domingo, 23 de dezembro de 2007

A CORDA PRO CORDEL

Para meu pai

Infância,
infantes.
Distância: distante...

A corda pra acordar,
Acordo cordado
A cor do corpo
A corda pro cordel...

Que é poema, isopor
De pôr e de usar.
Poema bom...
Poema de improviso
Poema de aviso
Poema pelo avesso...

A flor do caruá que enfeita a lapinha.
A jurema, unha-de-gato, são joão...
Flor de quiabento, ungüento minha macambira...
Leite do aveloz que faz ficar cego,
A barriguda que parece parir um mundo...
Chocalhar no andar mungido,
Do boi, do boitempo imemorial...
Coisa que, então, lembra meu pai.

A patativa no seu cotoviar,
O voar na beleza da caatinga verde,
Céu azul, nuvem negra carregada de chuva
Terra rubra, rachada de malva e sangue.

Cordel do bezerro e do bode,
Cordel do caboclo e da cachaça,
Cordel, da cor do tempo
Cordel do passa-tempo, passa-tempo, tic-tac...

Enquanto Deus,
Uma bailarina que dança no baile do tempo,
No compasso dos ponteiros,
Sapateando destinos
Ziguezagueando nos paralelos e paralelepípedos,
Perambulando pelas tabernas,
Procurando um xodó para ser feliz.

sábado, 22 de dezembro de 2007

FELIZ DIA DOS NAMORADOS

Desejar amar, desejar ser querida. Ela era velha, tinha mais de setenta certamente. Nem ela mesma sabia sua real idade, às vezes dizia ter menos, noutras mentia que tinha mais de cem.Desejava amar, desejava ser querida: em rugas e nunca um beijo dado ou recebido, nenhuma cartinha de amor, nem uma simples piscadela! Talvez já fosse bela na juventude, nunca se vai saber. Ainda maquilava-se. Carregadamente: mantinha muito rimel nos olhos, o batom num vermelho vulgar, quilos e quilos de pó-de-arroz nas bochechas cheia de traços... Usava os mesmo vestidos estampados com frutas tropicais. Os cabelos amarrados, unhas carcomidas, lavanda barata nos suores. Ia ao baile, mesma rotina de tantos anos. Casais envelheciam seus relacionamentos e ela ainda freqüentava o mesmo clube, sentava-se na mesa já cativa e pedia o sempre dry martini. Alguns velhinhos a chamavam para dançar, ela discretamente recusava. Queria rapazes, “brotos” como dizia.
Não percebia, todavia, que seus contemporâneos também envelheciam e que muitos amores do passado também estava grisalhos ou capengavam em suas bengalas. Orgulhava-se do pivô de ouro colocado às custas dos míseros centavos de sua aposentadoria. Naquele dia era um baile especial: era um sábado 12 de junho, dia dos namorados. Quantos dias como aquele já comemorara... Ou nunca comemorara, não tinha idéia de como dizer. Enfim, naquele dia tantos pares enchiam a quadra. E ela não gostava de lugares cheios: vai que o homem de sua vida esteja lá e ela não o encontrasse? Mas, como comecei a narrativa deste parágrafo: ela não percebia que o tempo passava para todos, inclusive para ela e para seus próximos.
Sentou-se na cadeira e todos a olhavam. Muitas vezes sentia-se como atração de um circo, tamanho era a curiosidade sobre sua figura. O garçom, um velho amigo, já trazia o pedido pueril numa travessa. “Será que nunca trocam os copos?”, pensou. Sorveu pouco e caçou quem deveria paquerar a principio. Era brincadeira entre os rapazes apostar quem a velha paqueraria primeiro. Encontrou um homem, faixa de quarenta e camisa listrada de botão. Mas reparara que em sua mesa havia uma bolsa feminina. Casado, confirmou-se logo quando alguém se aproximou dele. Uma mulher.“Lambisgóia!”, falou baixo.
O crooner anunciou que hoje só cantaria Nelson Gonçalves. E começou: “Boneca de pano/ Pedaço de vida/ Que vive perdida no mundo a rolar...”. O cantor parecia bêbado, a banda idem. Casais começam a lotar o palco em danças. A velha bebeu toda a bebida num só gole, olha e procura alguém solitário. Apesar de católica fervorosa, permitiu-se dizer um palavrão. Pegou um pequeno espelho de sua bolsa e viu-se como deveria se olhar: velha. Percebeu que alguns riam de sua desgraça, a todos quis amaldiçoar. Levantou a mão pediu uma segunda dose. Sentiu calor e tirou da mesma bolsa um leque exalante da mais oculta naftalina. Leu a faixa escrito acima do palco: um FELIZ DIA DOS NAMORADOS em vermelho, uma mensagem em aspas e vários balões formavam um coração ao lado do pano estendido. Alguns já murchos, percebeu.
Um senhor aproxima-se. Usava cachecol, apesar da alta temperatura. Tinha bigodes brancos, um chapéu-do-panamá já em desuso, mascava um nervoso chiclete. Pediu para sentar ao lado da velha, tinha elegância nos modos. Perguntou se ela não lembrava dele. Disse-lhe um confirmador não. Então o velho renovou a pergunta num “Tem certeza que não ?”. E ela, “Definitivamente não...”, embora não tivesse certeza da resposta: aquele castanho no olhar pareciam-lhe familiar... Ele então se revelou um antigo colega, dos tempos de ginásio. A velha disse “Mas é você mesmo !”. Aí percebeu que estava velha mesmo. O senhor ajustou seu óculos e disse que o tempo não passara para ela. “Até parece uma boneca de porcelana...”, mentiu sinceramente. A velha sorriu e exibiu o seu pivô de ouro. Logo de cara o velho declarou-se viúvo.“Há cinco anos !”, ressaltou com entusiasmo. A velha tentou não gostar da conversa, mas no fundo achou-o atraente. Talvez fosse este seu amor platônico de normalista. “Nem queiras gostar de mim/ Sem que eu te peça/ Nem me dê nada que ao fim/ Eu não mereça...”, a voz do crooner era visceral. O velho disse que esta era do seu tempo. Ela não queria lembrar o quanto estava velha. Então o senhor proclamou que Nélson Gonçalves que era cantor de verdade, o resto tudo era balela. Ela concordou balançando a cabeça, não sabia se dizendo sim ou não. “Tem um cantorzinho metido a bosta de hoje que canta requebrando...”, disse o senhor. Logo completou que requebrar era coisa de maricas. A velha achou-o vulgar no comentário. Ele perguntou se ela não queria algo. Disse não mas logo depois pediu outro dry martini. Veio-lhe a cabeça que só tinha dinheiro para dois copos e que era sempre bom abusar de que oferece um a mais. O garçom trouxe a bebida pedida e uma xícara de café. O café fora pedido dele. Então o velho tirou um cantil cromado, destes de uísque, e depositou o conteúdo dele na xícara. “Uísque só bebo dos meus !”, disse. Não entendeu a alquímica mistura, mas concordou que cada um com sua mania.
O senhor exclamou ao ar “Dia dos namorados, não é ?!”. A velha nada disse. “Antigamente eu costumava dar uma rosa para minha finada esposa nestes dias...”, continuou. Não parecia nostálgico. A velha olhou para o homem de quarenta para quem havia olhado antes. Pensou o quanto ele era bonito. Depois relutou e concluiu que ele era simples. “A juventude nos torna belo !”, findou em pensamentos. O senhor pigarreou, pegou um pano e limpou a face. Disse o quanto ela era graciosa nos seus tempos de colégio. “E ainda continua...”, malandro desta vez. A velha corou-se, mas não se percebeu pela quantidade de pó me seu rosto. Resolveu abanar-se novamente. O velho aproximava-se cada vez mais, estavam quase ombro a ombro. “Nunca fui beijada !”, disse em instinto.
O senhor, então, franziu a testa. Parecia ter escutado revelações de uma Nossa Senhora. “Não creio...”, falou. Ela procurava algo em vergonha. “Mas quer, certo ?!”, insistiu o velho. A velha não sabia o quê responder. Quis a boca do homem de quarenta, não o daquele que agora estava ao seu lado. Coçou a nuca, olhou os poucos casais que ainda haviam, o homem de quarenta já fora embora. “Tenho um bangalô aqui próximo. Você quer ir comigo ?!”, perguntou o senhor. Engasgou um pouco, alisou a medalhinha de Santo Antônio que mantinha no pescoço desde criança. Lembrou-se que era mais de meia-noite, já estavam no dia 13, dia do santo. No mesmo instante o senhor disse que estava disposto a casar novamente. Então passou os dedos pelos ombros nus da velha. Ela ficou arrepiada, mas não esboçou recusa alguma.
O mesmo garçom dissera que tinham que fechar o clube. Os músicos desmontavam seus instrumentos, o local recebia as primeiras faxinas. “Tomou alguma decisão ?!”, o velho parecia impaciente. A velha que desejava amar, que desejava ser querida, a velha que tanto recusara outros convites idênticos a este, a velha que cansara de chegar sozinha em casa e deitar-se após tomar um analgésico para relaxar seu intestino, a velha que se viu velha, a velha que agora andava de mãos dadas com o senhor viúvo. Enamorada, entregou sua velha virgindade no bangalô e agora não mais teria companhia para os últimos bailes que a vida lhe ofertaria.

terça-feira, 18 de dezembro de 2007

O INÙTIL

E lá vinha o inútil. Caminhava placidamente pela casa, já eram onze da manhã. Acordava com o apitar da panela onde se cozinhava o feijão. Tinha 38 e um três-oitão guardado numa caixa. Nunca casara e nem apresentava suas namoradas ou casinhos. Cultuava uma barba e gostava de Vivaldi. Morava com a mãe, uma senhora de cabelos violetas e que mancava de uma perna. Esta ficara viúva não tinha nem dez anos. Desistira de usar roupas em luto e arranjou um romance. Vivia há nove anos com um gajo. Na verdade mantinha-o há mais de quinze, num mister de adultério conjugal e fantasias sexuais.
E lá vinha o inútil. Tinha um curso de graduação, mas por opção não trabalhava. Acreditava no seu talento medíocre de ser um poeta. “Dos parnasianos...”, declarava com o lápis em haste. Já publicara alguns em pasquins sujos, muitos com o pseudônimo “Arlequim tosado”, título de um de seus versos. O padrasto achava que ele era pederasta apenas por se declarar poeta. E o inútil sentia ódio do cara, por isso tinha o revolver guardado entre seus materiais pornôs.
A mãe insistia para ele fazer um concurso público, aulas de inglês, uma droga qualquer ! Mas aquilo quebraria a rotina vadia do inútil. Gostava de dormir muito tarde e acordar mais tarde ainda. Na casa havia um computador. O inútil passava horas na Internet. Sempre bebia uma Coca enquanto isto. Curtia navegar na web, o mundo virtual era uma redenção para o pecado da preguiça: sentia-se feliz enquanto mexia por páginas de chat e sexo. Escrevia poemas pobres para garotas que ele nunca vira. Algumas gostavam, o que lhe garantia encontros. Em poucos rolava transa, mas por todas ele sentia um pouco de platonismo. O padrasto jurava que ia matá-lo um dia. O inútil não via a hora de encravá-lo de balas...
“Isto não pode continuar assim...”, reclamava o padrasto.
“E o que eu vou fazer ?!”, dizia a mãe, enquanto limpava a mão num pano de prato imundo.
“Ué, tu é a mãe, não é ?! Acha um troço aí pra este merda fazer...”
“Ele é artista...”
“Viado, isto o que ele é ! Viado !”
“Não, ele é poeta. Já me fez uns versinhos tão bacanas...”
“Poeta o cu dele ! Este vagabundo tá é buscando respaldo pra vadiagem dele...”
A mãe ficava quieta. O padrasto acendia um fétido cigarro. A conversa era a mesma desde o dia do retorno do vadio. Fizera sua faculdade fora de sua cidade natal, um canto tão isolado quanto tudo. Cidade de merda, gente de merda, pequena cidade que só tinha pompas ridículas e alcunhas mais absurdas ainda. Gostara da capital, as boates, os néons, a prostituta Amália com quem viveu uns anos... Ainda sonhava com ela, chamava-a de musa e para ela dedicava muitas estrofes. O inútil não se adaptou a capital. Sentia asma e saudades. Voltou para a montanhosa cidade pequena e seu fardo completou-se.
“Minha vontade é de dar uma boa surra de bambu nele...”, o padrasto retornando a conversa.
“Enquanto eu for viva ninguém bate no meu filho !”
“Tu é uma pulha ! Como é que tu deixa teu filho viver desta maneira ?! Sua rapariga, puta !”
Neste instante o inútil intervém, supostamente escutando toda a conversa:
“Tu cala a boca, seu maldito !”
“Digo é na tua cara, seu bosta ! Tu é um bosta, um grandíssimo bosta...”
O superlativo atinge o ápice nervoso do inútil e ele reage de maneira bruta. O soco sai de forma descarregadora.O padrasto cai, mas logo se levanta:
“Safado de uma égua, tu ainda vai pagar caro por isto !”
“Enquanto eu estiver aqui ninguém xinga minha mãe não ! Tá, eu sou um bosta ! Agora deixa minha mãe em paz. Vaza daqui !”
Agora a mãe aparece:
“Pare, filho ! Não fale assim com ele ! Tenho certeza que ele já se arrependeu de tudo o que lhe disse. Venha, meu marido, vou fazer-lhe um curativo...”
O inútil não entendia a submissão da mãe. Teria o amor tal poder de cegueira ?! Amália era justamente o oposto: graças a ela entendia melhor o mundo, a compreensão era uma expressiva filosófica. Amar não pode ser sinal de regressão. Aquilo não era amor...
Então o inútil entrava no quarto e ligava seu computador.
A mãe disca alguns números.
“Ela vai ligar para Constância...”, pensou.
Constância era irmã do inútil.
“Aquela vaca...”, conclui o pensamento.
A irmã tinha um emprego. Um honorário trabalho de datilografa, que a própria denominava de secretária. Todos sabiam que ela dormia com o patrão.
“Alcoólatra, piranha !”, volta a pensar o inútil.
O inútil gostava da versão de "Chão de Estrelas" que os Mutantes cantavam. E era esta música que ele escutava no momento. Abandonou a cadeira defronte a tela e pegou a arma.
“Tenho 38 e um três-oitão...”, imaginou isto como um começo de conto.
O barulho de seu MSN desvia atenção do revolver. A mãe bate na porta.
“Espera, mãe !”, e o inútil esconde a guarnição.
“Tua irmã vem almoçar aqui...”
“Aquela vaca, alcoólatra...”, pensou.
“Tu devia deixar este computador. Olha, comadre Izildinha me disse que o fórum vai abrir concurso ainda este mês...”.
“Tô cagando pra este concurso, minha mãe ! Cagando ! Eu sou poeta, sou artista, não nasci pra trabalhar em repartição pública...”
“Mas tu precisa fazer algo na vida...”
“Tu vai dar razão pro canalha, é ?!”
A mãe senta na beirada da cama e afaga o cabelo do inútil.
“Tu tá a cara do seu pai...”, diz.
“Cruz-credo ! Tô parecendo com ninguém ! Imagina eu parecendo com aquele safado...”
“Ora, menino, respeita o finado do teu pai !”
“Respeito merda nenhuma. A senhora sabe que ele era um safado mesmo. Um grandíssimo filho da puta !”
A mãe então se calou. Concordava com as palavras do inútil: sofrera o pão que o diabo amassou por aquele homem. Não que não sofresse com o atual, mas pelo menos deste ela gostava. Ou amava, sabe-se lá... Ela deixa o quarto, era necessário por mais água no feijão.
O inútil ficava a olhar a porta entreaberta, sua mãe a cozinhar, tão velha, tão capenga... O padrasto anuncia que vai sair. A mãe pede por sua não demora. Ao revelar que Constância viria para o almoço o padrasto logo mudou a fisionomia de sua retórica: decidiu por ficar e não fazer desfeita.
“Bando de sujos, pervertidos...”, pensa o inútil. Ficava indignado pela mãe não perceber que o padrasto mantinha relações com a própria enteada. Nunca pela irmã, mas sim pela idiotice que era o tal amor que sua velha sentia.
Meia hora depois, mesa posta e Constância aparece. Usava maquilagens vulgar e vestido em igual tom. Mascava chicletes, parecendo mais uma prostituta urbana que alguém de moral. Abraçava a mãe e parecia dizer palavras sacanas para o padrasto. O inútil não a recepcionou. Manteve-se na posição do computador, quis concentrasse na "As quatro estações" que pôs em alto som.Queria deletar aquele mundo. Queria esquecer a mãe, o padrasto, a irmã...
“E aí, ô inútil !”, Constância entra no quarto.
Ele não reage. Quis anestesiar-se de Vivaldi.
“Tu vai acabar morrendo disto ainda... Deixa este treco, vai arranjar algo pra fazer na vida !”, diz a irmã acendendo um cigarro. “Tu ainda vai matar a mamãe...”, conclui.
“Já falou tudo ?!”, o inútil esquece os acordes do violino e entra novamente naquela horda...
“Olha, seu imprestável: tu tem que respeitar nosso padrasto. Ele é o sustento da nossa mãe, será que esta sua cabeça não entende ?!”
“Respeitar este cínico ?! Tu só tá falando isto porque tu dorme com ele...”
A irmã solta uma baforada. Logo contra-ataca:
“Tu pára de dizer o que tu não sabe... Acaso já me viu dormindo com ele ?!”
“Não é preciso ver. Nota-se nos seus olhares. Só a mamãe que é retardada pra isto...”
“Será que tu não vê que ele é a razão da vida dela. Se algo acontecer a ele, ela se escafede, tá percebendo ?!”
O inútil não tira os olhos da tela. Sem pudor observa garotas nuas. Algumas crianças, genitálias de bebê.
“Argh, que nojo ! Tu devia ter mais respeito ! Como é que fica vendo estas coisas ?!”, diz a irmã após o trago e a subseqüente baforada.
“E tu devia respeitar minhas taras...”
“Além de louco e vagabundo, ainda é pedófilo !”
“Vai te foder, sua vaca !”
A mãe entra e pede, por Deus, que tudo aquilo acabe. Constância caminha e tira a mãe do quarto. Esta diz para o inútil que o almoço será servido.
“Estou sem fome. Tem mais Coca aí ?!”, foi sua resposta.

Enquanto comiam, discutiam sobre o inútil. Ele ainda estava no computador, agora sem a sua bebida. O padrasto sugeriu uma boa sova, a irmã uma clínica psíquica. A mãe apenas escutava, ora concordando, ora descrendo dos defeitos do filho.
“Ele é demente, mãe !”, disse Constância.
“Escuta tua filha ao menos desta vez, mulher !”, clamava o padrasto.
“Mãe, sabe a tal de Amália que ele tanto diz ser a musa dele ?! Pois esta não existe, é pura imaginação deste doido !”, a irmã frisava a última qualificação dada num gritar silábico.
“Ele é poeta...”, a mãe o defendia numa voz quase inaudível.
“Poeta a bunda dele !”, dizia o padrasto, “Poeta é Vinicius, é Drummond... Aquilo que ele escreve é esterco de quinta categoria ! Obra chinfrim !”
Nesta o inútil levanta-se e se dirige à mesa.
“Eu não sabia que um verme como tu entendia de poesia...”, diz.
“De poesia, não. Entendo do que é bom. E eu sei que aquelas palavrinhas que você escreve não passa de limpa-cu dos outros...”
“Sabia, mãe, que este imoral fica vendo bucetinha de criança na internet...”, intervêm Constância.
“A conversa ainda não entrou no puteiro...”, responde o inútil.
Mais que rapidamente Constância levanta e aponta a faca para o irmão:
“Repete, seu descarado, repete se você respeita este cunhões que tu tem !”
O inútil observa o reluzir da faca. O computador toca a "Barcarola Opus 60", de Chopin. A mãe pede clemências, quer a paz, pelo amor de um Deus que parece não habitar ali. Cai copiosamente num pranto em soluço.
“Viu o quê tu fez, seu inútil ?! Se mamãe morrer, eu te mato !”, dizia Constância dando assistência à mãe. O inútil entrava num alfa de luz e odores. Lembrou-se da infância em que se masturbava ouvindo música clássica: não sabia se aquilo era recordação ou invencionice, mas achou bonito a visão. Assim como, pela única vez na vida, gostou de ver Constância numa pietá às avessas: escorava a dor de uma mãe que parecia refugiada do mundo, descrente das felicidades, querendo apenas cicatrizar mordazes chagas...
A mãe parecia mais controlada. O padrasto não esboçou ação alguma: apenas usava um palito para sua higiene bucal. Constância sentou a mesa e juntou as mão em concha, logo levando sua cabeça ao encontro destas. Levantou o rosto e olhou para o inútil, dizendo:
“Tu tá precisando é de tratamento no hospício ! Você tá doido, pirado, entende ?! Esta puta que você diz ser apaixonado é alucinação tua, ela não existe !”
“Não, tu tá mentindo ! Ela existe sim, é meu amor, minha eterna musa...”
“Existe não, meu irmão ! Eu vasculhei, pedi ajuda a amigos pra encontrar a tal da Amália... Não há, você tá doido !”
O padrasto levanta-se. Tinha braços gordos e uma enorme pança. Usava uma regata cheia de manchas de graxa. Barba por fazer, um monstro de olhos claros e um certo loiro na calvície. E então se dirige para o inútil:
“Tu tá desmiolado, pinel, maluco ! Vai embora, ninguém te quer aqui não ! Tu mata sua mãe de desgosto, é isto que tu quer ?! Seu traste, inútil ! Não vê tua irmã ?! Empregada, ganhado seu sustento, sendo gente na vida ! E tu, o que é ?! Um merdinha que se diz poeta, um fracassado, um inútil ! Me diz uma coisa: pra quê este teu diploma ?! O que eu disse de sua poesia eu repito pra este teu diploma: não serve nem pra limpar bosta do mais vil mendigo !”, dizia buscando fôlego.
“Isto é um complô, mãe ! Este dois estão junto pra me destruir ! A senhora nunca percebeu que eles tem um caso...”, o inútil gesticulava insanamente.
“Mãe, eu não sou obrigada a ouvir isto não...”, tenta defesa Constância.
“Os dois tem um caso sim ! Mãe, me ouve ! Vamos fugir disto tudo. Eu prometo estudar prum concurso, faço cursos, me endireito... Me ouve, mãe ! Vamos embora !”
O inútil ajoelha-se ao lado da mãe. Pareciam dizer alguma linguagem muda, sem sinais ou visões. Estavam niilistas, embora nunca soubessem. O padrasto pega-o pelo braço com força:
“Olha, seu doido... Tu deixa sua mãe na paz da velhice, não queira pô-la em porra de aventura nenhuma ! Enquanto eu for vivo tu não tira minha mulher de casa !”
O inútil dirige olhares para mãe, esta submissa a toda ação. Não movia-se, uma paralisia que parecia um sim para a permanência. O computador emudece. Aquilo faz as pernas do inútil mexer-se. Caminha para o quarto, põe a "Marcha ao Suplício", de Berlioz.
“Desliga esta droga ! Vá ouvir música de pessoa normal !”, alguém grita do outro aposento. Ele não distingue a voz. Tira da caixa, que estava abaixo de sua cama, o 38. Coloca-o por entre a calça e sai.

“Não faz isto com tua mãe...”
“Não dá mais, mãe...”
“Tu é meu filho, é parte de mim...”
“Também sou parte sua...”
“Faz um esforço, fica... por mim...”
“É pela paz da senhora que farei o que será feito...”

“Vá logo, inútil...”
“Inútil...”

O tiro.

domingo, 16 de dezembro de 2007

SUICIDOU-SE COM BARBITÚRICOS

Quero um poema dos antigos,
destes com farmácia com “ph”.
Destes que, numa nota de jornal amarelado,
tem lá em letras garrafais:
“CORPO DE MULHER ENCONTRADO. SUICIDOU-SE COM BARBITÚRICOS.”

Quero o poema dos aromas de ácaros.
Quero um poema com fragrância de lavanda.
Quero o poema para o vestido da Joana...
Quero o poema do fraque de Oswald...

Quero o poema demodée.
Poema velho, cheio de rimas e métricas que desagradem os modernos.
Quero o soneto alexandrino.
Quero a poesia cheio de lamúrias e paixões proibidas, não-correspondidas, imorais...

Quero o poema encontrado, folha dobrada,
num exemplar de um clássico, página tal, junto a pequena flor amassada...
Poema achado pelo neto,
poema do avô para a avó,
na época em que eram Lininha e Josué,
meros namorados,
uma fotografia em desboto: datada, 1926.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2007

CORAÇÃO PARADO

"A outra pessoa é um enigma. E seus olhos são de estátua: cegos."
(Clarice Lispector)


Ele pesava mais de três centenas de quilos. Gordura mórbida. Não mais andava, vivia deitado sob uma cama revestida de tijolos por debaixo dela. Era cuidado por uma filha adotiva, Bernadete, chamada carinhosamente por Bé. Mal levantava os braços, fazia suas necessidades em enormes fraldões geriátricos. Tinha a respiração ofegante e alimentava com mais de trinta pãezinhos francês por dia. Sobreviviam com uma aposentadoria por invalidez e com ajuda de alguns vizinhos. A casa não tinha grandes luxos, dois quartos e uma cozinha com parede a reboque. Bé era uma linda moçoila, uns 25 ou até menos. Amorenada, cabelos encaracolados, vestia-se com severidade.
No quarto dele havia uma TV preto e branco. Gostava de assistir desenhos e acompanhava todas as novelas. Acima do criado-mudo muitos remédios. Tomava uns catorze por dia, muitos de tarja preta. Bé recortava fotos dos galãs. Gostava do Santoro, sentia que já o havia visto sem nunca tê-lo visto antes: fora num sonho e ele era um príncipe das Arábias que a seqüestrava para uma isolada cabana do deserto. Guardava todas as fotografias num surrado caderno. Colava-as e escrevia ditos amorosos. O gordo chamava-se Ulisses e engordara duma hora para outra. Antes trabalhava numa metalúrgica. Era feliz. Adotou Bé ainda criança de colo. Não sabia se tinha sorte ou arrependimento disto. Quando a TV lhe causava tédio olhava para as rachaduras do teto donde dormia. Imaginava seu coração parado, qual sensação será ? Queria um infarto que nunca chegava. Viver, para quê ? Não podia mais bater a pelada de sábado, nem ir aos churrascos de amigo, nunca mais... Vivia aos choros, queria dar menos trabalho a Bé.
Bé comprava os pães diariamente. O dinheiro não dava, pendurava às vezes. Ganhava a maioria gratuitamente. O padeiro da rua chamava-se Vitalino e por ela guardava uma grande estima. Sempre que possível a ajudava nos asseios ao pai. Sempre era preciso de gente para trocar-lhe as fraldas. Vitalino tivera um irmão gêmeo que falecera. Chamava-se Vital e algumas pessoas ainda o confundiam com ele. Para evitar isto passou a usar bigodes. Bé não simpatizava homens de rosto peludo. O irmão morto era o oposto de Vitalino: mulherengo, irresponsável, doidivanas completo. A timidez de Vitalino era tamanha que o único beijo que dera na vida fora de uma garota que, nas adolescências, o confundira com o finado Vital. Bé começou lendo romances água-com-açúcar, destes vendido em banca. Por recomendação de um conhecido, leu Lispector. Achou-a nojenta e resolveu ler a Bíblia. Hoje retornou a ler Lispector. A via crucis do corpo, seu livro de cabeceira.


De uns tempos pra cá, Bé havia de acordar encharcada. No começo não se lembrava do que sonhara. Achou que eram lombrigas, tomou um remédio e começou a obrar verde. Abandonou a medicação, mas continuara a suar. Tudo mudara duma hora para outra. Estava mais displicente nas higienes do pai. Só trocava-lhe os fraldões quando o exalar do fedor impregnava o casebre. Não sabia porquê. Começou a sentir-se mal quando tratava do pai, enjoava-lhe apenas a simples visão dele. Resolveu então rasgar as fotos do Santoro. Inconscientemente.
Um dia, contudo, teve um sonho nítido: via o pai com excitação, beijava-lhe o rosto, logo os lábios. Lascívamente. Então tirava o pobre vestido sem renda alguma. Exibia os pequeninos seios, ainda estava de calcinha. Subia no montanhês corpo e acariciava-lhe o órgão genital. Aí acordou, novamente em líquidos. Tentou rezar uma Salve-Rainha, não tinha concentração. Tomou um copo d’água e, pé-antepé, encaminhou-se para o quarto de Ulisses. Este dormia, roncava alto. Percebeu que a excitação ultrapassava o onirismo, não acreditava que poderia um dia ver o pai com tamanha indecência.
Friamente dirigia-se a ele. Apenas o alimentava e cuidava de seu hábito com os remédios e as assepsias. Ulisses achou que fosse um efeito natural de quem havia percebido o estorvo que era tratar de alguém em tal patologia. “Como Bé está linda a cada dia...”, pensava. E, no destravar do eterno, concebia-se anestesiado pelo platonismo de um amar ainda maior... Não a via somente como fruto seu: desejava enquanto carne, tinha-lhe libido, imaginava ereções apenas por ela, em seus delírios havia um aroma de pecado e a falta da ascese qualquer, destas litúrgicas, destas de pai... A sua razão ordenava-lhe, amoral : “Entrega-te ! Não és tua filha original ! Tu destes teus centavos de vida por ela ! Cobre-lhe de ósculos culposos, faça-lhe diáfana destes teus martírio, ame-a como nunca amaste mulher alguma ! Mostra-lhe quão viril és...”. E, catatônico, ouvia a voz como se esta fosse do padre em catequese duma distante nostálgica infância. Ulisses engordava mais a cada dia, chegara talvez aos 400 quilos. Aquilo não era vida. Seus olhos eram repletos de lágrimas e dor. Queria, esperava apenas a morte como consolo de todo seu sofrer. Esperanças findadas, enxergava vil os calendários e as horas. Em crise, pedia para ver álbuns antigos. Bé, sabendo do clamor que seria aquelas averiguações, escondia-os. Não adiantava; aí era aumentar seu penar. Então liberava e as simples passadas naquelas fotos amareladas, tempos de metalúrgico, tempos da pelada de sábado, tempos de Bé ainda no colo, tempos do bigode, do início da calvície, tempos do churrasco, tempos da vida... O pranto era sem controles. Deseja um infarto, o coração parado...
Bé lia um trecho do livro pousado na cabeceira. Estava sublinhado em caneta vermelha: “...A morte é de grande escuridão. Ou talvez não. Não sei como é, ainda não morri, e depois de morrer nem saberei. Quem sabe se não tão escura. Quem sabe se é um deslumbramento. A morte, quero dizer...” . Não sabia o porquê da frase. Sentia emoções ao lê-la. Lispector sempre a emocionava. Mas não temia sua própria morte. Não gostava era de imaginar a morte do pai. Ainda tinha aqueles estranhos sonhos. Pensou em procurar um padre ou o pastor do templo perto de sua rua. Este sempre o ajudara com cestas básicas. Também percebera o jeito como ele olhava para suas pernas. Decidiu então se macular em masturbação.

Naquela manhã, Ulisses acordou sem acordar. Abriu os olhos com dificuldade, mal respirava. Tentava puxar ar, mas aquilo lhe fazia doer os pulmões. Sentia pontadas no coração. Fortes pontadas. Um misto de felicidade e torpor atingia seu sorriso amarelo. As pontadas cresciam em intencionalidades. Fortes pontadas. Não gritou, sentiu que o infarto estava chegando. O coração parado. Mas teve uma hora que não deu. O urro era o sinal que sua paz era então desejada. Berrou a dor, gritou a alegria ! Bé, automaticamente, levantara e vira a cena: o rosto do pai estava cinza, parecia sufocado. A respiração ofegante, um grito ! A dor do obeso mórbido era sua própria dor.
Saiu, ainda de camisola, pela rua a clamar por ajuda. Ainda era muito cedo, muitos dormiam. Aos poucos uns e outros apareciam para saber que mal havia. Bé dirigiu-se para a casa de Vitalino, batendo na porta com aflição. Este parecia que anestesiado em graça: que beleza eram os pequenos seios de Bé que transpareciam pela seda tosca de seu decote ! Distinguira com nitidez os mamilos negroídes, intumescidos pelo frio das seis... Pela primeira vez a via com os cabelos desgrenhados, natural de seu despertar, parecia uma princesa que acordava de feitiço após cem anos de latência. Observava isto tudo do olho-mágico, mal percebendo a insistência das batidas. Abriu a porta e logo Bé conclamou do acontecido.
Foram preciso mais de quinze homens para a remoção do corpo. Fez-se necessário derrubar paredes para que Ulisses recebesse o socorro. Tudo era liderado por Vitalino, que dividia a atividade consolando a indócil Bé. A moça misturava uma estranha paralisia com choros leves, agudos, ácidos... Com trabalho colocaram-no numa ambulância.
Na rua só havia um posto de saúde, bastante modesto. O grande hospital público ficava distante, temiam que Ulisses não sobrevivesse à viagem. No posto de saúde só havia um clínico geral, mesmo assim ainda estagiário. Também tinha um obstetra. O clínico geral estava em seu horário de folga, o obstetra, sem saber o quê indicar, recomendou o entubamento do paciente. O rosto acinzentava cada vez mais, estava inconsciente e quando não, gemia. Bé dizia que a morte do pai era a morte dela também. Naquele momento só havia Vitalino, que fumava para esquecer os fatos. Nunca fumara, mas guardava um maço para uma certa ocasião. Recebeu reclamações da enfermeira e acabou apagando o cigarro num vaso de planta. Bé escondia o rosto em seu próprio colo, parecendo buscar uma posição fetal. Finalmente o clínico geral chegou. Não desaconselhou o ato do obstetra, mas disse que pouco havia o que se fazer com o dantesco obeso.Era preciso uma cirurgia e ele não era especialista, nem havia condições no posto de saúde para tal.Aquilo apunhalava Bé aos poucos. Ainda estava de camisola, mas agora coberta com um casaco. Vitalino deu-lhe água num copo plástico e saiu vagarosamente.
Sabia Vitalino que a única chance de salvar Ulisses era pagando uma clínica particular. Sabia que salvá-lo era restabelecer vida à sua amada. E então sacou o pouco que tinha em cadernetas de poupanças e penhorou dois relógios ganhados em herança. Pôs no prego também a sua padaria. Conseguiu pouco montante, o suficiente para a cirurgia e um dia de internação num bom centro cardiovascular. Quando soube da transferência de seu pai, sentiu-se Bé miraculosa. O transporte de helicóptero foi bastante ágil.
Já na recepção de um bom hospital, Bé esperava notícias. Pensou, pela última vez, no pai eroticamente. Repudiou-se. Vitalino ofereceu-lhe o terço que sempre trazia em seu pescoço. Bé segurou-o e Vitalino arrepiou-se com o breve tocar de dedos. A moça segurava o terço, mas não tinha fé alguma. Segurava-o e não via Deus algum: apenas lembrou-se de um conto de Lispector, Melhor do que Arder. Gravara-o por inteiro, recitava-o de cor. Fez dele uma ave-maria e concentrava-se para que nenhuma palavra fugisse de sua memória. Durante sua baixa reza, pensou em mãos segurando os seus seios. Olhou para Vitalino, este parecia cochilar. Queria que aquelas mãos fossem dele.
Seguiu-se a segunda hora da operação. Bé aceitou o café que Vitalino lhe trouxe. Agora batia as mãos em seus joelhos. Tivera tempo de trocar a camisola por um vestido. Vitalino trouxe-lhe da casa da moça. Mantinha o terço como amuleto fiel, não o desatara entre dedos. O médico aparece. Tinham manchas de sangue na roupa branca que usava. Com uma só mão tirara a máscara de seu rosto. Perguntou por Bernadete e esta apresentou -se. “Com dor, eu lamento...”, falou o médico pausadamente, quase que adestrado.

Bé não chorou tanto. Vitalino não sabia o que dizer, nem como agir. Deu socos na parede, quis demonstrar o mínimo de raiva que a notícia lhe causava. Não que fingira, mas sentiu que encenara pra caramba. Bé quis ver o corpo do pai, mas indicaram-lhe que o já cadáver agora passava pela burocracia da necropsia. Ulisses morreu com quase meio mil quilos e teve três paradas cardíacas durante a operação.

Um enterro bonito. Não sabiam como, mas conseguiram colocar o corpo num caixão comum. Havia poucas flores e nenhuma coroa. Umas quinze pessoas, alguns amigos da metalurgia, ninguém das antigas peladas. Bé trajava luto em preto e um jeans. Primeira vez que usava calças. O caixão estava lacrado e não se via o rosto do moribundo. Será que serraram-no ?! Vitalino não cogitou isto. Aproximou-se de Bé em consolo. Saíram do cemitério de mãos dadas.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2007

POEMINHA

Limar, da pedra, o ferro
da fruta se fazer, limão
da montanha, a coisa que assanha
do causo, um mito
da causa, o desminto
E da vida, uma cor que,
decorada de cor
descolore
qualquer sol
qualquer céu
qualquer lar
o quer me quer,
sem mal
nem bem
tem sal
é mar..

Vivo porque ainda não conheço.
E teço
muitos terços
que meu corpo quer
a-brigar.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

URBANIDADES II

“O conhecimento da alma humana passa por um campo de futebol” (Albert Camus)

Foi num destes agostos de calor. Seguro o canudo com força, recebo os abraços de meus familiares. Só faltava o dos grandes amigos. Foi com dificuldades que me formei doutor. E agora era mais uma nova decolada em minha vida... E assim como desejei, compareciam todos aqueles que estimava, inclusive “Os Tartarugas”, o grande time do bairro de minhas lembranças
Um deles já morreu. Outros estavam presos, alguns moravam em lugares distantes ou mesmo fora do país. Contudo os mais chegados estavam na cerimônia de minha diplomação. Eu de beca, o Biscoito com uma pólo cor de manga. Foi meu primeiro abraço, como ele engordara !
- Dicó !!!! - grita - ...quer dizer, Doutor Alberto...
Dei uma gargalhada e exclamei:
- Ah, seu puto ! Pode me chamar do que quiser...
Biscoito compartilha da risada e logo fui em direção a mesa em que os outros se encontravam. Enquanto abraçava os restantes, ele tirou uma fotografia do seu bolso: “Os Tartarugas” daquele verão de 82: Maloca, Ivinho, Mesma-roupa, Nariz e Boca de cisterna; Biscoito, Guilherminho e Metido-a-Zico; Borra-shorts, Pomba e eu. Que timão ! Quantos hematomas contavam aquelas histórias... Tinha uma cicatriz na testa de uma dividida com o Come-lama, um marrento beque do “Brasilzinho”...
- O Come-lama ?! Puta que pariu ! Nem lembrava mais dele. – disse Metido-a-Zico, hoje chamado por seu nome de batismo, Cristóvão.
- Pois é. Morreu... – comentou Boca de cisterna, hoje Aderbal.
- Morreu ?! – disse – Puxa vida... E de quê ?!
- Tiro. Mexia com tóxico...
- Ele tinha talento pra bola... - puxou Guilherminho, ainda Guilherminho. Não mudara nada, nem o tamanho.
- O Come-lama era melhor que muitos zagueiros de hoje... – esboçou Biscoito. Hoje era Assis, tinha uma pequena empresa e estava casado. E calvo...
- Ele ainda fez teste pra jogar no Bahia, né Biscoito ?! – digo.
- Fez sim. Mas acabou reprovado. Sei que ele jogou ainda no juniores do Galícia...
- Mas aquele ali não se remendava... – exclama Guilherminho.
- É... Preferiu mexer com tráfico. Taí: morreu com menos de 24 anos. – conclui Biscoito.
- Pois é, pois é... Mas vocês lembram quando ganhamos do “Becão Futebol Club” ?!
Não sei quem mencionou isto, mas foi como se transportasse todos aqueles ainda remanescentes dos “Tartarugas” para um dos grandes jogos de nossa vida. Eu ia completar nove anos quando nosso time venceu o primeiro jogo de sua breve existência. E justamente contra o “Becão Futebol Club”, invicto até então. Devo lembrar que os “Tartarugas” era o time mais popular do bairro. Nunca soube o porquê, mas as meninas sempre torciam por nós. Inclusive a Madalena, meu primeiro namorinho platônico. Talvez fosse pelo fato de nunca termos ganhado nada. E ganhar nada num Brasil em processo de redemocratização significava ser o próprio espelho do país... Logicamente havia também o fato de termos perdido a Copa daquele ano do jeito que foi. Lembro que chorei pacas quando o Paolo Rossi fez aquele terceiro gol e tirou-nos o grito entalado de doze anos sem ganhar um tento mundial....
De repente nos vimos numa mesa rodeada de cervejas e outros porres. Os cinco últimos restantes dos “Tartarugas”. Jogávamos sem uniforme, portanto era exigido que cada um usasse uma camisa de mesma cor. Como o Mesma-Roupa só usava uma surrada camisa verde, foi então estabelecido que todos jogariam de verde. E descalços, vale salientar.
- Ah, o jogo contra o “Becão”...
Não lembro quem puxou esta nova conversa, mas eu repeti a tal exclamação. Como era saudoso aquele clássico, tarde de domingo numa pós-chuva de sábado. O campinho era um lamaçal que só !
- Teda, David, Bufa de véi, Plínio e Cobra... – puxou o antigo Boca de cisterna, ainda com o hálito que o caracterizava.
- Damião, Fusca, Medroso e Catarro, Altamiro Canalha e Todo-Duro ! – terminou Biscoito a escalação do “Becão F.C”.
Imediatamente brindamos e logo me lembrei do último nome citado. Todo-Duro era um gigante de uns 14 anos que batia em menininhos e ainda era louquinho pela minha Madalena ! Meu maior algoz de infância... Na época éramos pirralhos de nove, dez anos e os garotos mais velhos e mais fortes sempre causavam frisson nas meninas. Não sei se a Madá (como a chamavam-na carinhosamente) tinha ou não interesse no Todo-Duro, mas o simples fato de vê-los conversando em intimidades já me causava uma vontade de socá-lo...
- Jogão, né ?! – puxa Biscoito.
- Ô se foi... – lembro – dois a um...
- E de virada !!! – exalta Metido-a-Zico.
- E o último gol de quem foi ?! Hein, hein ?! – interroga Guilherminho.
Todos gritam em uníssono: “Nariz !!!!”
- Poxa... Finado Nariz... – indago.
- Ele morreu de quê mesmo ?! – pergunta Biscoito.
- Infarto. Faz pouco tempo... creio q uns três meses. – responde Boca de cisterna.
- Poxa, e eu nem fui ao velório... – digo.
- Nem tu e nem ninguém ! O cara ainda morava no Sussuarana...
- Jura Aderbal ?! – espanta-se Guilherminho.
- Pois é. Só fui saber da morte dele acho que um mês depois...
- Então vamos fazer um minuto de silêncio em homenagem ao grande Nariz...
E todos calaram. Mas o minuto converteu-se em apenas alguns segundos.
- E foi de cabeça né ?! – lembra Biscoito.
- Foi. Logo do Nariz, o maior perna-de-pau do Sussuarana... – digo.
- Bons tempos do Sussuarana...
- É mesmo Biscoito...
Damos uma suspirada que parecia mais um alívio. Alguns bicam da cerveja quente num copo plástico, outros petiscam uns restos de salgadinhos ainda existentes numa bandeja estacionada ali na mesa. Biscoito roça a foto com os dedos, como se querendo afagar nossas lembranças. É ele quem recomeça a conversa:
- O jogo contra o “Becão”... Cês lembram bem do jogo ?! Confesso que esqueci alguns detalhes...
- Ah, eu lembro que o campo tava uma lama que só... – diz Boca de cisterna.
- E eu lembro que fui eu quem cruzou a bola na área pro gol do Nariz... – fala Guilherminho.
- Epa ! Não foi o senhor não !!!! Foi eu quem cruzou... – digo.
- Claro que não. Foi eu sim ! Me lembro como se estivesse vendo o jogo aqui na minha frente... Pomba recupera a bola no nosso campo, avança um pouco e toca pra você. Aí você faz tabelinha com Metido-a-Zico, que passou pra mim. Aí eu cruzei pro Nariz e pimba !
- Claro que não foi assim, Guilherminho... – indago – Primeiro que o gol foi no segundo tempo e o Pomba saiu logo no começo do jogo...
- É, o Dicó tá certo... – diz Boca de cisterna. - ...O Pomba se machucou ! Foi numa dividida com o Fusca, filho do finado Zacarias sapateiro...
- Há controvérsias aí... Cê tá duvidando da minha memória ?! Me lembro sim: foi o Pomba que passou pro Dicó...
- O Boca tá certo sim... – lembra Biscoito - ...tou recordando agora. O Pomba saiu com o joelho inchado. Aí a gente colocou o Barbie...
- Barbie, o viadinho !!! Claro que eu me lembro... – grito – Poxa vida... Por onde anda esta criatura ?!
- Moço, a última que eu soube dele é que ele se tornou artista plástico de grande destaque no cenário internacional. Inclusive namora com uma modelo que é um avião !!!
- Não brinca, Biscoito ?!
- Juro...
- Deve ser fachada. Ali era a maior bichona...
- Peraí ! Vocês tão é doido !!! O jogo que o Barbie entrou foi contra o “Flamenguinho de Pau da Lima”... – insiste Guilherminho.
- Nunca !!!! – exclamo – O jogo contra o “Flamenguinho” foi bem depois...
- Verdade... E neste jogo o Barbie nem jogou...
- Cê tá certo Biscoito... E o Barbie só jogou contra o “Becão” porque o Pomba machucou. Ele era outro perna-de-pau, todo fresquinho...
Neste momento aparece a turma de formados e pede minha presença para tirar fotografias de praxe. Peço licença pra turma e retruco que mais tarde eu apareceria para concluirmos as lembranças do clássico “Os Tartarugas versus Becão”...
- Então tá bom... Foi o Dicó que cruzou pro Nariz... – aceita, meio na birra, Guilherminho.
- Pois é, logo o Nariz...
- É, cara... O Nariz... Zagueiro... – gagueja Biscoito.
- Zagueiro só porque era PDB...
- Qualé, Guilherminho ?! Eu era zagueiro e não era pior do baba coisíssima nenhuma !!!! Aliás, eu era um baita zagueiraço, um Luís Pereira...
- Cê, um Luís Pereira ?! Bosta, Boca de Cisterna...
- É... Tu não dava nem pro chulé... Cá entre nós: tu jogava mal pacas... Nossa sorte era que o Maloca era bom pra caralho...
- O Biscoito tá certo. Cara, o Maloca... Tu lembra que ele era apaixonado pela Simony do Balão Mágico ?!
Todos riem. Biscoito então fala:
- Era mesmo... Cês lembram que ele chorou quando a gente inventou que a Simony tinha morrido num acidente de avião ?!
- Putz grila... Foi mesmo ! Mas ele era o mais novo da galera, né ?!
- É. Ele tinha uns dois anos a menos... Mas pulava na bola que mais parecia um gato...
- Muito melhor que o Waldir Peres !!!!
Novamente todos riem. Chego perto da mesa novamente.
- Pronto, “Tartarugas”... Já tou livre pra resenharmos até raiar o dia...
- Ai,ai... Tamos aqui lembrando do Maloca... – comenta Guilherminho.
- Maloca ?! – cantarolo – “Canta também, Pimpão... Pelo salão...”
Todos gargalham e brindam.
- Moço, o cara chorava ouvindo a Simony cantando esta música...
- Puta que pariu !!! Era mesmo... – lembra Cristóvão.
- Grande Maloca... Foi o único que engrenou mesmo no futebol, né ?!
- E não foi ?! Falei com ele há pouco tempo. Tá treinando um time de Minas, da segunda divisão...
- E ainda jogou nuns times do interior paulista...
- Chegou a ser reserva do Sidmar na Portuguesa !!!!
- Caralho, Boca... Mais fundo do baú que lembrar o Maloca é lembrar-se deste Sidmar...
- Porra, Biscoito ! O Sidmar era um puto como goleiro. Pegava barbaridade !!! Jogou até no “Baêa”. Tenho o autográfo dele e tudo...
Depois deste comentário foi um jogo de “ai,ai” prum lado, um prolongado silêncio do outro... Cada um se concentrou em seu copo de plástico de cerveja, que, aliás, já enchia de garrafas a mesa em questão. Peço pro garçom servir mais salgadinhos, no que sou brevemente atendido. Olho minha esposa, mas penso em Madá, minha Madá... Lembro, como em taipe, da Sussuarana onde nasci, do bairro de pouca iluminação onde se criava até bodes ! Revejo então o campo de lama, as Tubaínas que seu Ezeclias patrocinava depois de cada partida (mesmo naquelas que perdíamos), do gol do Nariz no jogo contra o “Becão”, no vento que um dia levantou a saia e eu pude ver a calcinha rendada da Madá...
- Cês ainda lembram da Madá ?!
- Claro, da Madá... Como esquecê-la, né ?! – indaga Biscoito.
- Morena bonita... Eu era louco por ela...
- E quem não era louco por ela, né Boca ?!
- E destaco que era nossa grande torcedora... – destaco.
- E não era ?! Poxa... Ela criou até torcida organizada e tudo. Como era o nome mesmo da torcida ?!
- “As Tartarugas dos Tartarugas” !!! – digo rapidamente, já com o dedo em haste.
- Era mesmo... Tinha até faixa, grito de guerra e as porra tudo.. – ri Metido-a-Zico, o mais lacônico da galera. -... Mas o que me deixava mais intrigado é que ela tinha uns doze na época e ainda sim tinha uma paixão pelo time...
- Uma paixão por mim, você quer dizer... – gaba-se Guilherminho.
- Aonde, aonde ?! – remenda Boca – Ela gostava era de mim !!!!
Antes que começasse um bate-boca por ali, Biscoito interfere:
- Calma, gente... Eu sinceramente acho que ela curtia era o Dicó...
Estranho saber que eu ruborizei no instante que ele falou nisto. Fora se como a mais de vinte anos atrás...
- Do Dicó ?! Porra nenhuma !!! O Dicó era magrela demais. Ela era doidinha por mim isto sim...
- Por tu, Guilherminho ?! Tu tinha pança de barriga d’água, lembra não ?! – completa Cristóvão, o eterno Metido-a-Zico.
Todos riem. Então pergunto:
- Ai,ai... Mas que fim ela levou?!
- A Madá ?! Tá casada com o George...
- George ?! Que merda é George ?!
- O Todo-Duro, do “Becão”... Tu não lembra mais não ?!
E foi como um soco de supetão, muito pior que aquele dado por ele próprio quando eu dei um beijo à força na Madá... Aquela revelação agridoce do Biscoito me causou espanto e um abismar: quão irônico pode ser o destino... A Madalena, nossa musa Madá, meu primeiro amor, a “Winnie Cooper” de todos nós dos “Tartarugas”... Madá e Todo-Duro, caraca... É, quando a coisa tem quer ser, ninguém pode impedir né ?! Lembro que por causa dela eu aprendi a dedilhar no violão “As canções que você fez pra mim”, que pela Madá eu nem dormia direito, escrevia poemas tolos, cantarolava as músicas de corno que rolava na Sociedade, olhava pras estrelas, até chorei... Fiquei uns dois anos nesta nóia, pensei que ia morrer sem gostar de outra garota. Claro que assim não aconteceu, muita água rolou por debaixo desta ponte... Acreditam que a prostituta com quem perdi a virgindade também se chamava Madalena ?! E não foi mero acaso: um puteiro na Baixa de Quintas, com meus 16, eu e uma galerinha do Central fomos lá... Escolhi a dedo. Esta Madalena em questão tinha uns 50, poucos dentes e ainda era estrábica. Mas quando eu soube do seu nome, foi nela que fui... Ah Madá... Imaginava-a com qualquer tipo de vida, com qualquer homem, menos com meu algoz de infância...
- Pois é... Irônico destino né... – concluo.
“Os Tartarugas” ali restantes nada falaram. Cada um ficou com sua lembrança, cada um com sua maquininha projetando imagens, cheiros, gostos, gols... A grande graça de chegar a uma formatura, a graduar-se médico, especializar-se em algo, é você olhar pra trás e perceber que houve um passado. E saber que tudo na vida é uma etapa e que é necessário galgar cada degrau dela. Reunir aqueles cinco fazia-me um bem quase que ególatra. Mas eu sabia que não era um bem só meu: no fundo cada um deles sente-se feliz em saber um do outro, de ver sucessos e chorar fracassos, estar de mãos estendidas pra qualquer ajuda e lágrimas no rosto por todas as glórias... Biscoito guarda a foto no bolso da camisa e dá uma batidinha, como se confirmando que nossa infância estivesse em seu coração. E quando aquele símbolo é escondido do atual instante, aí sabemos que é a hora de cada um se levantar, o amanhã será mais um hoje e o hoje não podia parar... Todos se levantam, alguns tontos de recordação e cerveja, e cumprimentam-se. Unânime também são os parabéns dados ao Dicó, o Doutor Alberto... Recebo-os com carinho e prometo ligação o mais breve possível. E então fico só.
É quando minha esposa se aproxima. Dá-me um beijo na testa e logo outro na boca, bem de leve...
- Então aquele é o famoso “Os Tartarugas”...
- Já lhe disse que te amo hoje, Rita Madalena ?!
Lembro-me então duma frase de Camus que ouvi um dia: “O conhecimento da alma humana passa por um campo de futebol”. Acho que ele estava com toda a razão

HOMENAGEM

Augusto
dos Anjos

Ao gosto
dos anjos

augusto
dos anjos...

dos demônios
dos morcegos
dos umbrais
da morte
do carbono e do amoníaco...

E tudo mais...

E daquele pé de tamarindo...
que, rindo-rindo
parece até gosto de anjo...

gosto
dos anjos

degustar
dos anjos

Num agosto
dos anjos...

Augusto
Dos Anjos.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

O QUE DESEJO

Para situações escutadas por alunos/alunas de meu antigo colégio de ofício.

Amar
com “A” maiúsculo
mesmo sendo tão minúsculo,
tão micro,
sentir-se tufão
algo no aumentativo
comparativo a um titã
Amar...

Amar como a vastidão do mar
sentir-se um mar
mesmo quando somos moscas,
(mera e vegetativa criatura
tão vil que ninguém vê)
amar como a força de um deus
sentir-se na potência da opulência
duma explosão nuclear,
ou tão leve quanto uma nuvem
que vem, que vai
que chega com o bradar de trovões
ou a calma anunciação de chuva, chuvisco,
da invernagem sertaneja,
das enchentes urbanas...

Amar porque os instantes são breves,
Amar já que a memória é eterna,
Amar ternamente,
raivosamente na busca do algo amado
Amando eternamente e brevemente,
Amando como um soprar em bolhas
O Amar duma criança no seu primeiro amor,
Amar feito a velhice dos últimos amores,
Amar
feito a beleza de se enxergar
na cegueira do amor,
de ver no feio a beleza que nunca quisera olhar,
molhar de amor este amar inocente
crescer na fortaleza deste momento –
Ser rebento, detento da condição,
dependente incontido da situação,
viciado deste cio,
querendo tão somente o assovio de gritar o seu nome.

Amar por querer
Amar pra querer amar
Amar porque preciso remar
neste mar, neste rio
Amar porque rio da sua risada
Amar porque há sua lágrima e seu suor
Amar por soa sinos quando a vejo...

Amar, simplesmente
E pronto !
nunca está tão pronto
ou sempre estar de prontidão:
Amar com paixão,
apaixonar-se e amar
quedar de céus
e cair nos seus cabelos –
Sê-lo
a maior proteção
contra a dureza do chão.

Amar, por fim
Amar enfim
Amar amar...

quarta-feira, 28 de novembro de 2007

O POETA É A CIDADE

"Pois enquanto existir Deus no céu, urubu não come folha" (Jorge Ben)

Na cidade subdesenvolvida desenvolvia-se micróbios e pessoas tão micros que se achavam macros. Coisa tão anti, antes e depois da invenção da roda, da roca e da rocha. Gente mesquinha, de mil corações e algo no peito tão sólido que parecia sol e aerólito. Na cidade que nada cedia, tão cedo madrugava noites e missões. Cidade caótica, católica na ótica de focalizar deuses e erês. Havia o mar, o amargo e o trago-não trago, um trigo e o pão-circense nosso de cada dia - carne de não se comer, a carne de trepar, a carne do palavrão, palavrinha, larvinha, borboleta vinda dum pós-baseado... E baseado nisto tudo, a cidade (talvez vila, talvez vale, valesse um campo, um conto, caatinga, cantiga, chuvas... Lapinha, Lampião, pião de rodar na mão, na mão, na mão... Um nome, um homem, um salvador, dor e ardor da procura. Talvez uma tez, um triz e traz, atrás de qualquer negação feroz, a cidade era tão pequena, tão ínfima, um ponto negro no mapa, escondida de tudo, dos astrolábios, dos astros e dos lábios, cidade tão a mostra, ostra que gera pérola, divagações...), a cidade expelisse desgraças e "graças a Deus", cidade puta e disputas, sem batismos ou ismos, sem pontes ou pintas, sem negros e brancos, cidade da idade da criação !

Pois nesta cidade, dali onde tudo parecia uísque barato, ressaca no tardar, soco nas veias, naquela cidade inventou de nascer o poeta.

Nasceu numa casa onde o céu era seu telhado, uma casa de paredes rachadas e caiada de verde, na casa onde seus avôs vomitaram suas descendências, residência dos demônios e anjos que lhe diziam o quê fazer, tecer, ser , agir... O poeta nasceu nú, como todos nós. Mas sua máscaras, más caras ou não, lá já estavam, manchadas de placenta, sangue e destino traçado: ser gauche na vida, ser triste, taciturno, noturno-diurno-paradoxos, um amalgama de qualidades e qual-quer-me-bemal. E na cidade que é sua própria síntese, no local que é simplesmente um lugar, seu lugar, lugar de afagos e afãs, cidade que é sua face, sua fuça, seu fuçar, a cidade que transborda seu insensato dizer, seu nada por dizer, seu dizer por coisas tolas e tortas, mancas e azuis, uma chaga que chega, chega, chega !!!!!
Na cidade, o poeta descobriu-se tão cidade, tão poeta, descobriu-se descoberto e sem proteções, com taquicardias e sudoreses, sintomas e exegese banal... O poeta disseca-se e declara que o amor não tem rosto ou bucetas, que o amor não tem forma ou fôrma, a mor não... O poeta é a cidade escondida de entre a neblina do crescer e a fogueira do fugir; o poeta é amorfo, um mofo, a coisa mofada, morfologias que dizem e traduzem pecados e vexames. O poeta é a cidade boa de água cristalina e cristais prismáticos, isto tudo num desenho de criança do prézinho ou nos borrões de Monet. O poeta é a inocência desta cidade, que é também uma fortaleza guardada em suas casas e nos egos cegos de inconsciência.
Redundante é dizer que o poeta e a cidade nunca se encontravam, serpente que se devoram, o poeta é a cidade, a cidade e o canto do mundo.

sábado, 24 de novembro de 2007

EXCLUSIVO

Exclusivo para um coração:
o amor é para os doentes...
Códigos que dizem, que digo
sério, sério
de pé-a-pé...
Um bocado de sonífero.
Bálsamo de sua boca,
rícino que me devora,

sem mensagem ou decifrações...

O amor é patético,
mítico, pantomima ridícula
mimetismo de força,

corrente, aguardente, coisa sufocante...

O amor é belo
tão belo quanto imagens tolas,
criança de riso indolente,
pausa quando não se tem nada o que dizer....
Assim invejo os que amam,
aqueles que em torpe
exclamam felicidades pelos poros,
pelos porões sorumbáticos,
pelas sombras tentando prismar sóis,
só que parece dois,
dois que parecem um só...

terça-feira, 20 de novembro de 2007

UM PARECER FILOSÓFICO

Não há projétil
que fure,
nem projeto
que perdure,
minha vida toda
um caos,
um cais
onde atraco
e atravaco,
traçando meu vácuo...

Onde poema não enche barriga,
quando o poema só enche a mente,
enchente de bálsamo
e do deleite intangível...
Mas poema não enche meus bolsos,
e aí os pais enchem a paciência:
"vá ser doutor, coisa que preste
preste atenção, cresça, aparece !!!"

Um parecer filosófico,
só pra não parecer
que sou menos filósofo:
Um (a)parecer para o grupo,
mostrar o que fiz, o que li, do que gostei
ter que mostrar, ser o ser
exigência do desvelar, do desvelo
vê-lo agir,
balbuciar, gritar...

Nesta vida árida,
ávida de mudanças
quero viver, alçar minhas andanças
alcançar e poder ser feliz
nem que seja por um triz
nem que seja como todos...

sexta-feira, 9 de novembro de 2007

O PRIMEIRO NAMORADO

Levemente inspirado em “Menina da Lua” (Maria Rita)

Foi aos onze. Era acaboclada e tinha uma perna maior que a outra. Salomé era chamada pelos outros de manca, “A manca”. Pois tinha ela onze anos e era primavera. Ainda não passara pela menarca, contudo passaria em breve. Estava mais mulher, brotava-lhe a beleza e os pequeninos seios. Seu pai era um metalúrgico, branco e cheio de preconceitos e bizarrices. A mãe, negra, fazia bicos de diarista e costureira em horas noturnas. Com enormes sacrifícios mudaram para um bairro melhor. Uma casa que traria custos maiores ao já escasso orçamento familiar. Salomé não seria filha única se uma virose não tivesse levado seu irmão mais velho ainda recém-nascido. Esta passagem causaria um trauma irreversível a seu pai. E desde então ele tem lutado para dar uma vida melhor para sua família. O aluguel lhe tiraria confortos como, por exemplo, o Fusca 69 e o plano de saúde. Mas valia a pena morar numa casa com telhados e quintal.
Salomé ainda custava a se adaptar ao novo bairro. Era bem casmurra, difícil de fazer amizade. Conversava mais com os animais de casa do que com as pessoas. E preocupada com isto é que sua mãe propôs a ela uma saída pelas vizinhanças. “Conhecer gente, conversar com garotas de sua idade. Não cai bem você ficar de tri-tri-tri com o Xano...”. Xano era o nome do gato. Numa tarde em que as amendoeiras pareciam mais cheirosas, as flores duma cor densa e hipnóticas e o fim da chuva trazia aromas e poças d’água, num momento como este é que Salomé viu Zé Sérgio pela primeira vez.
Garoto de tez ariana, loira cabeleira num corte de surfista, corpo desproporcional para seus treze anos nunca dado por ninguém, torneado como a musculatura dos dorsos de estátuas gregas, tão alto como jogador de basquete, bem bonito. Pelo menos assim foi a primeira impressão de Salomé, que na ocasião vestira um casaco verde por cima de uma blusa meio azulada com adornos de florzinhas. Blusa esta feita pela mãe, que recolhera retalhos que sobravam das costuras mais caras. Sentiu-se feia naqueles trajes e então escondeu o rosto. Contudo não era a ordem de sua alma, de seu palpitante coração ansioso pelo primeiro amor. Conhecia das telenovelas aquela sensação, aquele suor nas mãos, os sininhos metafísicos que outrora escutara. Era amor aquele singelo flerte do destino.
Zé Sérgio parou diante um grupo de outros garotos. Também havia garotas no meio. Nenhum era de cor parda ou escura. Aquilo incomodava Salomé. No outro bairro era exatamente o oposto: raros os brancos nas brincadeiras ou nas conversas. Mais uma vez sentiu vergonha, preferiu ficar distante. Resolveu contempla-lo do outro lado da calçada, sentou num banco de praça branco-descascado. Queria passar despercebida, contudo fora impossível. Lógico que uma estranha na rua seria motivo de comentários.
Resolveu não se levantar até todos saírem, principalmente o garoto que causava estes arrepios. Quis concentrar-se num ninho que havia na árvore adjacente à sua posição no local. Coçou o nariz, pigarreou um pouco, mas nada tirava de seus olhos a vontade de ver Zé Sérgio. Sentia-se sob efeito dum alucinógeno qualquer: pés fincados, paralisados por feitiço, o molhar anormal na testa, a secura da boca, formigamento na barriga, vontade de cantar, de ser anjo, comer nuvem... Ainda não sabia o nome dele, mas lembrou-se do declame shakesperiano: rosas não precisam denominar-se como tal para deixar de exalar o perfume a ela peculiar. Zé Sérgio poderia chamar-se Amor, Necessidade, Querer Bem, Bem-Querer, Xodó, Esta Agonia, Um Garoto que se Ama... Desta maneira pensava nele. Desta maneira o encarava e assim, em sonhos, o declamava. Pedia. Chorava sem lágrima.
O grupo parecia em murmurinhos. Certamente comentavam sobre Salomé. Foi o pensamento dela, pelo menos... “Será que falam de mim ?! Parecem rir. Será que é de mim ?! Droga...”. Foi no exato momento do xingamento que lhe aprece um vulto. Não exatamente um fantasma ou coisa penada. Ela era bonita, muito.
“Oi ?!”, a mocinha disse. O cabelo dela cheirava a xampu dos bons, destes de criança.
Respondeu um oi meio tímido, pra dentro, inaudível.
“Você é nova por aqui, né ?!”, insistia a outra garota.
Concordou num balançar de cabeça.
“Prazer, Eduarda...”, estendeu a mão esperando cumprimento. Salomé aperta-lhe a mão. Era manicurada, tinha um anel em ametista lindo. “...A galera me chama de Duda. E o seu, qual é ?!”, continuou.
Disse o nome numa divisão silábica medrosa.
“Salomé. Bonito... Mas o que faz aqui sozinha ?! Não quer enturmar-se com a galera ?!”
A proposta da garota fez Salomé tremer mais ainda. Poderia ser a chance de conhecer aquele que magnetizaria seus ideais momentâneos. Não sabia o que dizer, não conseguia. Temeu seu defeito físico, negou a idéia de Duda.
“Certeza ?! A galera é gente boa, você vai ver. Vamos ! Não fique acanhada não...”
Lembrou dos conselhos da mãe. Olhou Zé Sérgio, sujeito-amor sem nome, desconhecido que lhe ternava os brios daquela precisão. Quis, não quis, teve medo, criou coragem, dissipou-se no mesmo momento...
“Você não pára de olhar pra lá. Que é ?!”
Medrosa, logo voltou seu rosto para a garota próxima. Resolveu estralar os dedos, logo parou. Roeu uma unha em silêncio.
“Cê parece, sei lá, apaixonada... Tá interessada em algum dos garotos ?!”
Vermelhou a pele, a mão suou ainda mais.
“Não precisa responder. Já dá pra ver. Tu tá afim de quem ?!”
Nada disse.
“Deve ser pelo Zé Sérgio, né ?!”
Zé Sérgio ?! Seria este o nome dele ?!
“Zé Sérgio é o loirinho, o mais forte e alto. Aquele de camiseta-regata amarela...”
Confirmou. Agora sua “rosa” tinha um nome, um símbolo que gravaria eternamente em suas memórias.
Naquela tarde primaveril não falou muito. Não era costume de Salomé agir assim. Mesmo assim ganharia uma amiga e um amor, um nome para ninar quando a insônia vier de forma repentina. Não dormia se pensava nele, acordava e bebia água, um xixi, nada resolvia. Talvez fosse amor, o primeiro enamorar, o primeiro namorado...

Duda, depois de tudo, passou a ser guia, amiga, estrela, sombra, anjo de Salomé. As duas viviam juntas entre fuxicos e mexericos, segredos e risadas. A mãe da manca gostava de ver a filha neste frenesi. Quem não simpatizava muito com esta amizade era o pai de Salomé. “Desconfio de branco fazendo amizade com crioulo...”, resmungava num bufar constante. Mesmo assim concordara que a filha estava de novo ânimo, parecia feliz pela primeira vez na vida. Não sabiam do Zé Sérgio ou das sensações que ela sentia. Não confessava a ninguém, nem à melhor amiga. Esta desconfiava, acreditava por destino, sentia os rubores da outra quando o nome do menino é mencionado.
E então ia acontecer uma tradicional festa no tradicional clube da rua. Só iriam sócios. Todos da turma eram sócios, inclusive Zé Sérgio. Salomé nem condições tinha para tal.
“Ué, mas eu sou sócia. Você vai sim !”, ordenou Duda.
Ela a observava com aquele olhar de submissa. Invejava tudo nela: a brancura de sua pele, o negrume de seu cabelo longo, o hálito aromático que exalava em cada palavra, a confiança, a superioridade da amiga. Achava que se fosse um pouco parecida com ela, talvez o Zé Sérgio passa-se de um sonho insano para uma concretização tocável.
“Ouviu, Salomé ?! Cê vai sim !”
Salomé argumentou que não tinha vestido decente, que mancava duma perna, que zombariam dela com certeza.
“Vão nada. A turma é finíssima, podes crer... Além disto, o Zé Sérgio vai tá lá...”
A simples menção da existência deste nome causava tormentas no seu estômago. Lembrar dele era bálsamo e enxofre, calor e frio, calma e tempestade.
“Vou ficar decepcionada se você não for. Vai ser a chance de você de aproximar do Zé Sérgio. Você vai e tá definido ! Qualquer coisa eu te empresto um vestido, sei lá...”
Apenas escutava os argumentos de Duda. Achava tão bonito os dentes em aparelho, borrachinha verde, coisa aburguesada. Vergonhou-se da sua arcada, tão torta, tão amarelada, cariada pela ausência de tratos. E o hálito provido daquela boca ? Salomé passa a língua no céu-da-boca e sente asco do gosto de bolo alimentar que dele derivava.
Depois de mil explanações, Salomé foi convencida a ir. Para a ocasião, a mãe da menina fez questão de confeccionar a vestimenta. Retalhos das patroas, como sempre. Como mágica o vestido pareceu bonito, simples, contudo requintado. Poucos diriam que não fora comprado. Pelo menos foi o que a Duda mencionou quando foi buscá-la naquela noite de sábado. E pela primeira vez sentava num carro que não fosse o antigo Fusca 69 do pai ou os ônibus em que sempre andava quando ia com a mãe ao centro da cidade...
O pai da Duda quis disfarçar o certo estranhamento em saber da amizade da filha com uma “de cor”. Mas como fora antes avisado, nada comentou e até a cumprimentou com requinte: “Oi Salomé...”. Ela responde e, ao mesmo tempo, transparecia hipnotizada pela situação. Duda lembrava uma daquelas ninfas de quadro renascentista: tinha o cabelo encaracolado e com uma fita de seda azul. Encantou-se com o azul da fita, com sua textura, com o brilho que emanava, feito astro do céu à noite... E na boca maquilada, bochecha com pó-de-arroz, o cheiro da colônia que parecia uma flor... Sentiu vergonha de existir, pensou em pular do carro e procurar o vão mais escuro para lá dialogar com os ratos e baratas. “Não quer passar um batom, Salomé ?!”, pergunta a outra. Esta nega, escondendo humildemente sua situação.
A porta do clube estava cheia, muitos penetras tentando uma brecha para uma entrada gratuita. As duas descem e Duda ouve com respeito às ordens do pai. E então adentram o recinto. Salomé encanta-se com os balões que adornavam o grande salão, as mesas com toalhas de um branco digno de promessa de propaganda de sabão em pó da TV. Muitos jovens reunidos em pequenos grupos, alguns já na pista de dança. A manca procura inconscientemente por seu ser amado. Duda a chama, Zé Sérgio está do seu lado. Ela sua frio, solta um sopro e dar um passo, logo se lembrando da sua debilidade. Então paralisa, não saindo do lugar. “Venha Salomé...”, insiste Duda. Zé Sérgio parece sorrir, a manca nada faz e tenta disfarçar. Mumificada pelo momento, estática ficou e em nada esmiuçou. Então a prenda fez-se presença e Zé Sérgio aproximou-se das garotas com um sorriso e um longo cumprimento. “E aí, Duda, não vai me apresentar a novatinha não ?!”, pergunta. A manca ruboriza-se e Duda faz as apresentações. “Nossa, como você é encantadora...”, menciona o rapaz. Naquele instante qualquer dito de seu amado parecia-lhe poema, estrelas que saiam do céu da boca do seu declamador, a encarnação dos príncipes que via na TV... Zé Sérgio era certamente o ser mais perfeito, criatura mais bela, a calmaria de suas bonanças, raio de sol no negrume de suas incertezas, a paz... Por frações de eternos segundos sentiu-se num sonho, num crepúsculo lindo em que não era manca ou inferior, um espectro que refletisse tudo de bom, espelho em que visse apenas o sorriso de Zé Sérgio, nada mais... Foi-lhe então divino quando o mancebo carregou-a para o palco de dança e juntos dançaram uma, duas valsas. Perto dele não sentia vergonha de seus defeitos, qualificava-se espontânea, tornava-se flor. Não quis beijá-lo, contudo: sentia-o como uma porcelana frágil, pensou que o mais simples ósculo seria profanação, macular a coisa mais pura e sacra que tivera a honra de tocar... O ar do respirar de Zé Sérgio, o braço que contornava sua cintura, o mero peso do dorso amado, Salomé não racionalizou nada ali. Apenas deixou-se levar pela força do rapaz, que estendia o braço e confidenciou-lhe um lugar onde poderiam ficar a sós.
Foram para os fundos do clube, um terreno baldio e de pouca iluminação. Estavam cara a cara, um a olhar pro outro. Salomé passou levemente o olhar para o céu e nunca lhe pareceu tão brilhante os astros. Depois olhou para os olhos de Zé Sérgio e percebeu o clarear dali. Então constatou que não eram as estrelas ou a lua minguante que estavam em brilho, simplesmente era o olhar de seu amor que imperava e fazia daqueles apenas seu receptor e refletor. Foi quando recebeu o primeiro empurrão.
Era dez, onze, uma turma, a mesma turma de quem tivera medo dias antes na pracinha. Caída no chão, notou que dentre o grupo estava Duda. E começaram a insultá-la, zombaram da sua deficiência, disseram-lhe que não era decente e nem aceita por ali, que deveria pagar pelo pecado de nascer mulata, pobre e manca... Pela parte de Duda não sentiu nem rancor ou espanto. Contudo triste foi saber que Zé Sérgio ria e repetia todos aqueles argumentos. E foi ele quem ordenou o apedrejamento. Todos, um a um, uma chuva de pedra. Salomé debatia-se para desviar, mas não adiantava. O sangue já encharcava seu rosto, sentiu cada hematoma, cada ferida, buracos na testa, dentes quebrados... Os meninos ainda insistiram em chutes violentos no dorso da garota. Saciados, alguns ainda cuspiram-na e jogaram punhados de terra e cinzas de cigarros no rosto já debilitado. Em gargalhadas saíram de fininho, Duda ainda olhou para trás, mas não se compadeceu. Salomé teve dificuldades para abrir os olhos, contudo ainda num lance de consciência, lembrou-se do pai ao violão e da canção que este cantava para ela. Tinha só cinco anos na época, mas tinha decorado e guardava consigo a estrofe que mais gostava: “... Fique assim, meu amor / sem crescer / Porque o mundo é ruim, é ruim e você / vai sofrer de repente / uma desilusão / Porque a vida é somente / Teu bicho-papão...”. Mal se lembrou em riso a última sílaba e calou.

Depois da sentença, os envolvidos receberam uma pena alternativa e pode cumpri-la em liberdade. Já o local da chacina tornou-se um jardim por decisão do dono do clube, mas logo fora entregue ao abandono das ervas-daninhas e desmanches do tempo, sendo um local pouco freqüentado pelos sócios. Salomé então se tornou flores murchas num canteiro cheio de saúvas e caracóis, sem uma placa ou lápide para ser eternizada.

quinta-feira, 8 de novembro de 2007

ODE DE PAPEL E MAR

Ode
onde
a onda
descansa
e nunca alcança
a margem...

do papel,
apenas palavrinhas turvas,
curvas tortas,
sempre retas buscando o mar.
O mar
a margem
miragem
ira, irá
de lá pra cá
irá, irão
o mar, a onda, a espuma,
o barquinho...

de papel
meu amor versado
meu verso inverso
mil corações desenhados,
coisa passageira...

A hortênsia fugitiva
flor que purifica o mar
algo que não soube amar
a terra
o trovador
aquele que trova a dor,
trovoa ardor
que voa no céu pálido,
que atravessa desertos áridos,
que ara, comovido,
o jardim ávido
destes desamores seus.

quinta-feira, 1 de novembro de 2007

SILOGISMO POLARÓIDE 1.0

O amor é cego...
e interesseiro !
O amor quer enxergar,
e a melhor visão é oferecida
pelas melhores lentes ou colírios.
O que é melhor é necessariamente comprado.
Portanto, concordaremos que o amor
sempre, sempre
precisará dos vinténs
para assim vingar...

domingo, 28 de outubro de 2007

CHORANDO PELO LEITE CONTAMINADO

Um choro em silêncio, apenas um cavaco e nada mais. Uma voz mais aguda e a agonia: chorando pelo leite contaminado. É quando o operário, depois de mais um diário em labuta, chega em sua casa, pão e a caixa de leite em mãos. Orgulhoso por poder comprar tal sustento do lar, recebido com festas pelos filhos e com carinho pela esposa, após a barba feita e o prazer de sentar em sua poltrona, o sopetão do jornal: o leite, aquela caixa que custou algum por cento de seu salário, está contaminado com soda cáustica e água oxigenada. Que mal fez o trabalhador comum pra tal fim ? Com que justiça conclamará pelo direito de pagar por um bom serviço ? Não terá ele o simples direito de alimentar decentemente seus filhos (já igualmente fora seu suor no trabalho) ?
O episódio recente e tão em voga na mídia duma fábrica de leite que adulterou caixas de longa vida com substância que não deveria estar na sua cadeia alimentar desencadeia toda uma discussão sobre até onde o capitalismo vigora sobre o lógico-humanitário. Será que os donos desta indústria láctea não imaginou que um de seus entes poderia tá ingerido soda cáustica e água oxigenada no lugar dos nutrientes do leite ? Então no capital impera a lei do “pimenta no olhos do outro...” ? Ou então a lei do Gérson, aquela do levar vantagem em tudo ? Porra, só chorando mesmo... Chorar um Ernesto Nazareth, um Zequinha de Abreu, um Pixinguinha na flauta de Altamiro Carrilho... Chorar esta lágrima de ser brasileiro, este protesto mudo, este estardalhaço sem sentido, chorar pela fome, pelo desemprego, pelo sossego de tá em minha casa enquanto muitos têm o céu como teto e o sereno como cobertor... Chorar pelas moedas que dou ao mendigo e o resto do tomate que deixo de comer no almoço e que vai para a cestinha de lixo da cozinha, chorar o político corrupto que elegi e pelo líder estudantil que não prestei atenção, chorar pelo Youtube que tenho, chorar pela exclusão digital, afalbética, moral, de criticar... Chorar por ser filhinho de papai, por hippie que têm papai e mamãe para manter meus vícios, minha bagana, minha Montilla, por ser duro e nem ter dinheiro pro Halls de beijar a menina mais bonita, chorar pelo toque duma canção, da alma, da aula de filosofia que me despertou pro outro e pro outrem, pelo ontem que não valorizei, pelo pôr-do-sol que nunca dei a mínima bola, pelo papel jogado no chão, na rua, pela rua de meus tempos de brincar, pela morte do avô que eu não dava o devido valor, chorar a desgraça alheia, o rebento que nasceu, pelo aleijado que passou no Teleton, pelo casalzinho da novela, pelo Zé do Caroço que lá está, grita e eu não o ouço... Chorar, enfim, a desconfiança do que vou comer ou beber, do duelo entre carnívoros, vegetarianos ou herbívoros, pelos poderosos que se acham mais pau que todos nós e se acha no direito de nos enganar com misturas que parecem feitiço de bruxa...
Choro este choro e produzo esta coisa anti-literária, coisa de causar horror nos academicistas e nos intelectualoídes que criticam texto por MSN (bobocas que não sabem o que é tomar um sorvete na praça ou namorar no portão – destes que só sabem falar mal dos políticos, do mundo, da gente... Ah, vão cagar esta gente toda !!! Quero poder escrever minha joça em paz !!!!!), este anti-texto, coisa podre, pequena, menor, pobre, sem sentido ou estilo, nunca digno de “Carta Capital” ou “Cult” ou qualquer panfleto universitário de fora-alguém, choro meu protesto, meu proclamar, meu desabafo, minha saudade, minha putalidade, minha vontade de gritar, meu silêncio, minha redundância, meus erros de português, minha preguiça...
Todo choro pela bebida degustada, que deixa doidão ou com raiva... E é como diz Raul no seu disco voador: “E quando eu olho/ O mar com petróleo/ Eu rezo a Peixuxa que ele fisgue esta gente...”

(Texto meu publicado no site "Rizoma Tapuia", no dia 26/10/2007)

sexta-feira, 26 de outubro de 2007

O CASAL NUMA SEXTA-FEIRA

Há um casal de namorados na praça - estão exatamente na frente do meu campo de visão.
Exalam juventude e vontades duma vida lasciva.
Não estou só -
ouço Paulinho da Viola num mp3 e leio Bukowski;
nada mais.
Estranhamente não espero ninguém,
minha vida toda é assim - uma não espera de nada...

O casal brinca com suas línguas, com os movimentos do corpo,
com esta juvenil oportunidade irresponsável...
A garota usa farda escolar.
Me parece ser horário de aula.
Mas a garota em nada parece se importar.

É manhã, uma quente manhã de sexta.
O casal parece enroscar-se na busca do obvio.
Disfarço meu olhar buscando as palavras do velho safado,
não é empecilho para uma observada mais sacana
na sacana cena que expio.
Assim, sem pio
desvio-me,
sou um pobre coitado.

quinta-feira, 25 de outubro de 2007

URBANIDADES

“21...”
“21 ?! B...”
“Ok... 22...”
“22... C.”
“Confere... 23...”
“D...”
“D ?!”
“É. D !”
“Peraí: é D ou E ?”
“D... O “é” foi de confirmação. Saca ?! “É” de ser...”
“Tá certo, tá certo...”
“Quem tá certo ?! Eu ou você ?!”
“Não, sua anta ! Tou concordando com sua explicação do “é”...”
“Mas quê E ?! Eu marquei D !”
“Ai,ai,ai... Que coisa mais confusa ! Acho que eu tô precisando duma breja... Ô do isopor !!”
“Sim, mas me diz aí: a 23 é D ou E ?!”
“Como assim “D ou E” ?! Eu marquei C...”
“C ?!”
“É. C...”
“Caramba: você marcou C ou E ?!”
“Puta-que-pariu, Popeye !!! Eu marquei C !!!”, logo vira-se pro ambulante, “Tem cerveja aí ?!”
O ambulante nega.
“Poxa vida... E agora ?! O Hermes é daqueles que só entrega a prova no último minuto. Vá cagar viu...”
“Pois é... O cara estudou muito. Acho que ele passa desta vez...”
“Tomara. Só assim ele pagar a grade que prometeu...”
“Já eu nem peguei na apostila...”
“E eu nem tive tempo pra isso...”
“Qualé de “não tive tempo”, Silas ?! Tu é o maior vagabundo...”
“Tá bom, tá bom... Na 23 você marcou D mesmo ?!”
“Foi. Pelo menos foi a que eu achei mais certa... Sei lá, cara. Chutei total nesta...”
“Bem, eu acho que poderia ser todas, menos a D. Você calculou a porra da equação ?!”
“E tinha que calcular ?!”
“Evidentemente, Popeye !!!!”
“Bem, eu vi qual era a mais bonitinha...”
“Bonitinha ?!”
“É... Ah, sabe de uma: vamos procurar umas Brahmas pra tomar...”
“Cê tá certo ! Porra, já é quase seis. O Hermes demora pacas...”
“A Betina tá vindo aí...”
Betina se aproxima e cumprimenta os dois – Silas, o mais baixo e de barba por fazer, e Eugênio, vulgo “Popeye”, mais forte de corpo e cabelo cortado na máquina um.
“E aí, gatinha ?!”, pergunta Silas, “Como foi ?!”
“Me fudi total !!! Acho que vou zerar na prova...”
“Caralho ! E olha que você estudou...”
“Estudei bosta ! Dei umas garimpadas, brinquei muito... Dei uma olhada rápida na parte administrativa, mas não me valeu de nada. Porra, os caras parece que falam grego !!!”
“Acontece, ninha, acontece...”, tenta consolar Popeye.
“Outros concursos virão né ?! O edital do ISPP sai pra daqui um mês...”
“Foda-se este edital ! Tou afim é duma breja geladinha. E aí, vamos ?!”, convida Silas. Nunca demonstrara, mas tinha por Betina um amor platônico acima de qualquer platonismo.
“Bem... Mas não vai demorar muito não, né ?!”
“Qualé, gata ?! Só o suficiente. Tu não tá estressada desta merda de prova não ?!”, pergunta Popeye, também bastante interessado na garota.
“O problema é só o Hermes...”, diz Silas.
“O Hermes tá fazendo a prova ainda ?!”, pergunta Betina pelo seu secreto desejo.
“E não ?! Aquele só sai junto com os três últimos da sala...”, responde Popeye.
“Nem lembra, cara... Pior é que os três últimos só podem sair juntos. Porra !”
“E por que a gente não vai antes ?!”, indaga a moça.
“Porque este concurso é tão fodido que colocou a gente pra fazer a prova neste fim de mundo ! Tá vendo aí: não tem um bar decente nesta pocilga !!!!”
“Calma, Silas... O Hermes tá vindo aí...”
E realmente o Hermes estava saindo da escola pública onde o grupo fizera a prova. Vinha com cara de cansado, como um soldado retornando da guerra. Lânguido, dá um sorriso para a turma, logo se aproximando.
“Acabou, finalmente...”, diz.
“E aí, como foi ?!”, perguntam ao mesmo tempo.
“Gente, sei não...”
“Este discurso já é velho... Ele sempre fala assim e acaba passando. Só não tá num bom emprego porque naquele concurso do banco ninguém foi chamado e num outro ele ficou por um pra passar...”
“É verdade, Silas ! O cara é crânio !!!!”
“Mas a coisa não funciona assim não, Popeye... Um concurso é diferente do outro...”, diz Hermes, que não olha pra Betina, “...neste, por exemplo, a parte de Matemática e Informática tava dum horror...”
“E o que você achou da parte administrativa ?”, pergunta Betina.
“Moleza. Acho que vou fechar...”
“Então, vamos ao bar !!!”, propõe Silas.
“Bar ?! Hum, vai dar não...”
“Qualé, Hermes ?! Vai fulerar agora ?!”
“É que eu quero participar de um chat que vai discutir e corrigir as questões da prova...”
“Vai tomar no cú, cara !!!! Tu vai deixar de tá com seus manos pra ficar pendurado num computador,corrigindo prova ?!”
“Fala com ele assim não, Popeye...”, defende Betina, “... se ele não ir...”
“Pombas, Betina !!! A gente ficou este tempão todo esperando pro porra não querer ir ?! É uma filha da puta duma sacanagem, não concorda ?”, expressa com fúria Silas.
“Bem, gente... Acho que dá pra tomar uma cervejinha...”
“Assim que se fala, Hermezão !!!”, diz Popeye aproximando-se dele e o entrelaçando os ombros.
“Mas tu tá indo por pressão é ?!”, questiona Betina.
“Me deixa em paz, garota ! Tou indo porque quero, caralho !!!”
E então entram os quatro no Gol-94 de Silas. O dono na direção e, para o desgosto de Betina, Hermes na frente. No banco de trás, Popeye tenta encostar o máximo possível na garota.
“Sim...”, pergunta Silas antes de ligar o carro, “Ô Hermes... Na questão 23 tu marcou o quê ?!”
“23 ?! Hum, deixe-me ver aqui no caderno...”, e ele abre o caderno de provas.
“A 23 tava água. Letra D...”, diz enfático.
“D ?! Jura ?! E você calculou ?!”
“Claro. A formúla era bem simples...”
“Mas D ?! Justo D ?!”
“Por que o espanto ?! Você marcou qual ?!”
Nem precisou o Silas responder, pois o Popeye logo interviu no colóquio:
“Ele marcou C...”
“A C ?!”
“A letra “A” não... Ele marcou a C.”
“Foi o que eu disse, Popeye... Você marcou a C, Silas ?! Mas a C não poderia ser...”
“E posso saber por quê ?!”, pergunta Silas.
“Hum, deixa-me ver aqui... Já sei qual foi o seu erro...”
“Então diz aí...”
“Você esqueceu de elevar o número ao quadrado.”
“E tinha que elevar ?!”
“Claro ! A questão pedia a resposta em número inteiro...”
“Putz ! Que vacilo...”
“Pôxa, galera ! Vamos logo aí !!!”, diz em grito Popeye, “Minha goela tá seca aqui e o clima aqui atrás tá pegando...”
“Tá nada !”, fala em clamor Betina.
Finalmente saem.

Já no bar, Hermes folheia por várias vezes o caderno de questões do concurso. Betina o observa. Popeye palita a última azeitona do prato e olha levianamente para a garota e Silas faz as contas.
“Hum... Nove cervas, mais os aperitivos...”
“O guaraná que eu pedi eu pago...”, proclama Betina.
“Mais a do garçom... Aí vai dar... uns...”
“Se você quiser eu pago a sua parte...”, fala Popeye.
“Obrigada. Mas eu pago...”
Diante tal conclave, Hermes parecia aéreo.
“Buceta ! Errei quatro questões...”, diz, “...acho q vai dar pra passar não.”
“34 reais e 90...”, anuncia Silas.
“Você só errou quatro questões ?”, pergunta Betina a Hermes.
“Pelo meu prognóstico sim...”
“Então você vai passar...”, fala Popeye.
“Sei não... A prova é da CESPE...”
“E o Kiko ?”
“O negócio é que se você erra uma, anula uma certa...”
“E é ?!”
“Obvio ! Cê não sabia não ?!”
“Nem fazia idéia desta porra...”
“Sendo assim eu já tô fudido...”, interfere Silas.
Popeye põe a mão no bolso da calça e tira de lá sua carteira.
“Hum... Colaboro com vintinho...”, diz.
“Belezal ! Eu tenho dez pilas. O resto á pra pôr a gasosa, né ?!”, explica Silas.
“Eu só tenho quatro reais...”, fala Hermes.
“Aí vai ficar faltando noventa centavos... Pior que o dono deste bar é muquirana pra caralho...”
“Deixa que eu completo...”, e Betina bota uma nota de cinco reais no meio das outras que estão na mesa.
“Massa ! Deixa eu ir lá pagar e trago seu troco...”, diz Silas, logo levantando-se.
“Sem grilo...”
“Então eu trago a de já ir...”, brinca Silas.
Betina concorda enquanto Popeye anuncia que vai ao banheiro.
“Hermes...”, com malícia fala Betina, “...acho tão legal este seu empenho nos estudos...”
“Bem...”, ele responde sem tirar os olhos do caderno, “...quem quer algo hoje em dia tem que pensar em passar num bom concurso público...”
“Pois é...”, e ela passa sua mão na mão dele, “...muito bom saber desta sua conscientização, da sua maturidade...”
“É...”, e tira a mão do alcance da mão dela, “...meu professor de cursinho dizia que a gente não estuda pra passar num concurso. A gente, na verdade, tem que estudar até passar num concurso. Amanhã mesmo eu começo a estudar prum outro...”
“O do ISPP ?!”
“O do ISPP, o do banco Gualdin, da Secretaria governamental... O estudo não pode parar !”
“Pois é, menino... Se você quiser formar um grupo de estudo... qualquer coisa é só me chamar...”
Antes que Hermes dissesse um tímido “sei lá, pode ser...”, chega Silas com mais uma garrafa de cerveja.
“Atrapalho ?!”, pergunta.
“Não...”, fala o outro.
Não foi o pensamento de Betina, febrilmente mais encantada por aquele de óculos de grau e camisa pólo verde. Logo chega Popeye e todos terminam a bebida num silêncio interrompido por piadinhas ou comentários sem sentido. Popeye aproxima-se mais de Betina, que parece permitir a ousadia. Silas percebe, mas nada comenta ou poderia fazer para o contrário. Hermes também observa o clima do casal em potencial e não age em momento algum, a não ser para limpar as lentes dos óculos. Logo que os põe no rosto, resolve discretamente passar olhares para Silas, que não retribui a atenção. Guardava-lhe uma paixão secreta, discreta para não escandalizar, um fogo que parecia calor, um frio que carecia de afago. A noite termina com (mais uma vez) Betina trocando beijos com Popeye, Silas querendo desafogar suas mágoas no travesseiro e Hermes escondendo de todos a sua condição e seu querer pelo baixo com barba por fazer.
Assim foi, pelo menos até acontecer mais uma prova de concurso público.

terça-feira, 16 de outubro de 2007

CLAMAÇÃO

As vezes não sei
pra quê ou pra quem escrevo,
não sei se minhas palavras
terá o som
ou o ato devido.
E se meus versos vazios ganharão
hemoglobinas e fôlego,
como um Lego de construir,
ir e ruir,
qualquer negar ruim...

sábado, 13 de outubro de 2007

ATO

Para Paulo Autran

Ato:
ator.
Do ventre,a personagem
da personalidade, apenas o instante...

Ato
Fim da cena
máscaras (boas e más caras) caídas na zombaria do desvelar...
As cortinas se fecham,
há apenas o brancume do pó-de-arroz no camarim.
Ditirambo distraído e dissonante,
a dança do bufão que não seduziu a colombina,
é apenas a luz
somente o ato em mil atómos que formam alicerces:
o ator então,
de tão atormentado,
mente
a dor que nunca deveras ter.
Contudo ainda a sente,
como se algum chamado pudesse impulsionar
o ato,
o auto, Autran...

sexta-feira, 12 de outubro de 2007

PALAVRA - KONKRETUS

Ao som de "Payback" (James Brown)

Lá vem
Lá vem...

Lavem:
a palavra !

batam palmas
palma na carne
batam na carne
lá vem
lá vem...

Lavem: a palavra !

lavrem
e louvem,
larva -
a palavra !

Dita santa,
dita puta
palavra urra
palavra esmurra
palavra-torre...

Lá vem
Lá vem
num tic-tac de trem,
lá vem, lá vem
lavem-na
e ponho-na de molho:
está suja,
palavra suja,
palavrão...

Lavem,
lavem,
lá vem:
a palavra !

quarta-feira, 10 de outubro de 2007

PARA NÃO SE RE-CITAR

Entregue aos vícios torpes,
o poeta desintegra em suas palavras,
nas suas palavras de entrega,
no tragar de sua vida...

E enquanto há milhões de Pessoa numa só pessoa,
o espaço dubil entre o insano e as horas.
Talvez a Philosophia esteja dormente,
talvez a Filosofia não dê o capital suficiente,
talvez tudo não seja uma canção.

Encaminho-me nas veredas que tudo me circunda,
no destino traçado em minha mão...

Bulimia cativa, ativa do instante de falar
poeta-escriba dos tempos pueris.
Talvez a beleza esteja no nada,
nada de mais belo,
tudo demais é desafiante.

E assim vou entre o belo e o inconstante,
nesta memória que cada dia parece despedaçar.
Instigo-me entre axiomas e aforismos,
sou da vida parida e parada.

Nunca sei se falo,
deveras subtrair o que odeio.
Atear qualquer Deus travestido,
teço a parte rude que em mim
quer brilhar.

SEM PRÉ-POESIA

Esforço pro
poema vir.


o poema vai,
poema então -
vindo,
o poema rindo
da minha cara...

Rindo, franco
do meu fraco rosto
diante do mal gosto
do papel em branco.

segunda-feira, 1 de outubro de 2007

NEM SÓ DE SONETOS SE VIVE UM GRANDE AMOR

Nem só de sonetos se vive um grande amor -
constatei, embasbacado, enquanto caminhava.
O amor precisa de centelhas,
que vão muito além de palavrinhas...

O amor precisa andar, tomar sorvetes, comprar flores.

Amor, quando abandonado ao léu
assim, tristinho e sem nada nas mãos,
amor sem asas não chega ao céu,
amor paupérrimo não sobrevive...
o amor precisa de sustentos
o amor precisa de tentos, mil e duzentos
para assim ele durar...

Então, amor meu
não posso viver só com meus ditames
e pobres níqueis que em nada vingou, aconteceu...
Amor não vive de esmolas líricas:
amor precisa de regar, de regras
e ter como quê comprar.

domingo, 30 de setembro de 2007

HORÁRIO DO CAFEZINHO

As duas na repartição, horário do cafezinho: uma paradoxal a outra – a mais jovem, recatada, cabelo preso em coque, vestido longo e longe de qualquer devassidão, nenhuma maquilagem, casada. A mais velha, fogosa, vestido com fortes estampas de frutas tropicais, farto decote e colônia barata, casada e com amante. E deste era que, na exata conversa, a mais velha declarava vantagens:
“Ontem de noite meu boyzinho me fez chegar às nuvens...”
A mais nova (de nome Odeth) não gostava de ouvir tais histórias, mas por educação (ou por ser tão recatada), não a recriminava e ouvia com paciência. A mais velha (popularmente chamada de Zizi) continuava:
“Era umas posições que eu nunca imaginei que existissem... Ah, muito acima de qualquer papai-e-mamãe da vida...”, dizia entre suspiros e um constante limpar no colo do decote.
Odeth apenas pega o adoçante e o adiciona (quatro gotas, nada mais) no copo de plástico, quase a metade de café.
“Seu marido já quis te chupar ?!”, perguntou Zizi.
A mais nova quase cuspiu o café de volta. Respirou fundo e perguntou:
“Como ?!”
“Seu marido... ele já quis...”, e fala baixinho, “...lhe chupar ?!”
“Bem...”, não sabia o que responder diante tamanha devassidão.
“Tu não sabe o que tá perdendo...”
“Meu marido é homem de bem, de Jesus. A gente não faz estas...”, pensou em palavra feia. Logo se censurou:
“...estas devassidões, pecado mortal da carne !”
Zizi exagera nas colheradas de açúcar. Nunca ligara para suas taxas de diabetes.
“Pecado ou não, o que sei é que é bom pra cacete !”, disse.
Odeth deixara de ruboriza-se com o palavrear da colega de trabalho. Contudo torcia para que sua transferência de setor acontecesse logo. Casara há pouco tempo. O marido era filho do pastor do templo que iam todas as quintas e domingos. Eram jovens, o marido mal completara 24 e estudava Teologia numa faculdade particular - bancado pela família.
“Meu boyzinho me pegou pelo cabelo assim, sabe, tipo Neandertal...”, diz Zizi.
“Acho que já tá na hora da gente voltar pro escritório, né ?!”
“Qualé, Deth...”, sempre a chamava assim, ocultando a vogal inicial do nome. Prossegue:
“Relaxa, ainda temos uns minutinhos...”. Zizi tinha 43, mas sempre mentia a idade. Casou-se cedo (e com o primeiro namorado) e teve três filhos. Detestava o marido e sempre que possível o traia. Agora se vangloriava de ter um caso extraconjugal com um garoto de vinte e poucos... Detestava tanto seu nome original (Zilmar) que exigiu (e conseguiu) mudar seu nome no crachá da repartição.
“Uma boa chupada no grelo leva uma mulher as alturas !!!”, diz a mais velha quase em grito e risadas.
“Eu vou voltar pro escritório e...”

Odeth dormiu com aquela conversa na cabeça. O marido demorava em chegar. Aliás, nos últimos meses assim era: ele chegava muito depois das onze, se trocava, tomava uma ducha, vestia pijama e dormia. Há tempos não a procurava. No começo ele respeitava tal ritual: como uma boa cristã que era, aceitava e entendia que o serviço do marido era deveras pesado. Mas aquelas palavras da Zizi não saia de sua mente. “Nunca fui chupada... Nunca fui chupada...”, pensou alto. Recriminou-se num tom de voz bem baixo, dando pequenas palmadinhas na boca. Pegou a Bíblia que sempre ficava em cima da escrivaninha e leu o último versículo que fora trabalhado em sermão pelo pastor. A cabeça não se distraia, então folheou o sagrado livro, parou no Cântico dos Cânticos de Salomão: “Beija-me com os beijos de tua boca; porque melhor é o teu amor do que o vinho...”. Parou e olhou pro teto. Deu uma respirada, olhou para o relógio, dez para onze. Voltou à leitura para algum outro versículo do mesmo Livro: “Eu sou um muro, e os seios, como as suas torres...”. A palavra “seios” deixou-lhe estranhamente excitada. Retornou a Bíblia ao seu lugar de praxe e levantou-se. Olhou-se de corpo inteiro no espelho. “Sou bonita, mas nunca fui chupada...”, indagou. Logo concluiria: “A decrépita da Zizi é bem mais amada que eu...”. Então se dirigiu ao banheiro e lá se despiu. Entrou no box, deixou-se inundar o corpo da água morna. Maculou-se, ineditamente, por uma masturbação natural, sem racionalismos ou a moral, tocava seus seios com uma volúpia escondida, curiosidade infantil, ar de menina, de mulher. Os dedos circulavam pelos mamilos enrijecidos, nunca sentira prazer igual. E numa hipnótica prece, dizia “Nunca fui chupada, nunca fui chupada, quero ser chupada...”. Logo caíra em si. Então se limpou da vergonha e enxugou-se da água.
Já vestida de sua camisola composta e adornada de florzinhas singelas, deitada em seu cobertor, viu no despertador da escrivaninha o horário em que o marido chegara: onze e onze. Sorrateiramente sentou-se na cama, tirou os sapatos, desafogou a gravata, desabotou a camisa. Levantou-se, dirigiu-se ao banheiro, demorou uns dez ou quinze minutos. O barulho da descarga fez Odeth rezar pelos pecados cometidos no mesmo espaço em que o vaso se encontrara. O homem chega, levanta a coberta e adentra-se ao leito. Odeth finge acordar:
“Miquéias... Chegou tarde meu bem...”
O marido beija-lhe a testa dizendo:
“O trabalho, a faculdade, tudo amor...”, e vira-se pro lado desejando boa noite.
“Miquéias...”, chama novamente a mulher.
Miquéias apenas grunhe.
“Sabe...”, prossegue a esposa, “...Eu tô usando aquele perfume que você adora. Cê percebeu ?!”, insiste Odeth, passando seu mindinho por entre os caracóis capilar do marido.
“Hum, hã ?! Ah é ?! Poxa, que bom... Mas agora me deixa dormir Odeth... Tou cansado...”
Odeth ainda beija-lhe a face barbada por fazer, o pescoço... Ali percebera uma marca roxa não antes existente. Não quis questionar o motivo daquilo. Ainda olhando para o marido por dormir, pensou no tempo em que não faziam amor. Pensou na mancha quase hematoma no pescoço do cônjuge, pensou que ainda não fora chupada... Virou-se para seu canto de descanso e lá adormeceu.

Odeth adiantara seu horário do cafezinho. Esperava por Zizi, que não tardara em chegar.
“Zizi...”
“Oi Deth !”
“Posso lhe perguntar uma coisinha ?!”
“Evidente... Por favor, me passe o açúcar...”
Odeth lhe passa o recipiente. Depois pinga as mesmas quatro gotas de adoçante no seu já frio café.
“Sabe...”
“Pode dizer...”, e Zizi põe a boca na borda do copo, antes lhe soprando o interior.
“Você ontem se encontrou com seu...”
“Com meu boyzinho ?!”
“É...”
“Sim.”
“E que horas foi ?!!”
“Hum... porque este assunto assim agora ?!”
“Sei lá...Curiosidade...”
“Acho que foi por entre as oito, nove...”
“E vocês se encontram aonde mesmo ?!”
“Num motel na Lapa...”
“Certo, certo... Quantos anos o seu boyzinho ?”
“Não sei ao certo... Creio que tem a sua idade. 24 ?!”
“É...”
Odeth (mais corada que tudo) bebe rapidamente o resto de café no copo. Olhando pra Zizi, pergunta:
“A última: creio que você nunca me disse o nome do seu amante, né ?!”
“Não, nunca disse... Mas nunca falei porque nem eu sabia qual era. Ele usava um apelido. Mas ontem, enquanto ele tirava um cochilo, eu verifiquei no RG dele... O nome dele é Miquéias... Miquéias dos Santos...”
Odeth não queria escutar o nome que ela já desconfiara. Disfarçou o abobalhamento, a consternação, a autoflagelação, a raiva. Abriu a boca discretamente, fingiu tossir e agradeceu as informações. Quando Zizi já se virava na direção oposta à cafeteira, Odeth aborda-a em sopetão
“Perdão, Zizi... Posso lhe perguntar só mais uma coisa ?!”
“Claro...”
“Ontem ele te... bem...”
“Ele o quê ?!”
“Ele...”, e deixou que se fizesse voz aquela ordem de seu inconsciente, “...te chupou ?!”
Zizi riu e respondeu:
“Divinamente...”
Odeth deixou Zizi sumir por entre o corredor e somente rezou um Pai-nosso.