontecia sempre nas segundas, durante o pôr-do-sol. O menino não entendia o porquê dos alvoroços e caravanas que ali se concentravam. Para ele era apenas uma brincadeira com um moleque travesso, vestindo uma roupa diferente e segurando o que o próprio dizia ser um “xarará”, mas que para o menino não passava de um chocalho de búzios.
Acontecido isto tudo, o povoado passou a ser freqüentada por vigílias que queriam devotar a imagem encarnada de santo. O menino assustava-se com aquilo tudo. Todos os dias no seu casebre de taipa era um fuzuê de romeiros em procissão, todos em busca de uma palavra ou de uma cura que o menino azul não sabia dizer ou fazer. Então apenas inspirava e concentrava-se, logo dizendo algo que soava como parábola ou premunição. Viu, por exemplo, a morte de mais de vinte pessoas, detalhando data, momento, situação e local. Em alguns mencionava até o motivo ! Aquilo só fazia aumentar o número de pessoas querendo comprovar tais milagres. O menino só queria brincar, fazer pedras transformarem em pássaros e em troca disto poder ver as calcinhas de Piaf. Minha tetravó fazia isto enquanto cantava “Non, je ne regrette rien”, a canção que embalava seus sonos. Claro que seu pai não a cantarolava no francês original, contudo balbuciava no dialeto que interpretava dos 78 rpm que detinha em sua casa.
Respeitavel público, aqui tenho que finalizar esta história e creio que vocês estejam muito curiosos para saber de tal fechar... Bem, não me vejam aqui como um mercenário mesquinho ou como este mal fadados e engravatados burocratas marajás que tudo têm, tudo podem... Se peço mais uns trocados não é para cachaça, pois deste mal já me livrou meu Nazareno Senhor !!!! Se careço de vintens é por causa da fome louca que atormenta este arlequim de lugar nenhum que aqui vem vos contar mirabulante, contudo verdadeira friso, história. Pois bem, aqui estendo meu chapéu para que nele brote a solidariedade em cada um de vós... Sim, sim, muito obrigado, sim, obrigado senhora... Não mereco tanto, mas agradeço ao coração de cada um que puderam colaborar com mais um esfomeado deste mundão de meu Deus... Em troca tenho que contar-lhes o final do quiprocó que aqui iniciei, sem ainda adiantar da conclusão...
Pois a fama do menino azul estendeu-se pelas cercanias e atravessou os montes, logo chegando ao mar. E assim viu-se inflacionado aquele flagelado vilarejo e grato estavam a pequena e única bodega, pois ali cresceram o número de fregueses, a delegacia que pode contar com presos e a igreja que, graças aos donativos de cada missa de domingo, conseguiu recursos para a reforma tão necessitada. Mas tudo aquilo trazia consternação para o menino azul. Passou então a desejar nunca mais a visita do moleque travesso com quem brincava nas tardes de segunda. Chegou então na plantação de mamona e lá invocou que ele sumisse. Omolu fez-se translúcido e indagou o porquê de tamanha ira. O menino explicou-lhe e mostrou o povoado seco na forma duma enorme tenda mercantil: imagens e santinhos sendo vendidos, o sua casa transformada num templário, a mera brincadeira dos dois encenando um palco de adorações e busca de milagres. “Não os condene...”, sentenciou o orixá, “... se buscam conforto, é porque assim precisam. Se procuram paz, é por causa da guerra que fez-se em suas vidas. Onde há missão há mudanças. E transformações são necessárias...”. O menino, tão laico de todo aquele proclamar, apenas achou bonito os ditos e chorou. Minha tetravó Piaf aproximou-se dele e enxugou-lhe a face. O menino permanecia imóvel, diáfano diante tudo. Pela primeira vez enxergava Omolu como um adulto, como um ser superior, figura distante. Também pela primeira vez teve medo. Soltando um urro surdo, do céu cravejou-se de borboletas noturnas de brilho descomunal, cósmico que tornou-se estrelas e pousavam nas mãos de cada um daquele lugar como uma lembrança, logo desfazendo-se feito areia. E então a luz azul tornou-se fogo, logo afastando o menino daquela paralisia. Dali passou a chorar feito a criança que era, recebendo em troca o afago nos braços dos pais. Do fogo fez-se fogueira e desta incêndio, queimando assim o mamonal ali existente. Do crespúsculo escuro então choveu pedras em brasas, algumas atingindo o corpo de muitos dos devotos. O menino azul pedia, numa prece muda, que aquele horror em apocalíptico deixasse ali.
E logo o menino percebeu que algo saia de seu âmago, de suas visceras, um calor, um bolor, algo motor em essência, sentiu dores, sentiu calma... E então sua essência desfazia da carne, logo tornando-o apenas carcaça. De si saiu um plasma de cores surreais, que assustaram a todos no povoado e provocaram o tremor nos pais que apenas seguravam um cádaver em couro e osso somente. Fora como se tivesse-lhe sugado o mais íntimo que ali havia, o menino azul então tornou-se num ser de luz que contornou-se em pomba, exalando um brilho visto em todos os cantos da redondeza. Omolu soltou um grito em iorubá, cantando como num kitolo... E de todos os cantos do planeta pode ouvir este pranto-banzo, um som que fez despertar em precoce (ou em prece), sem pressa e cheio de pureza, todas as flores que guardavam em si a potencialidades de outros ramalhetes, de mil estrelas, larva de vulcão... A luz azul, então, foi fraquejando, tornando-se inexistente e logo trazendo a noite ao local. Assustados, todos fugiram para suas casa e aos poucos os poucos fifós das casas foram desfazendo o brilho de astro. A localidade emudeceu e escureceu.

Passaram-se dias e anos, passou-se o tempo do esquecimento e de memorizar apenas as queimaduras de alguns, estas passadas de geração em geração como se um sinal. Minha tetravó Piaf conheceu meu tetravô Tertuliano, casaram-se e tiveram onze filhos, um deles meu trisavô Vavá, que dizem as más bocas que era lobisomem. Mas este acabou por casar com Violeta, que de tão fraquinha só deu a luz a uma única criança, meu bisavô Bartolomeu. Este casou num dia de São Pedro com minha bisa Isabel, a Bebé, ou Bebezinha do Beijú. Oito filhos depois, vemos meu avô Cilinho casando com Ninraguá, minha avó de origem paraguaia. Quatro crias, dois abortos espontâneos e mais um que morreu com três dias de nascido, e num dia de chuva e época de fartura, meu pai Tertin pediu a mão da filha do coroné Guarajubá, a mocinha mais linda da região, Maria do Céu.
E vim a nascer, crescer ao lado de meus irmãos, aprender a tocar viola e cantar cordel com Bitoba e ouvir histórias de minha avó Niná... Dizia ela que, mesmo depois de todo alarido, de toda esta quase peleja, da amnésia de muitos, mesmo depois de tudo isto, ainda continuava o garoto azul a visitar sua bisavó, minha tetravó Piaf. Com a mesma fidedignidade, mesmo local e horário, sempre, sempre o menino aparecia, as vezes em forma de passarinho, noutras de borboletas, algumas vezes de vento ou de redemoinho... E assim seguiu-se, de filho pra filho, até chegar a mim, que indo em muitas veredas, pareço escutar o uivo do maroto e o brotar de pássaros em pedra. Juro, juro meus queridos ouvintes e servidores destas caridades que me daram o que nutrir de corpo !!!! Eu vejo o menino azul em tudo o que há de bonito, numa nuvenzinha cinza de chuva, no brotar da flor de caruá, na macaxeira que nos alimenta, no sorriso de minha mãe que não vejo a mais de quatro anos... Também posso vê-lo nestes arranha-céus tão cheios de gente, neste asfalto tão marcado de carros, na fome quando me aperta o estômago, na esperança, na reza, no choro, no chiar do rádio logo no primeiro raiar de sol, nesta praça tão abarrotados de nordestinos como eu, nestas moedas e na minha maquilagem, no olhar daquele menino, vejo o menino azul que trouxe, num mesmo paradoxo, a morte e a vida para o local de minhas lembranças, de minha infância, feito poema, conto bom de contar, feito rima de repente, de cordel, feito canção de vó... Muito obrigado pela atenção de vocês, sigam suas vidas e lembram-se de escutar sempre a voz do menino azul, este que brota no coração de cada um de nós feito juá na terra seca... Vão com Deus e Padim Ciço, amém !!!!

2 comentários:

Anônimo disse...

Mateus, sem condições... De novo, o que é isso, rapaz? Existe palavra pra dizer tamanha beleza textual? Eu, sinceramente, desconheço. Mateus, queroentender este texto melhor. Conte-me. É ficção ou realidade? Piaf é mesmo sua parenta? Espero resposta... Abraços, seu discípulo Germano.

Mateus Dourado disse...

É tudo ficcional, cara...
Vi uma reportagem na Istoé sobre textos apocrífos q falam sobre a infância de Jesus e aí me veio a idéia. Depois quis representar o Nordeste e todo seu sincretismos semiótico e simbiótico...
Acho q fui feliz na missão, né ?!
Abraços Germanão !!!