quinta-feira, 29 de julho de 2010

O COTIDIANO NOSSO DE CADA DIA

“...porque é do abuso que vem o vício e é do vício que vem a degenerescência, tanto do corpo como das taras morais de cada um...”
(Julio Cortázar)

Seis e meia no meu rádio-relógio, que sempre me acorda ao som de algum hit de FM. Num dia tocou James Brown, o que eu não achei incômodo nenhum. Mas naquele dia tocara uma destas músicas que minha filha de 14 curte. “Não se fazem mais filhas de 14 como nos meus tempos de 14...”, é o que penso enquanto desligo o aparelho que me acordou e dei uma olhada para aquela que dormira ao meu lado. É a mesma na mesma função há quinze anos... Dou-lhe um beijo na testa e digo um olá meio sem graça. Ela responde “Marcílio, vá escovar logo estes dentes... Teu bafo tá de matar leão...”. Meu sorriso amarelo se amarela mais... Espreguiço de vez, ponho meu chinelo e encaminho-me para o banheiro. Bato na porta (evidentemente trancada...). “Nestor, anda logo. Papai tá atrasado...”. Pensei em quem hoje em dia colocaria o nome do filho de “Nestor”... Era o nome do meu avô e fora insistência minha... O dito grita lá de dentro dizendo um já vai. Concluo que eu também já fui adolescência e também demorava nos banheiros da vida. Encosto-me na parede e pela primeira vez reparo no porta-retrato acima da escrivaninha. Lá uma foto minha e Leonor grávida de alguns meses. Esperando por Melissa, a nossa tal filha de 14.
Seis minutos cronometrados e enfim meu filho deixa as dependências do banheiro. Fecho a porta, abaixo minha ceroula de dormir e sento na privada. Pego o jornal de ontem e ainda assobio o refrão de “O Portão”. Leio a parte de política, um pouco a de esportes, dou uma olhadinha sem compromissos no caderno 2. Cagar exige arte. E algo pra ler, né ?! Me limpo, lavo meu rosto, escovo os dentes e espremo alguns cravos. Faço a minha barba e dispo-me. Entro no box, coloco o chuveiro na posição primavera e deixo o jato d’água exorcizar minha preguiça. De fora a voz nasal de minha filha em dentição de aparelho, também argumentando sobre demora, desta vez a minha própria. Logo Leonor bate mais forte e diz “Vamos, Marcílio !!! A menina não tem este tempo todo pra esperar não. Daqui a pouco a Kombi vai passar...”. Xingo e indago o porquê de ter colocado mais dois banheiros na mesma casa em que minha filha de 14 abdica pelo prazer de se arrumar pro cotidiano nosso de cada dia... Ainda com o chuveiro ligado, olho meu pau enrugado, tão velho, quase impotente pras luxúrias da vida. “O homem não devia envelhecer sexualmente...”, filosofo. “Marcílio, homem de Deus... Pela última vez: saia logo desta joça !!!”, ultimata Leonor.
Sem alardes desligo o chuveiro, enxugo-me e penteio meu cabelo, prometendo a mim mesmo que hoje sim eu iria ao cabeleireiro. Visto o roupão e saio do banheiro, onde Melissa entra apressadamente, sem um bom-dia ou um beijo... Já na mesa de cear, sento-me e parto uma fatia de mamão. Nestor chega e diz um “oi papai”, pegando uma maçã e pedindo a mãe ovos mexidos. Coloco café numa xícara e adoço-o com duas colheres de açúcar. “Olha sua diabetes...”, reclama minha esposa. “Hoje é dia 15, né ?!”, pergunto. “Sim... Dia de pagar o cartão. Tenho que fazer supermercado. A casa tá às moscas...”. Não confirmo, apenas digo uma onomatopéia qualquer. Melissa adentra a cena e logo pede “mãe, posso pintar o meu cabelo...”. Leonor nada diz, apenas me olha como se esperando uma atitude de pai. “Pra quê você precisa pintar o seu cabelo ?”, pergunto. “Ah, pai... As meninas todas do colégio tão pintando...”. “Mas você não é qualquer uma...”, contra-ataca Leonor. “Poxa, deixa mãe... Só uma mecha, bem clarinha, quase não vai dar pra perceber...”. Novamente minha cônjuge me encara. Melissa também, dizendo um por favor quase inaudível... “Sua mãe é que decide...”, respondo saindo e argumentando que estava atrasado. Melissa cai num choro em berro, Leonor grita por meu nome e diz que não agüenta mais aquilo. Nestor coloca os fones do seu MP3 e reclama pela demora dos ovos. Olho para o relógio, sete e onze... Tranco-me no quarto, retiro o roupão e ainda de cuecas escolho a calça e o paletó de “proleta”. Rio do apelido que dou às vestimentas e ligo o rádio-relógio na estação que toca música nacional. Era o horário que tocava muito soul e naquele momento rola um Jorge Ben das antigas. Cantarolo o “Bebete vambora...” e digo uns trá-lá-lás que denunciam minha ignorância sobre o resto da canção. Visto-me na ordem comum, antes porem passo uma loção que ganhei num amigo-secreto. Decido pela gravata vermelha e observo se não esquecera nada que deveria levar na maleta de trabalho... Olho-me pela última vez no grande espelho do armário e penso nas pernas da nova estagiária, jovem, uns vinte talvez, olhares maliciosos... Era sexta, quem sabe um chopinho...
Desço, dou um beijo na patroa e carona aos pequenos que perderam o escolar. Ligo o rádio do carro, noticiários sobre o trânsito, uma antiga canção de Dylan, meninos do farol fazendo malabares, as pernas da estagiária... Penso em voltar a fumar e não atendo ao celular que anunciava o número de Leonor. “Tsc,tsc... Este meu cotidiano...”, penso alto e esmiuço um sorriso.

(2007)

FURTA-COR

sentir-se
peixinho verde
no meio
do mar vermelho,
enquanto o espelho
solene(mente) reflete: “perde, perde...”

assim é...
ou seria assim do azul
se todos gostassem do rosa,
(nunca deixando seu rosar - mesmo tendo o sobrenome inimigo...)
um furta-cor
dança das cores,
a junção do tudo,
unção de todos, uma canção no ar
poema do mar
domar instintos...

dum mar sem cor
mar sem azul ou blues,
empresta-me então sua cor
e assim serei mais um...

assim serei sim,
o sim que encaixa nos nãos
terei o rubro de suas veias, o chamar de suas velas
mil tonalidades de aquarelas
nas querelas de um ser comum.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

ESTRELA POENTE

Para Bethânia cantando "Invocação"

verves,
palhaços e arlequins
tocando oboés e rouxinóis,
arcanjos são tão anjos, demasiados homens...

vermes,
inverte inerte
a estrela poente,
ponta rente duma ponte qualquer...
dominam, dolentes, gigantes invisíveis
como num grande cosmo,
como algo que sugasse...

aedos, árias
pátrias dum só corpo,
exército, mar, poemas...
eles virão sem dar alardes!
eles cantarão em mil alaúdes!
chegarão e romperão a vida, arrebatador!

A ode será carochinha,
a chacota reinará verdades, soará os sinos!
o insosso fará de ossos, ouro
e de mouros, vis jacobinos...

e tudo será revolução
e tudo será a metamorfose, a necessidade de mudar,
de triunfar o oprimido
fazê-lo comido, digerido sem ruminar
engolir cuspido, salivar o gosto
aliviar, aluviar...
deixar correr e transformar...

tudo é vão,
nada é pequeno...
se a alma, não...
valerá a pena então...

quarta-feira, 7 de julho de 2010

O NUBLADO

A base da solidão
é o encontro que não há,
luz do fim do túnel, labirinto dos instintos;
solidão, labaredas de fogo e rícino...
coisa mesquinha e daninha, enfadonha...
torpor em ócio-ópio,
solidão:
encontro das almas no umbral dos esquecimentos...
alma sem par
sem pavio, sem a chama da vida, que a corrói
feito a morte das estátuas;
solidão que me deixa náufrago, sem nau
sem fantasmas shakesperianos ou fumaça para revelar
o nublado...
a solidão é frio no nosso exoesqueleto,
é amar antes o adjetivo,
subjetivo sem objetivo,
sujeito-objeto, figura seca...

a solidão é este nonsense que me faz escrever,
gravar, rupestre, esta coisa selvagem...
ou coisificações do puro...
Solidão é o que me faz pensar num você antes do meu ego,
o que transforma o eu no que se perde, no que se cria,
solidão é andar cego e achar caminho
solidão é lidar, lindamente lidar
com espectros que procuram-me,
não acho...
não me acho...
achismos, somente
sementear...

sexta-feira, 2 de julho de 2010

LOBOTOMIA

O Ser e
o Nada
nadaram
no logos...
logo no Lego do criar:
da cria e
do cio...

namoraram
e pariu-se, apeiron
a essência e a existência:
gêmeas siamêsas,
existiram antes de ser.

E tudo isto só Sartre viu...