sábado, 20 de novembro de 2010

PARA MERSAULT CHORAR

“Poesia é a infância da língua.” (Manoel de Barros)

deixarei minha obra inacabada.
eternamente inacabada;
e mesmo que o vento entorte
o caminho de meu veredar,
mesmo que o ostracismo corroa
este meu emberbe verso,
não fazendo-o emblema ou coroa,
mesmo que o amor me deixe à toa...
ainda sim,
deixarei-a...

nunca concluirei meu concluir
não escaparei do âmbar lânguido, bárbaro
dos lábios que mornam meu terçã discurso,
não descorrerei jamais aquilo que parece óbvio
aquilo que se esconde de sombras,
margem que embaça minha imagem
transcendências inonimavéis do meu ser...

serei, senão, breve, leve
pluma mais pesada que o ar,
árvore deste seguir,
atómo que junta, constrói, destrói

para Mersault chorar
pros ídolos caírem
apenas para eu decompôr...

deixarei, ad infinitum
minha obra inacabada.

sábado, 13 de novembro de 2010

COMEU

Não acreditou quando finalmente a levou pra cama. Anos e anos de tentativas vãs, grana com buquês e cartões, serenatas com um grupo de falsos mariachis, enfim... Tantas tormentas pra ela cair justamente naquela manjada cantada:
- Cerveja é boa no verão, mas você é ótima em qualquer estação, boneca...
Não se sabia se era o uísque ou alguma conjunção favorável do zodíaco, mas aquele sorriso lhe era favorável numa proporção deveras inédita... Então foi logo perguntando:
- Sgt. Pepper’s ?! (sentou-se)
- Prefiro o Magical Mystery Tour… (tirou um cigarro do maço)
- Titãs sem Nando Reis ou sem Arnaldo Antunes?! (olhou pra ela, depois pro garçom)
- Arnaldo Antunes... sem os Titãs. (também encarando o garçom)
- Cama, mesa ou banho?! (pede uma long neck e pergunta se ela não quer algo)
- Em cima da mesa, após o banho, hum... mas acho que vou de cama. (aceitando uma outra dose).
- Na minha ou na sua?!
- Qualquer uma (respirou fundo)... menos motel.

E depois, ela nua numa cama qualquer (não sabia se era a dele ou a dela. Depois lembrou: era a de um motel), uma garrafa de champanhe aberta, uma bagana seguida de comprimidos de Rivotril... Ele procurando alguma coisa no frigobar, já de cueca, exclamando escatologias... olhou pro teto e viu-se pelo espelho. Pela veneziana, uma rala chuva, pediu um cigarro. Ele notara que ela acordou, disse um bom-dia ou boa tarde, não lembrava, caminhou em direção à uma cadeira. Nela estava estendida a calça, e nos bolsos, o maço. Acendeu o cigarro e passou-o. Ela deu uma tragada e perguntou-se, em consciência, o que estava fazendo ali... Ele parecia em êxtase, feliz por estar com ela, numa pocilga qualquer, uma vidraça molhada em gotas dançantes, parecendo cena de filme francês. Pra parecer mais convincente sua analogia, resolveu sentar-se ao lado dela.
- Você gostou ?! – pergunta ele.
Ela entendeu “gozou” (talvez fosse o efeito dos entorpecentes...), mas preferiu acreditar que ele houvesse dito “gostou”.
- Vem cá: você me comeu ?! – retrucou, levando o dorso.
Ele achou absurda a pergunta:
- Cê tá brincando, né ?!
Não achou graça.
- Óbvio que te comi... e você é muito gostosa!
Continuou sem achar graça...
- Mas, como... como eu... como assim?! – indagou e indagou-se...
- Ué, foi... bem... – não sabia o que argumentar – sei lá, você tava chapada, eu também...
Respirou mais um pouco, tirou fios despenteados e que caiam em sua testa, deu mais uma tragada e voltou à retórica:
- Tu só pode tá de brincadeira né... como eu, euzinha aqui, iria te dar?! Justamente prum carinha como você...
Humilhado, resolveu (só por ironia) jogar o velho e cacoete papo:
- Sgt. Pepper’s ?!
Ela fez um “hãn” inicial e, ainda embasbacada, respondeu:
- Ah, sei lá... nem gosto tanto assim de Beatles. – achando maluca esta conversa, mas inda sim continuou – Eu curto mais os Stones.
Pensou em jogar se ela curtia o Beggars Banquet (cujo nome fugiu-lhe da mente naquele momento), mas desistiu logo quando ela perguntou:
- E que provas você tem pra eu acreditar que tu me comeu?!
- Você acha preciso?!
- Ué... lógico!
- Só o fato de estarmos aqui já não te diz isto?!
- (carinha de desdém) Hum, não necessariamente...
- Bem... e como explicar você nua nesta cama?!
- (rosto desmontado, de espanto...) Nua?!
Então percebe a sua nudez escondida por entre lençóis vagabundos...
- Ei, olha pra lá!!!! – tentando esconder o corpo coberto...
Ele levanta, dá uma risadinha de canto...
- E você acha que eu já não vi?! – pergunta respondendo a questão...
Logo conclui:
- Vi e adorei...

Ela, mesa com amigas. Fazia uma semana que tudo havia acontecido. A conversa se desenvolvia apenas neste tema. Ninguém acreditava como ela havia dado prum carinha como aquele. Nem ela...

Resolveu então negar, dizer que nada daquilo tinha acontecido. Pareceu mentira, a vergonha transparecia em rosto... Então calou e consentiu.

Ele, mesa com mais chegados. Um dia depois... Entre cervejas e cigarros, apenas um tema: ninguém acreditava que ele havia comido uma mina como aquela... Nem ele.

Mas havia um vídeo em seu celular. Nada mais foi preciso dizer...