domingo, 30 de março de 2008

POÍEMA

Palavra intensa
teso tesão
a coisa copúla
criando casulo
e libertando-se...

Então o poema, coeso
me prende
apreende,
absorto verbo.

Aí digo,
mendigo
minto-afirmo,
firmo qualquer coisa
desdizo...

E sei que minha voz inaudível
dirá dez mil vezes o que sou
que sou, que sul
que vento, invento, sorvo
este corvo que vem, sem cor
confundindo-se, negro, com estrelas.
Gritarei, silêncio,
silêncios em excelências
na sagacidade das essências
tendo, pretendendo, prender
esta coisa que rende;
a rede que teço
e durmo.

sábado, 29 de março de 2008

SAUDADES DE JOÃO

As névoas que formo
de minha boca derivam, de meus pulmões devaneiam,
de minha paz se encolhe,
a serenidade escolhe, tudo encobre:
o cobre e o cobrado,
o brando e o brado,
esta coisa que misturo, desatino
destino errante, meio infante,
galopante na fogueira de todas as vaidades...

Esta névoa é só pra esquecer,
ser algo que se colhe,
estar fébril de felicidades ocultas,
se mostrar deus de tantas insanidades;
ser névoa que neva, que voa,
pousa, pausa, cria, procria...

E dentre mil cios,
renascer forte
amálgama de qualquer instante
instinto de crescer, sorte
beleza de doar,
e assim soar
feito fumaça doida que me segue, mais nada...

quarta-feira, 26 de março de 2008

PEDRA-ESTRELA

Poema iniciado num momento de embriaguez com meu amigo Jason (22/03/2008)

Estrela brilha
caminho, trilha
dum caminho
que não brilha,
só trilha
só pedra
só caminho.

O caminho brilha
estrela vil que
estrala, pobre caminho
sem poeira
nem beira ou denominação.

Pedra-estrela
desde outras eras
que não era
tão ser desmedido,
buscando sua constelação,
sua nação,
sua noção.
Estrela que é nuvem e pó
que vem, tão só
feito pedra de construir
de destruir, desmontar.

Embriagada estrela,
cambaleando pedra
entre mil baladas e botinas,
amor tão velho de sentir-se jovem,
amigo bom que encontro
assim, estrela sem guio
nem estio,
estrela que ensina
esta sina, o destino
o caminho onde o eu-pedra
deve retornar.

segunda-feira, 24 de março de 2008

ODE AO VINHO

"...Como os jovens poetas que passam os dias a errar e a procurar rimas. Falar sozinho, verte sua alma no ar frio e tenebroso da noite..." (Baudelaire)

Palavras e mesa de bar,
torturas e sinceridades
...a brusca vontade de urinar...
A mancha de vinho no puro lenço,
formando nomes, cortando minha carne com sua língua,
som de violão e palavrões,
mesa de bar e deusas
...e (novamente) brusca vontade de urinar...

Petisco e mesa de bar,
filosofias e teorias
alguns choram
outros marcam num papel
quantas vezes se foi no banheiro...
Tonturas e sinceridades,
ode de vinho... amar, escutar,
agradecer ao vinho,
revelações baudelairianas...
Que bom a existência dos entorpecentes !
O vinho é meu sangue !

- Licença: vou ao banheiro...

(2003)

terça-feira, 18 de março de 2008

segunda-feira, 17 de março de 2008

A POLÍTICA APOLÍTICA DO SER

Bem, não sei se sou o mais indicado para escrever um texto dito politizável: o que sou neste mundão ?! Apenas mais um cidadão, destes clássicos que proclamam de peito aberto que detesta política ?! Quem sou para criar um misto de coragem e vaidades e querer escrever algo com tamanho teor ?!

Talvez seja por ser um cidadão, mais um da “polis” chamada urbana, por pertencer a grupos sociais, por ter documentos, impostos por pagar, uma família que me representa e ao qual represento, por ser de várias gerações do futuro - destas de impulsionar um país -, por ser gente, animal político, mais um na multidão, um de coletivos, parte de Deus... Por ter amigos, parentes, colegas, alunos, patrões, empregados, por tá num planeta cheio de racionalidades e justiças, leis e instituições, por criar anarquismos, socialismos, capitalismos e “ismos” que em nada possam me interessar de imediato. Por ser de guerra e de paz, da embriaguez e do sério, de Cristo, ateísmos ou Shiva, de qualquer Zé Pequeno, de todos os semelhantes, do mendigo que não noto na rua - ou até noto e escondo-me na cega visão da realidade-fome-antiética -, na minha total falta de humanismo ou no amor ao próximo que nunca demonstro, mas sinto... Talvez por não ter estudado tanto, não ter lido quase nada, por ter trepado sem camisinha de vez em quando ou por nunca ter aplaudido um cordelista, por tudo enfim, a política apolítica do ser exposta em carne, urubu e senso nosso.
Prazer, sou apenas um. Mais um, menos um, um zero a esquerda, um zero que aumenta os dados estatísticos populacionais... Tem horas que sou número em código, noutras sou o filho do meu pai, em alguns momentos sou gatinho, sou eclipse, uma metáfora, um poema pelo qual algum poeta vagabundo homenageou-me sem motivos aparentes. Contudo moro num lugar, numa cidade perdida no Google Earth e que algum menino espinhudo vigia da tela de seu computador, num ponto do mapa ou na placa de alguma estrada. Voto, exijo, jogo papel nas ruas e muitas vezes me dá uma puta vontade de xingar policial na cara. Pinto a cara e deponho presidente, escondo meu rosto quando senador é absolvido, choro quando a seleção perde na Copa, digo em claro e bom tom que não existe político decente... Gosto de Jorge Ben e uso All Star. Tô nem aí pra Amazônia, pra reuniões do G-8 ou pro fim do gerúndio na gramática oficial. Até me dá uma safada emoção nos primeiros acordes do hino nacional, mas e o índio ?! O sistema de cotas, a transposição do São Francisco, a violência das grandes metrópoles, crises do avião e tudo aquilo que o almofadinha do William Bonner diz na TV enquanto meu pai cochila e eu fico vendo orkut trancado no quarto ?! Que papel tenho eu, você, a menina que queixei e que nunca quis me dizer sim, o adolescente de hoje, os velhinhos de amanhã ?! Definitivamente não sou o cara pra escrever esta resenha com título chocante e, talvez, indecifrável para mim mesmo...
Encarem isto como um simples manifesto, um grito, um conclamar ou uma mera maneira de chamar atenção das garotas... Acima de tudo, aqui é um escrito de um cidadão que se indigna, de um homem que não presta atenção, que só lê a parte cultural das revistas semanais, destes que dão mais de uma dezena de real para entrar em festas que nada o preencham e nunca pisaram o pé numa obra assistencialista ou nestas ONGs que ainda ativam algo prático na solidariedade humana. Nunca li O Capital, nem qualquer outro autor que possa ser solucionática para um mundo melhor... Porem leio nas entrelinhas da convivência e, como todos, também desejo um lugar mais digno e cheio de alegrias, trabalho para todos, menos tráfico de qualquer coisa e CD’s mais baratos... Evidente que quero mais ética nos gabinetes de governar, menos merda de cachorro nas ruas, mais policiamento nas esquinas, carnaval todo mês e melhores escolas e faculdades públicas. Utopizo um Brasil mais rico e com menos desigualdades sociais, um salário condigno com suores e calos depositados, uma potência com cara de simplicidade, cheio de danças e culturas, orgulhos e talentos, de crianças sorridentes e cidadãos de cabeça erguida para frente e para um chegar...
Façam o que quiser com este artigo, esta intromissão, um ditame de blog, um emaranhado de palavras vãs, um amalgama de idéias desconexas... Deixo com vocês o destino disto que não ganhará menções em protestos universitários ou semiótica em camisas juvenis. Mas, lhe peço um favor, um favorzinho só: se forem jogar o trabalho deste precário escriba fora, joguem numa cesta de lixo reciclável. Salvem o mundo que é de vocês !!!
Ufa ! Desabafei...

(Texto que publiquei no blog "Rizoma Tapuia", em 2007)

sexta-feira, 14 de março de 2008

POEMA QUE ERA PRA SER UM SAMBA

Nêga
não me negues
o direito de ser seu
não faças olhar oblíquo
para todos os meus defeitos
e saiba o quanto e o tanto
que te quero tão bem...
Esse samba não tem nota nem compasso
na verdade falta-me o violão e a melodia.
Esta samba é uma moda ensaiada
para atingir teu coração no alvo mais incerto
Um sambinha que compûs, oh dádiva que não sei qualificar !
Nêga
deixa-me dormir nos teus íntimos travesseiros
e fazei travessuras
para comigo esbanjar
as ostentações de ter-te
tato, unção do que mais cobiço
teu olfato no meu paladar, velar pelo negrume do teu olhar !
Nêga, neguinha, minha vida...
Nem sei mais como chamar-te
talvez clamo teu sacro sinal num sonho muito antigo e profundo
fazendo rimas que para todo mundo
é um poema que deveria ser um símbolo,
uma cantiga, um conto, declarações numa nota de real
realidade qualquer...
Bendito este teu amor por mim
Magna a herança do teu amar
não o negues, oro do mais alto clamor !
Faz do teu nêgo aqui
mais uma vítima desta flecha chamada paixão
mais um humilhado que conclama do teu amor
mais um a vagar pela oportunidade de um dia
contemplar a idéia
de concretizar-se teu...
Ah nêga
vou dizer no verbo,
assim na lata, de sopetão pra soar mui sincero:
se tu me negares o teu amor inviolado
tomarei da mais letal água-sanitária
e cortarei meu pulso com o mais precioso punhal
estampando em minhas veias o nome teu, o imaculado !

(2006)

quinta-feira, 13 de março de 2008

ELE E ELA

"Me diz o que é o sufoco/que eu te mostro alguém a fim de te acompanhar..."
(Los Hermanos)


Chovia e ela imaginava que algo novo aconteceria. Acabara de sair de uma cartomante e esta garantira: de hoje não lhe escapava o amor ! Fazia tempos que acreditava nisto. Há pouco deixou de crê-lo... Contudo, levou fé no que dizia aquela cigana de sotaque romeno. Pensou no destino de Macabéa, personagem do último livro que lera. Temeu acreditar em tarô e acabar se estrepando. Preferiu, então, aumentar o som de seu diskman: Último Romance, música de um grupo pop que o sobrinho escutava no momento. Não sabia o porquê, mas simpatizara com a faixa. A cartomante também disse que o amor apareceria vestido de preto.

Ele trajava uma camisa amarela. Estava perto dos 40, via-se no grisalhar de suas sobrancelhas. Nenhuma mulher havia lhe despertado o senso de querer morrer acompanhado. Cultuava uma barba, igualmente grisalha, e raspava o cabelo com máquina um. Mascava chiclete enquanto esperava o próximo metrô. Tirou de sua mochila uma revista sobre discos voadores. Era um ótimo argumento para puxar conversa.

Um homem de paletó negro aproxima-se dela. Estão sentados num banco. Ela tira o fone dos ouvidos e pergunta:
“Por favor, quantas horas são ?!”
“Dez e meia...”, responde secamente o homem.
Ela não percebera a gafe que acabara de fazer: em seu pulso havia um relógio. Olhou para as mãos dele, nenhum sinal de aliança.
“Está quente, não ?!”, diz para iniciar assunto.
“Imagina para mim que tenho que trabalhar de paletó...”
“O senhor...”
“Você. Pode me chamar de você...”
“Ai, desculpe ! Mas eu ia perguntar onde...”
“Advogado. Trabalho num fórum aqui próximo...”
“Advogado e anda de metrô ?!”
“Que mal há ?! Acredita que tenho 36 e ainda não sei dirigir ?!”
Ela sorriu. Também tinha 36. A cartomante estava certa...

Ele folheou algumas páginas. Detestava discos voadores e alienígenas. Guardou a revista e pegou sua carteira de cigarros. Só haviam dois. Prometera parar de fumar, mas ainda restavam dois no maço. Botou um na boca.
“Aí, tem mais um cigarro ?!”, perguntou-lhe uma garota.
Ele deu o último.
“É o seu último ?! Desculpa, tá ?! Se o senhor quiser, eu...”
“Pode me chamar de você. Fica com o cigarro. Prometi parar de fumar...”
A garota sorriu. Ele percebeu um brilho entre seus dentes.
“Paloma...”, disse estendendo a mão.
“Pomba...”, ele aperta sua mão.
“Como ?!”
“Paloma. É pomba em espanhol...”
“Aaaaahhhhhh...”, bem prolongado mesmo.
Ele disse o nome dele. A garota bocejou.
“Estou sendo chato ?!”, perguntou.
Paloma baforou a cinza fumaça e respondeu que não.
“Tu me paga um café ?!”, disse audaciosa.
Ele só tinha uns trocados para pagar o metrô. Resolveu aceitar o “convite”, voltaria a pé.

“Você acredita em destino ?!”
Ela já conhecia aquela cantada. O homem de paletó batia os dedos numa pasta, também negra.
“De vez em quando...”
“Como de vez em quando ?!”
“Tem fases em que acredito menos, tem outras que acredito mais...”
“Mas você precisa ter uma decisão: ou crê ou não !”
“Ué, depende da época ! Você acha errado ter várias opiniões sobre a mesma coisa ?!”
O homem ficou calado.
“Mas por que você me perguntou isto ?!”, ela.
“Não... por nada... quer dizer...”
“Pode dizer !”
“Promete não rir ?!”
Fez que sim com a cabeça. O homem então disse:
“É que eu... ai, fico tão constrangido de dizer isto !”
“Diz logo !”
“Sabe, hoje o meu horóscopo dizia que eu ia encontrar o amor de minha vida...”
“Não brinca ?!”, num misto de desdém e ilusão.
“É sério ! Você deve estar achando que isto é uma arma de paquera, não é ?!”
Ela não respondeu. O homem continuou:
“Pois é verdade ! Eu acredito em destino, em horóscopo. Pode achar meio fresco...”
“Não, eu não acho !”
Pensou em contar a historia da cartomante. Mas censurou-se. Não era bom mencionar tais “teias do destino”...
“E o quê dizia o horóscopo ?!”
“Dizia que o dia estava favorável para se encontrar o real amor de sua vida e que era preciso notar as pessoas com bastante perspicácia...”
“Disse favorável ou que era certo este encontro ?!”
“Favorável, creio. Qual é a diferença ?!”
“Ora, favorável não é certeza exata. Você consulta ciganos ?!”
“Não. Por quê ?!”
“Por nada. Digo porque cigano diz termos na lata: “vai acontecer”, “é certo isto...” Compreendeu ?!”
O homem fez que sim com a cabeça.
“E você acha que sou eu o amor de sua vida ?!”, ela perguntou.
“Sei não... vai depender de você...”
Ela sorriu laconicamente.
“Aceita tomar um café comigo ?!”
Ela aceitou.

“No duro ?! Tu curte Los Hermanos também ?!”
Ele puxou este assunto porque notara seu vestido hippie. Paloma parece um pouco mais solta, cabelos loiros jogados aos céus. Passava os dedos na borda da xícara.
“Curto. Pra caramba...”
“E qual música você gosta mais ?!”
Então lembrou da única música do grupo que conhecia.
“Aquela que diz do sufoco e de mostrar alguém pra acompanhar...”
“Ah, Último Romance !”
Salvo pelo sobrinho, foi o que ele pensou.
“Esta é linda mesmo...”
“Esta o quê ?!”
“A música,Último Romance. Tá distraído, é ?!”
“É mesmo, desculpe !”
“Dá pra pagar um outro café ?!”
Teria que desistir do metrô.
“Dá. Tá tão frio, né ?!”

Já na cama, ela olha para o homem dormindo. Parecia arrependida. Levantou-se, ainda nua, e olhou sua carteira de identidade.
“Otacílio...”, leu.
Percebera que o homem mentiu na idade. Vestiu sua calcinha e foi ao banheiro. Olhou-se num espelho esfumaçado e indagou a veracidade da profecia da cigana.
“Não pode ser ele...”, disse mentalmente.
“Será ele ?!”, perguntou baixinho.
“Ele...”, comentou calada.

Na cama, ele velava pelo sono da garota. O cigarro acabara. Um pouco dos seios brotavam no surrado colchão. Paloma dormia de bruços. Mamilo rosa, a coisa mais linda... Levantou-se e a idade pesou. Não era a primeira ninfeta com que dormia. Seu apartamento ficava próximo do metrô e ele havia deixado compromissos profissionais só para ter tal deleite. Foi até a geladeira e partiu um pão ao meio. A garota ainda dormia.
“Cansei disto...”, pensou.
Passou mostarda e levou o pedaço à boca.
“Amor realmente existe ?!”, indagou em voz baixa.
A idade pesou:
“Já tenho 39. Morrerei sozinho ?! Mas eu nunca me preocupei com isto...”
Voltou para o quarto. Paloma aparentava felicidade em seu sono.
“Será ela ?!”
Sentou-se na beirada da cama e afagou-lhe os cabelos.
“Ela...”

Num radinho de pilhas no alto de sua casa tocava uma balada antiga: When A Man Loves A Woman, do Percy Sledge. Ele sentiu frio, ela também. Seus parceiros dormiam. Moravam no mesmo prédio, ele um andar a cima. A dona do rádio aumenta o volume e exclama algo como “Que música porreta !”. Ambos escutam e sorriem. Cada um olha para aqueles que dormem em suas intimas camas. A canção finda, logo aparece uma voz de narrador dedicando a canção de fulano para beltrano...

Ela escreve um recado para o homem do paletó. Pede para o mesmo trancar a porta e colocar a chave embaixo do carpete. Diz que o amou naquele momento, mas não pede retornos. E acrescenta em P.S que prometia nunca mais acreditar em oráculo algum...

Ele deixa um bilhete embaixo de um maço inteiro de cigarros. Pede para Paloma trancar a porta e deixar as chaves no vizinho do lado. Diz que há café de agora na garrafa térmica e que podia devorar o queijo minas a vontade. Acrescenta em P.S que não o procure mais. Havia cansado de ninfetas.

Ela põe os fones nos ouvidos. Vai escutando Último Romance. Caminha passos vagarosos, como se querendo nutrir-se de cada uma de suas pisadas. Volta para a estação de metrô. Senta e abre uma revista sobre discos voadores. É um ótimo argumento para iniciar conversas...

Ele sai assobiando uma canção que aprendera com os sobrinhos adolescentes. Não sabia seu nome, mas decorara que na letra dizia algo sobre mostrar sufoco para receber alguém em troca como companhia. Ou algo parecido, não lembrava ao certo... Trocou a camisa amarela por um moletom preto. Carregava a mochila e algumas moedas para a condução. Dirigiu-se para a estação de metrô. Sentou e notou a mulher que lia uma revista...

“Licença, o que lê ?!”
“Eu ?! Ah, é um artigo sobre OVNI’s...”
“Sou fascinado por discos voadores...”
“No duro ?!”
“Pode acreditar !”
“E em destino ?! Você acredita ?!”
“Sinceramente não...”
Ela sorriu. Ele também.
“Prazer, Paloma...”
Ele riu da ironia.
“Otacílio...”
Ela também achou engraçado.

(2006)

terça-feira, 11 de março de 2008

CANTIGAS E CIRANDAS

Uma canção
passada
de pai
pra pai
pro pai
cheia de ais
e lamentações:
da cabocla Moreninha
que matou seu amado sem um porquê.

A canção acalentada de carinho
cantada nas cantigas e cirandas
que rememorizava lembranças de minha avô
e do avô
do avô
da avó
que voava, reza a lenda.

Uma ladainha muito velha
tão velha quanto a velha cesta
da velha
do velho
que não era nada meu
mas pitava um cigarrinho no fim de mais um pôr-do-sol.

(2006)

POEMA AXIOLÓGICO

O mal é mel,
o bom é bomba,
o mal me quer
o bem querer...

O bem vem
o mal sal
o bem também,
o mal sai
o bom tom
o mau tchau.

(2007)

OUTRORA

Outrora
outras primaveras,
aurora, Amada minha
amada minha, madrinha, mainha, mãe...
Outrora,
de outros tempos,
foto em desbotar,
fato desbotado, o velho a correr
correr contra o tempo
o velho contra o tempo
outrora vida
outroras saídas
desejo de sair.

(2007)

QUALQUER BOSSA

Patamar
o mar
apatia
a pata
quá-quá-quá...
qualquer bossa.

nova ou amassada,
música,
aptidão,
um galo, elevação da superfície,
um corcunda,
qualquer bossa.

um apelo
um pêlo, uma pele
qual
querer
moer, mugir
amar, avelã
ave

amanhã caído
manhã caída
queda,
bossa qualquer...

uma viola violada
vadio vaso vazio,
hímen humo, semên (no ar)
semear
semente...

amor e flor
flor e dor
orvalho e vale,
vela e monte,
minha, minha
faço, poço, passo, fossa
bossa,
bossar, mar, amar, rio, Rio
versar, conversar, convencer
um pato,
dois atos,
altos momentos,
ventos, ventos,

apenas palavras soltas,
assim sem sentido
devaneio
anseio em desvario
o poeta ancorado,
a bossa lúdica de gaivotas num céu pintado à Magritte,
Holiday no ar
e (sem estrangeirismos)
um Tom sem tom, piano e poetinha:
qualquer bossa
alucinógena
para quebrar o efeito deste gim.

(2007)

A BELEZA

pra Iahana

A beleza te inveja
e assim criou-te a natureza,
buscando inspirações dum poeta surreal
que pintou, decalcou, mediu...
e assim a fez.

A beleza chora
por saber da tua existência,
apaixonou-se por seus reflexos em excelência,
vestindo-se de mil inconsciências
caiu no lago;
e de lá brotou a flor narcisista...

A beleza quis cortar os pulsos,
não resistiu aos impulsos
e pulou no seu colo, na sua concha;
fez-te princesa, precisa, precisão
palavra doce, algo que vem e nana
mantra bom, som de dormir, sonho...

Então a beleza constatou
que seu próprio desafio era tão somente uma menina,
de olhar infantil
algo que impacta
uma coisa linda, lindinha, lindeza
algo além da pureza
acalento de prazer...

domingo, 9 de março de 2008

ONZE, MEIA-NOITE, UMA DA MANHÃ...

Inspiradíssimo na voz de Ella Fitzgerald

Enoc tinha exatamente 42. E acabara de pedir divórcio. O casamento de duas décadas cessara, durou mais que o tempo devido às crianças. Situação chata, com toda a certeza. E foi neste clima que conhecera Lila, jovem, bonita, universitária e um pouco mais velha que sua primogênita. No começo não quisera nada de sério: chamou-a para um chopinho no boteco ao lado do trabalho. Conversaram e só. Contudo trocaram telefone e a promessa de um ligar ao outro vindouramente.
Pediu conselho ao amigo Nélio, também advogado.
“Ela é gostosa ?!”, pergunta o amigo.
“Gostosa como ?!”
“Ué, gostosa gostosa...”
“Bom, ela é gostosa... de se conversar.”
“Hum, já disse tudo: é gorda... Sai fora !”
Enoc então para de limpar os lábios no guardanapo e, como num assombro rápido, diz:
“Ela não é gorda ! É até bem magra, bonita, cabelos aloirados, uns olhos de se perder lá dentro...”
E Nélio, depois do gole na cerveja:
“Então aí a coisa muda: ataca !”
“E ela curte Ella Fitzgerald...”
“Como ?! Gostosa e curte Ella Fitzgerald ?! De duas uma: ou ela não é gostosa ou ela esta mentindo quanto ao gosto por jazz...”
“Ué, e que mal há numa jovem que curta jazz ?!”
“Nos meus 40 anos...”
“44, 44...”
“Tá bom: 44. Estes detalhes de idade são meros detalhes...”
“Bem, prossiga...”
“OK. Nos meus quarentas e tantos anos de vida eu nunca, disse nunca, nunca conheci uma jovem que gostasse de jazz. Tão pouco de Ella Fitzgerald... Quantos anos ela tem mesmo ?!”
“23...”
“Mentira ! Pode acreditar que ela ta mentindo ! 23 e curte Ella Fitzgerald ?! Não existe !!!!”
“Não tou entendo o porquê de seu abismar...”
“Enoc, a garota diz ter 23...”
“Cê mesmo não acabou de falar que detalhes de idade são meros detalhes ?!”
“Bem, bem...”, e Nélio bica mais um golinho da cerveja, “... Nós somos homens. E de quarenta !!! Ela não é. Aí se configura uma grande diferença...”

Sentindo que o amigo não resolveria a questão, Enoc toma a mais hipnótica de suas decisões: liga para a Lila. Disca os números, do outro lado o telefone toca uma, duas, três vezes...
“Alô ?!”, a voz levemente rouca, mais pra Holliday que para Fitzgerald.
“Lila ?!”
“Enoc ?!”
“É...”
“Esperava que você ligasse...”
Do outro fone, o homem sua frio. Dá algumas batucadas na estante em que se encontra o aparelho. Roça os mesmos dedos no maço do menta. Tenta balbuciar algo, contudo só soa monossílabos.
“Topas um drikzinho aqui em casa ?! Tou ouvindo o “These are the blues”...”
Conhecia o álbum. Era Fitzgerald. O Nélio estava enganado, assim como imaginara...
“Topas ?!”, insiste.
Titubeou, mas aceitou: nove horas, na casa dela.

Barbeou-se, passou uma colônia e olhou no espelho: queria ter mais cabelo. Sua calvície (temor de sua adolescência) realçava mais suas olheiras. Escovou os dentes com bastante assepsia, passando o fio dental por várias vezes. Já havia deixado o blazer que vestiria para a ocasião por cima da cama, assim como a dúvida eterna entre os sapatos marrons ou pretos. Decidiu pelos primeiros, já que combinavam com o blazer. Mais uma visualizada no espelho (desta vez o do quarto) e olhos no relógio: oito e meia. Mais do que depressa procurou as chaves do carro e enquanto descia pelo elevador pensava se comprava ou não algumas flores. Passou antes numa loja de conveniência e, além das flores, acabou por providenciar um prosseco.
Chegou ao apartamento indicado por ela, entrou e logo se identificou ao porteiro. Este interfonou ao apartamento indicado e logo fora lhe permitido a entrada. Apertou o 702 e cada subida do elevador era um semi-drama dentro de si. Num determinado momento entrou um jovem casal e logo Enoc imaginou que a “inexistente fã de Fitzgerald” tinha um ou dois anos a mais que sua filha mais velha. Condenou-se e demorou por tocar a campainha. Dava pra ouvir de fora a canção que Lila estava por escutar.
“É Fitzgerald mesmo…”, logo completando o pensamento, “…“Trouble In Mind”...”
Respirou e enquanto se embananava entre o pacote com o vinho e as flores, a porta entreabriu-se:
“Oi... Que foi ?! Demorou para tocar a campainha ?!”
Ela usava um vestido meio esverdeado, quase curto e ombros despidos. Carregara pouco na maquiagem, um discreto baton e sardas perto da região nasal, o que a deixava mais sexy sempre. Convidou-o para entrar e pediu para não notar na bagunça. Ele sentou-se no sofá, sem antes ofertar o que havia em suas mãos.
“Não precisava... Este prosseco é divino...”, disse a moça, realçando a penúltima sílaba da última palavra, feito criança. Depois desta Enoc tomou noção da idade real da moça.
“Tem fome ?!”, indaga Lila.
“Hã ?!”
“Te perguntei se tem fome. Você já jantou ?!”
“Não, não... Mas tenho fome não.”
Ela coloca as flores (eram hortênsias) num vaso meio opaco.
“Você é fã mesmo da Fitzgerald...”
“Eu a-do-ro esta mulher !!!”.
Ele passou a odiar inconscientemente a forma como ela divide algumas palavras num discurso desnecessário de tal recurso. Mas não falou isto e pegou a capa do vinil que rolava na vitrola. Tinha cheiro de velho, de sebo. Percebeu o detalhe da capa, o desenho pintado, meio borrado, a Ella gravada em lábios vermelhos...
“Eu tive este vinil...”, disse, “...Mas acabei perdendo. Nossa...”, completou virando e revirando capa e contracapa.
“Este disco é o meu xodó. Tenho outras coisas dela, muitos em CD ou baixadas do computador. Mas este vinil pra mim tem um gostinho especial. O chiadinho entre uma faixa e outra é mantra...”, e tenta cantarolar a canção que no momento estava a tocar.
“É raro encontrar garotas na sua idade que curtam Ella Fitzgerald...”, diz Enoc pensando no quão óbvio estava sendo.
“Sou muito além do óbvio. Por que vocês homens acham que uma garota interessante tenha sempre que gostar só de Marisa Monte ou de Janis Joplin ?! Caramba, eu gosto de jazz !!! E daí ?! Foda-se o mundo lá fora viu...”
Não achava nada elegante mulher dizendo palavrão, mas aceitou quase em aplausos o protesto da garota. E então ela insiste:
“Tem certeza que não está com fome ?! Qualquer coisa eu preparo algo bem rapidinho e...”
Lila emudece quando vê Enoc levantar-se e andar em direção dela.
“Talvez eu esteja até com fome. Mas estou com fome de outra coisa...”
E a moça deixa-se envolver pelos braços do homem. Os dois se olham. Queriam dizer algo que só eles entendiam naquele momento. Contornou, ternamente, o dedo pelo traçado do rosto feminino, parecia querer sorver todo o perfume exalado do instante. Suas bocas entreabriam num molhar de saliva e desejos... Ele abaixou uma das alças do vestido da garota, deixando-o inteiramente nu. Embalavam-s e ao som de “Hear Me Talking To Ya”, mais balado, contudo inebriante para a ocasião.
“É, é...é a última faixa...”, gagueja Lila.
“Sei, sei...”, respirou e logo pigarreou, “...Pode parecer até loucura, mal a conheço, você é tão mais jovem e...”
“Diz mais nada não...”.
Parecia pedir o tal “óbvio utópico” que escutara numa canção que seu filho do meio gostava. Enoc pensou nele também, assim como na filha mais velha (“apenas alguns anos mais nova...”), na ex-esposa, nas palavras do Nélio, na Ella Fitzgerald que acabava de tocar numa vitrola, no palavrão da menina que indicava uma rebeldia... Lila repete, quase afônica:
“Diz nada não...nada...”

Uns acharam polêmico, muitos não gostaram e alguns até amaldiçoaram o novo casal. Chovia bastante no dia em que assinaram papéis. Ainda tiveram um filho, viveram juntos até um cansar do outro. Mas o que Enoc nunca esquecia era daquele disco, Fitzgerald e aquelas onze, meia-noite, uma da manhã...

(2007)

quarta-feira, 5 de março de 2008

INÉDITA

Para Priscilla (de Salvador)

Lira suave que encanta e hipnotiza,
pitonisa das seitas do amor enriquecido,
aquecido coração que inflama e sonha,
risonha e pura, tão mulher e inédita...

Medita sobre as escamas de sua cauda, sereia de extensa beleza,
certeza de sua adoração, oh mortais que a reverenciam !
Apreciam apenas o costume de seu olhar vago,
divago por sua ausência, doce presença, intensa sentença...

Deusa da metrópole suja e liquefeita,
perfeita, amada, amiga, feminina...
Menina que brinca na poça de lama
ama, criada em nosso castelo de areia
cheia da lua, então estravasa:
"Vaga e vazia luz, conduz meus anseios
aos meios que um dia me conduza ao pedido,
perdido e escondido em mim:
querubim, quero a alegria das minhas bonecas
e a recompensa sapeca de minhas infâncias..."

Aí, flor em botão, incenso magno
magnificências para o seu passar,
seus passos no campo das orquídeas:
perfídias são elas pois invejam a quimera de seus sorrisos
suaves e imprecisos,
deste rosto que me pede um singelo poetar...

(2007)

O MAR E A ONDA

O mar e
a onda
aonde vão ?

Onde a onda se quebra,
na pedra que bate e fura

A maré é
o "amar é" que decifra os namorados,
no cais onde a estrela cai,

E a sereia, tão serena,
açucena da areia
em seu canto e encanto,
enfeitiçando a gente...

O mar e
a onda
aonde estarão ?!
Talvez num verão
no alaranjar do azul,
no azular do céu,
nas cores em que decalco, descalços,
passos nus que ainda seguirei vão.

(2007)

BOM

Feito especialmente para minhas alunas de Canarana (2005/2006)

Bom é enxergar-me nos seus olhos. Bom é sentir o perfume dos seus cabelos, bom é acordar e saber que você está ao meu lado, assim dormindo, assim levitando num sonho bom... Bom é tomar água-de-coco ao seu lado e tendo o mar como afago extenso. Bom é ouvir cotovias e saber que é para você que elas cantam mais que o rouxinol. Bom é procurar em vão uma flor que tenha a sua beleza decalcada.
Bom é namorá-la, é amá-la como se os nossos fins fossem próximos. Bom é ser seu homem, seu macho, seu menino... Bom é ser seu, simplesmente seu. Unicamente seu, bom é ser exclusividade sua e apenas sua. Bom é respirar o mesmo ar que você, é compartilhar este vento, esta cidade, este estar qualquer. Bom é sentir isto que sinto: uma taquicardia tola, um suar intenso, uma vontade de procurá-la por todo canto. Bom é tocar sua mão como se sacra, bom é ouvir a canção dos enamorados ao avistar sua imagem, bom é vê-la tão criança, tão sereia, tão feliz...
Bom é o enredo de minhas poesias: somente você. Bom é seu cheiro ao amanhecer ou a primeira vista. Bom são as curvas que me fazem derrapar em você, bom é seu jardim, a cor da pintura de sua casa, a aparente calma de seu trincar dos dentes... Bom é o bombom que nunca lhe dei, que nunca lhe darei por timidez abissal. Bom é ouvir seu respirar, são seus dedos, tão mimos e densos...
Bom é seu amor, que me faz viver, crescer e nunca temer. Bom é sua existência, que então mantém a minha. Bom é ser bom pra você, bom é o prazer que lhe dou, bom é saber ser recíproco...

(2007)

ONÍRICO BEM AMAR

Pé, unha encravada
de tanto caminhar em tua paz...

unha suja
cheia de pus;

então pus sua mão na minha
e senti a força
da lira que canta cordel
de Zabé da loca
de Garcia Lorca...
Do sol resplandecente numa nuvem cósmica,
desta coisa atômica que explodiu em meu peito,
do seu jeito, do seu ajeitar
coisa mansa
coisa manca
manga do pé...

Do alaranjar na Ave-Maria,
das aves que voam e cortam nuvens,
gravando imagens no lago cristalino de minhas retinas tortas:

Eu e você na quermesse...
Eu e você detrás da igreja, na hora da missa
Eu e você na procissão
Eu e você em qualquer canto que caiba
Eu e você, sabiá...

Amor mor
Amor morro
Amor morte (Eros/Thanatos)
Amor tanto
Amor tato
Amor contato, sem tato,
Amor de sentir, de beijar, platônico, sei - não sei
Amor que nem tá aqui,
Amor dali
Amor acolá
Amor que cola, gruda, amor bonitinho...

de tanto caminhar por tua paz
sujei o carpete de minha casa,
imaculei minha alma de suas profanações,
declarei-me seu, nada mais...

aí dormir
no onírico bem amar,
estágio bom
ágio tom
um toque mágico
fluído, hermético, dialético, e tantas palavras difíceis...

Tudo de mais bonito pra decifrar este amor
esta caminhada pelo monumento de seu corpo,
pelo gozo do esquecimento,
pela glória da lembrança,
o bucolismo de sua chegada
e a certeza que você sempre estará lá...

ANA FERRUGEM

Ela era apenas a garotinha de sardas. E a galera mandava geral: “Ana Ferrugem, Ana Ferrugem !”. Não vou negar que este grito nunca tenha passado por minha boca. Afinal, toda criança de nove anos é, por excelência, maldosa com seus próximos. Encontrando defeito, então... Mas a garota tinha um par de olhos incrivelmente belos, tão azuis que perdia-nos neles. E o sorriso dela, naquele madurecer de aparelhos dentários, nunca saiu de minha mente...
Não era propriamente apaixonado por ela. Tinha, sei lá, pena por seu isolamento. Era nova na cidade, pais bancários. E tímida ao ponto de se isolar naquele canto de calçada, a frente de sua casa, segurando uma boneca em trapos. Descobri mais tarde que se chamava Ana Clara e era apenas dois meses mais nova que eu. Estava matriculada na mesma escola, na turma B, sendo eu da A.
Nunca conversei com ela. Nunca soube de alguém que tivesse o mínimo de amizade com Ana Ferrugem. Recusava fazer trabalhos orais e era craque em cálculos. Durante o intervalo procurava o velho jacarandá e lá sentava, parecendo dialogar com a podre boneca esfarrapada. Logo começaram as lendas: diziam que era uma louca fugitiva do manicômio, ou que era muda, altista, esnobe... Não sei o porquê de lembrar dela, tão agora, mais de vinte anos depois. Tantos amigos que marcaram minha infância, o Narciso, o Bozo, Rodrigo Balão, Amendoim... Quantas namoradinhas consegui só pelo fato de ser loiro com olhos verdes ? Nancy (meu primeiro beijo), Gláucia (ou seria ela meu primeiro beijo ?), Rose, Isabela... Enfim, tantas outras pessoas para se lembrar após uma garrafa e meia de vinho e logo tive de lembrar da Ana Ferrugem ?!
A uns dois ou três anos acho que a vi novamente. Ainda estava com suas marcantes sardas, mas o cabelo era tingido de castanhos. Passou por mim sem reconhecer. Ou será que conservava a sua colossal timidez de outrora ? Pra falar a verdade, não sei e certamente nunca saberei se a mulher de casaco negro era ou não a garotinha Ana Ferrugem... Ainda a segui por duas ou três esquinas, mas a imagem logo sumiu. E o que eu faria caso conseguisse contato ? Finalmente escutaria sua voz, enfim declararia todo o prazer que sentia ao vê-la tão abandonada, segura numa boneca e num canto ?

Então tomei mais um cálice e, para reforçar, acendi um cubano. Logo o pensamento se desfez e o sono pode prosseguir com suas sensuais intenções...

(2007)

terça-feira, 4 de março de 2008

SER MUITOS

inspirado numa conversa de bar com meu amigo Wesley

Ser muitos
de muito,
muito
de multidão.

Ser muito
um poliedro
vários prismas
ser um, ser dois
ser um e dois
ser um-dois-três

Porque a unicidade do ser
é multíplo,
passando no mesmo rio:
sendo não-sendo
sendo vários, sendo muitos.
um ser pode vestir-se de seres,
seres muitos
ser muito
ser muitos
ser vários.

(2007)

NO ERMO

"Buscar tristeza, soledade, o ermo/ E ter o coração em riso e festa..." (Gonçalves Dias)

No ermo destas palavras em que te procuro,
lá você está
sim !

São visões suas, doce, tão decepada...

O amor como chaga
buscando as metáforas que você tanto adoraria ouvir:
sendo estrela para vagar vazio
para buscar vadio
consolo em canções,
um solo para pousar tão breve,
uma greve que me faça esquecer.

(2007)

QUALQUER FORMA DE LADO

Literal
Lateral
Litoral
qualquer forma de lado
desde que seja
colado contigo,
assim tão agarrado
nunca desgrudado...
Lado a lado
junto, conjunto
dois elementos só
literalmente só
apenas dois
apenas eu, apenas você

pena que não pôde...

(2007)

segunda-feira, 3 de março de 2008

SUPERLATIVO

Meu amor em superlativo
lascivos beijos que te dou,
exatamente extremo amor:
uma busca, uma perca, mil caminhos...

Tocar seu corpo santo,
deixar-lhe num altar
tão alta, antro, tanto, tanto...
Ser quantos,
enquanto tudo acabava
eu caberia tão bem nestes sonhos,
nada exigiria.

Uma lua beijaria o rio,
seu reflexo azul na areia verde
cantaria o assobio da graúna
e lhe sequestaria pra última casinha no cume da colina nebulosa...
Assim, superlativo...
assim, cativo
esquecido e entegre ao pó
talvez exagerado
talvez parte do show
muito insano
inacabado
completamente seu...

(2007)

OS VOCÁBULOS

E quando a palavra
tornou-se difícil
e os vocábulos empregados por Drummond
pareceu-me sânscrito gago...

Consulto, então,
o pai-dos-burros
o tio do Chico
o grosso aureolar à frente
da mesa de estudo.

e tudo ganha contornos
de uma doce bailarina a rodopiar
num único centro.

- a palavra é tão íntima dos filólogos ! -

E o Aurélio
esclarecendo-me os acentos e a rotografia,
fazendo variações nos poemas tão catédricos,

Dicionário, sopa de letrinhas do esclarecimento rápido.

(não datado)