terça-feira, 28 de outubro de 2014

FOGO AMIGO


Pra musas picassianas... 

solicito, solícito,
que você seja meu solstício, meu fogo amigo,
candeia boa que me prende nos braços,
cadeia indissolúvel, laço que surpreende...

 e o quanto lhe cito, desdigo
sou cálido mendigo
calado, a querer seu umbigo...
me alimento do que você subtrai;
isto atrai meu sub
e meu id também...

idealizo utopias,
este resvalar, este toque, um triscar
trincar de dentes, um par de trincas:
eu, você e euvocê,
uma trilogia cornubar...  

e incubar de seus beijos,
parir de suas vísceras,
das entranhas estranhas de sua estrada,
entrada boa, parar
hipnotizado em seus transes...

e só, um nó
somente um nó, uno

nós dois atados em nós... 

DOLÊNCIA



o sono
não me faz mais meu dono;
faz-me dolente,
lento dos dons,
doente pros sons,
apenas um...

não se entende como sono de sonhar;
este nos faz magnos, belos, anjos...
falo do sono de estagno, paralisia,
a derrota que alicia,
rascante que impede o tino,
que não colabora com o destino
de ver enfim a querida amiga...

o sono vil, senil
não produtivo, apenas a perpetuar
roncos moucos a ronronar:

Zzzzzzzz... 

terça-feira, 21 de outubro de 2014

PEQUENA


Para Jéssica Alves, a moça da revistaria...  

veio assim, como a descoberta duma boa página,
ou como cheiro bom de folha impressa,
pintou sem pressa,
pincelando meu salivar, minha curiosidade...
me revista, revelando pistas:
de que está à vista
delícias do mês para saborear...

alimenta meu saber,
nosso estranho mundo de coisas superinteressantes,
olhos dissonantes,
sorriso a borear aquele canto de triviais notícias...

achando extraordinário
meu poemar ordinário,
talvez goste de mar,
disto ainda não sei...
curte Cícero?!
mísero detalhe;
talhos esmeros,
esquadros estrangeiros,
quero conhecê-la, lhe quadrinhar
esboçar qualquer carinho,
ser íntimo, mínimo, ínfimo...

pequena podendo ser pequena,
ou algo que amena,
dilema de convidá-la prum sorvete

ou somente contemplar tudo isto dum iglu âmbar... 

terça-feira, 14 de outubro de 2014

COF COF


tenho uma tosse
que me tísica,
que retorce minhas tripas,
vulcaniza meu interior...

tenho uma tosse amiga, manuelina
que me abraça feito dama,
me ama feito cão,
é meu defeito e unção,
uma oração sonora,
suave oscular do meu pulmão...

tenho uma tosse
ainda que fosse fácil,
tê-la mansa como um fóssil,
face a face com o mal,
um desamparado nasal,

cof cof,
confuso fuso em que entro,
razão em parafuso,
incômodo os cômodos,
os amigos, os próximos,

minha tosse noise,
tão nossa sendo subjetiva
compartilho-a íntima,

feito primeira impressão de namorada... 

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

NESTAS ARTES DO ENCONTRO...




Liam o mesmo livro. Não sabiam disto, contudo: ambos antípodas nos lados de trilhos do metrô, separados por metros, não se percebem... Cada um com sua leitura e ocupações diversas: ele um tanto desatento, passeava os olhos pela mesma página, lia repetidamente o mesmo parágrafo, observava a capa em bis, queria um cigarro ou uma bala, quiçá os dois... Ela concentrava-se numa passagem do livro, aquilo que lhe trouxera um estranho arrepio, uma inédita vontade de fumar ou de comer algo doce, olhou o relógio e analisou demoras em sua habitual condução... O sistema de som anuncia atraso numa das vias, ele bufa, observa as horas numa das telas da estação, deduz não conseguir chegar a tempo hábil de uma reunião marcada, resolve procurar uma bebida, decide-se por um café preto num médio copo plástico... Ela lamenta não fumar, tira umas balinhas da bolsa, desembrulha um, marca a página lida com o papel que sobrou; olhando pra frente, descontenta-se pela cafeteria estar tão distante. Ainda não se percebem...
O livro dele estava fechado, acabara de comprá-lo num sebo, edição antiga, folhas cheirando a mofo, imaginava ser uma raridade, “o último deste exemplar foi comprado a pouco por uma jovem...”, lembrou-se de cada palavra do vendedor... Ela, em êxtase por ter aquela obra que tanto desejara, não via a hora de chegar em casa, tirar os sapatos, fazer um chá verde, relaxar em sua preguiçosa e começar a devorar cada página, inebriando-se do odor velho de cada uma delas, o prazer do intemporal destino que alguns objetos saboreiam... Leu uma dedicatória encontrada em uma página, “De Gui para Cicí, maio de 1973”. Achou infantilmente bonito os apelidos, a forma de se tratarem, não sabia quem era o masculino e o feminino, mas torceu pro mencionado Gui ser a mocinha da história, “combinaria mais comigo, sendo meu nome Guilhermina...”, divagou-se sorrindo... Ele pegou o livro do mármore balcão da cafeteria, examinou-o mais uma vez, cheirou-o num repeat já exegese, pediu mais um café, calculou que o atraso do metrô iria retardar a entrega do trabalho acadêmico, premiou-se com um cigarro, logo reprimido pelo guarda municipal e devidamente apagado num vaso de plantas próximo. Riu daquilo tudo sem saber ao certo porquê...

Contrariando algum capítulo de novela, o tempo passou sem um ditame de “meses depois...” e os metrôs finalmente chegam. Ambos se tranquilizam: ele por não querer prejudicar o seu grupo da faculdade, ela por saber que seu tranquilo e utopizado momento íntimo com o livro recém-comprado dependia apenas de variações do movimento uniforme do trem... Cotovelos e empurrões, por sorte conseguem lugar para sentar. “Janela, que bom!”, a moça exclama em silêncio. Acomoda sua bolsa num canto; ele contenta-se com o lugar ruim que lhe era concebido. Os metrôs ainda demoram um tempo para começar suas epopeias diárias, muitos entram, exprimem-se, rostos que pareciam aquele famoso quadro operário da Tarsila do Amaral, mas numa certa desordem nada constelar... Ela olha o teto do local, os transeuntes, um rapaz de boné que mexe em seu minúsculo aparelho de som. Como é de seu hábito, tenta driblar o contorcer natural e ver no visor qual música o dito escuta. A moça quase entra em faniquito ao descobrir que o estranho ouve Cícero, “Açúcar ou Adoçante”. Julgou-o ser seu príncipe encantado, embora não tenha gostado da sua barba por fazer – “quem neste mundo, além de mim, ouve Cícero?! Meu Deus, Cícero é meu, ninguém tem o direito de ouvi-lo, só eu...”, soberanou-se. No outro metrô, para azar dele, ao seu lado senta-se uma velhinha de chapéu e um perceptível mau hálito. Tenta puxar assunto, ele desvia olhares como uma estratégia de guerra. Olha para a janela defronte, tenta ler o que há no outro vagão... Ainda não se percebem.

Os metrôs movem-se, a inércia age como ondas diante um mar de gente, murmúrios como um estranho marulhar ritualístico: broncas, ofensas, palavrões, discursos sobre as más condições do transporte públicos, lamúrias e lamentações, crianças chorosas aqui e ali... Ela abre o livro, ama ler seu parágrafo inicial, “muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo...”. Olha para o rapaz do boné, que freneticamente aperta botões de seu Ipod. “Por que este cara fica mudando de faixas o tempo todo? Cara, ele tá ouvindo Cícero!!! Quem, em sua sanidade normal, ousaria pecar ao não se deleitar duma faixa inteira e interrupta de Cícero?! Ai, devia ter posto meu batom... Aposto que é só pose deste carinha e...”. Hipnótica, ela enxerga algo pela janela. Ambos se percebem...

(Contrariando qualquer lógica do escrito, recomendo, como trilha do encontro das personagens, ouvir em mantra “Pode Ser”, faixa 05 do debút da Banda do Mar...)

Física newtoniana ou desígnios divinos, Cupido ou o “S=so+vt” das equações dos encontros materiais, os vagões, em processo duma desaceleração incomum, se encontram num ponto, culminando numa pane no exato momento em que janelas se defrontam uma com a outra, o instante hollywoodianamente necessário para que ambos se percebam, como já fora mencionado... Ele a acha bonita, observa a coincidência dos livros, das edições, das capas... Ela, embasbacada com aquilo tudo, cogita, doidivana, em sair dali e correr atrás daquela figura que lhe parecia um ímpar espelho... Respira, pensa esmiuçar um sorriso insinuante, congela num derrame qualquer. Ele quer disfarçar o olhar de bobo diante aquilo tudo, não consegue. Admira mais sua beleza do que a obra em comum, mas mantém o livro em haste como alguma espécie de código. Definitivamente ela lamenta não ter passado batom, se sente horrível, mas petrifica-se num magnetismo incompreensível... Alguns segundos depois a solução se apresenta e os metrôs saem da estática. A visão de um do outro se torna passado num passar fugaz, não podiam agir. Desesperam-se... Ele, ainda muito atordoado, blasfema em palavrões audíveis, para horror da senhora adjacente... Ela pondera, pensa como agir e então deduz as paradas em algumas estações que o transporte, de praxe, faria. Se desse sorte dele não descer na próxima e ainda observar a janela, quem sabe conseguiriam algum sinal de proximidade... Pelos cálculos, isto seria em breve, não dava para sistematizar muito... Numa loucura digna dos que ousam goetheanamente, ela pega o batom e escreve na última página do livro, uma mera folha em branca aparentemente destinada para estas emergências... Do nada, ainda abstraiu Caetano “e o meu coração embora finja fazer mil viagens/ fica batendo parado naquela estação...”, substituindo o “naquela” por “nesta” e desenhando uma seta - era uma aposta, esperava que ele entendesse... Os metrôs param, ele se infla duma esperança de ainda ver a garota, observa a janela e vê o recado escrito numa folha de livro. Inclinou-se para ler, não se deu em abstrações ou surrealismos, mas entendeu...

Ao ver a figura saindo de seu campo de visão e indo em direção ao desembarque, ela também fez o mesmo, acotovelando-se na multidão como um bom halback de futebol americano... Ele, em mimetismo, correu entre empurrões, numa disritmia longe de sua racionalidade cética, saindo do vagão e procurando no diluviano populacional aquela que seria talvez o sentido de existir das suas pupilas... Ela se desvencilha dos empecilhos alguns segundos depois, apura sua visão atrás dele, procura-o entre todos, deseja uma escuridão de cinema oriundo de uma iluminação particular de filme, um holofote apenas nele, queria somente aquilo... Encontram-se...

“oi...” – tímido.
“olá... oi” – ofegante.
“pois é... Cem Anos, né...”
“é, a mesma edição e tudo...”
“Guilhermina...” – estende a mão.
“Cícero...”

Ela ri dos destinos... 

CALABOUÇO


Para Faby 

como explicar esta falta que você faz?!
este desatino que não produz paz,
o instante que nada benéfico traz,
como explicar?!
como entender que o silêncio distante,
tal qual uma mágica mutante,
insere uma completude faltante
na voz oca, inaudível, mas constante?!

a distância da voz, do toque
dos tiques, chiliques,
calor, do corpo, do torpor...
como explicar o que me faz bem, sem ser íntimo?
isto que acalanta como Holiday,
desajuizando o que já sei,
ou não sei, sei lá...
teorizar o que não entendo,
nem tendo compreender;
este calabouço a me apreender,
prender meus sentidos, sem esboços
deixando-me num fundo do poço,
mudez maior que a reta,
diretas que me embriagam em miudezas,
pequenezas que me faz gigante...

você, de longe
parece me entender mais que meu cego ego,
você, apenas uma tela em que espero letras...
você, loucura minha
meu doce íntimo,
meu segredo bom de fazer ninar...

dependência ou impotência? 

não me negue não...