segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

CHEIO DE VAZIOS

nada
me anima
nem ânima,
nem prisma...

nada
me comove
nem move
sem cismas...

nada
me convence
ou vence
este meu não-voar...

nada,
nem a calçada,
a ausente namorada,
o comentário que não veio,
a palavra sem um meio,
termo sem esmo,
nem a voz da Nina Simone,
nem o coração fadado,
nem a estafa, o cansaço...
nem o braço que me dá força,
nem a fraqueza de minhas franquezas,
nem a mentira que soube coibir,
nem o colibri, o brilho diáfano,
a canção ao piano, a oração ou oblação,
nem a ação,
nada, nada..

a vontade de sumir,
de subir, de estar,
o desejo de ser
de descer, de crescer
de ternurar, purificar
(catarse ou neurastenia ?!)
danificar, ficar, ficar...

se a mulher, se...
se o seio, se...
se o reconhecimento
não desse ré,
freio do que sou, ser feio
sem reflexos no espelho,
mil complexos com nexos,
sem sexo, “meu amiguinho...”

nada, nada...
cheio de vazios
cheiro do asco, do desamor
do dissabor acre,
cansado de cada acréscimo ou milésimo
de ócio, de apatia,
do que não acontece...
nada acontece...
nada...

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

(UM TANTO DE...) LÁBIA

meu bom gosto
não garante o gosto bom
dos lábios e dos tons,
dos suores ou dos amores,

minha deidade
minha flor da idade,
meu fluir...
meu querer bem
não me concede um bem,
um alguém, um mera mulher
algo qualquer, um mínimo querer...

ninguém me enxerga
ninguém me vê
sou nulidade, sou vão...
apenas amigo,
um homem a menos,
nem ao menos um lábio,
posso até ser sábio
mas minha testosterona
não diz nada, não serve, é vil...

talvez me falte um tanto de lábia:
não sei os dizeres que seduz,
os ditames que conduz
um corpo ao abraço,
braços para um laço, uma união...
quiçá gagueje, fale bobagens
seja intraduzível ou emudeço
diante dos dorsos em totens...

ou seria eu sádico nisto tudo?
sinto, demagogicamente, prazer no desamor?
será que me tornarei nulo
quando o amor, for pra mim, algo chulo?

quem sou no amor?

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

PEÇO PREÇO

peço preço por você;
peço algo bem vil,
um preço bem bacana,
podendo ser pago em mil prestações...

peço o laço dos seus beijos,
os abraços do seu olhar,
aquilo seu que me deixa bem...

cobro sua sombra que me cobre,
sua alma em momentos de calma,
a palma da sua mão que completa a minha...

quero o suor do seu instante,
sua lágrima que quara meus quereres,
o ser de seus seres,
o logaritmo que me norteia...
desejo a teia que me prende a você,
a cadeia de nossas conversas,
a algema que nos torna um...

peço preço
seu endereço...
seu começo pra eu findar,
afinar este equalizar,
localizar seu amor
e nele me preencher,
lhe encher das minhas luas cheias,
entrelaçar seus dedos e fazer da comunhão
um refúgio só nosso...

domingo, 20 de novembro de 2011

VIRÁ

ela virá, vocês verão...
ela virá
não importa a época ou o verão,
na primeira primavera,
no inferno invernal...
ela virá
e irá revolucionar,
acionar a bomba que há no meu peito,
cair do parapeito e dormir em suas asas,
fará leito dos seus cabelos, suas tranças
das traças dos tempos, fará presente meu futuro
será a linha da vida nesta colcha que costuro...

ela virá, certamente..
talvez de repente,
quem sabe duma vez...

ela virá e envolverá
meu ser, será alguém que verá
o quão sou além,
a lembrar que sempre estarei ali,
comprovar que meu amor é comunhão...

ele virá, tenho certeza...
mas, será?
não tenho firmeza...

virá, será?
o tempo passa, ela não aparece...
me pego acreditando em miragens,
me apegando a viagens
no qual vejo ser totalmente inutéis...

mas não há mãos amigas
que me apresentem alternativas,
não há ao menos uma voz ativa
que grite e solucione mais a minha solidão...
não há, não...

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

TRECHOS

Para Gonzaguinha...

amor, vem ver o ínfimo tempo...
ele é tão eterno e dói...
verá o verão, verá...
será o ser, será ?!
ou um trecho, um fecho éclair...

vendo ruas, suas mãos
e vias, veias
suar sua mão nua, na minha...
caminha na linha do trem, do treco
dos trechos, na linha da vida
nas palmas que contraem, palmas
na mão que aperta, coração
nas mãos que se encontram, coração
na cor que nunca se faz vão,
e se refaz então
como um primeiro nascer,
nasce então, sorrateiro descer
saber levantar e ventar como um assobio...
brios: viver ainda continuará sendo um sopro...

amor, vamos volver e revolver,
revirar e estancar o pó,
cantar enquanto só,
nó do novelo, velar e lavar
pra não esquecer o velho,
renovar assim, uma nave a navegar preciso,
quando tudo é tão impreciso,
quando a sina são cenas e obrigados...

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

O AGUARDADO

os opostos se atraem;
os gostos até se traem,
mas os sabores das bocas
podem ser amores,
pode ser mero acaso,
um esmero sonho, o aguardado...

aguar o desejo caduco,
torná-lo novo em esperanças...
será a renovação que alcança
ou a espera que cansa?

dizem que virão...
ninguém me oferece atalhos pra isto...
eu mesmo não me ajudo...
ela definitivamente não virá...
eu sozinho...
contemplando a estúpida felicidade alheia...
mais do que torcerem, não seria mais fácil um sim?
Não entendo...

PÉROLAS AOS PORCOS

Um amigo, mesa de bar. Chega o outro, avista-o...
- Ananias, você por aqui ?!
O primeiro, cara infeliz, apenas o observa; logo beberica de seu copo...
- Posso me sentar ?! – pede.
Ananias faz positivo com a cabeça.
O outro pede um chope ao garçom e logo indaga:
- Ananias, que puta cara é esta, camarada ?!
Ananias não conseguia lembrar o nome daquele sujeito. Mas achou que deveria desabafar...
- Ah, assim... Sabe a Pepê ?!
- Sua esposa ?!
Ananias desconfiava, cada vez mais, que não conhecia tal cidadão. Mas confiou-lhe voto: precisava mesmo desabafar com alguém...
- Sim, ela mesma...
- E o quê tem ela ?! – logo chegando sua bebida.
- Cara, você promete não contar a ninguém ?!
- Juro sigilo...
- Olha, vou confiar mesmo... – achando estranho fazer tal cena, já que ele jurava que não conhecia seu confidente...
- Conte, Ananias, conte...
- Ai, não sei se devo...
- Ananias, não sou seu amigo ?!
“Não, não é...”, pensa esquizofrênico.
- É, é sim...
- Pois então... Sem acanhamentos, conte vá...
- Tá certo então... Sabe a Pepê, né ?!
O outro, enquanto bebe de sua cerveja, faz sinal de “prossiga” com o dedo.
- Pois então... Somos casados a três anos e meio... – achou que deveria informar aquilo à aquele “estranho conhecido”...
- Sim... E ?!
- E assim... Tavamos tendo uns problemas na hora do... bem, do...
- Do ?! – com o “o” bem prolongado...
- Na hora do... – engasgava-lhe falar aquilo. Nem tinha certeza se conhecia aquela figura.
- Ananias, não faça cerimônias... Sou seu irmão, brother... Conte mesmo, vá...
Aquela situação toda começava a lhe atacar o estômago. Precisava dum sal de frutas, precisava desabafar...
- Ok: nós tamos com um problema na hora do rala-e-rola, da transa, de fazer amor... – logo achou desnecessário tantos epítetos sexuais.
O outro segura o riso, mas logo sorri amarelo...
- Bem, Ananias... Isto é comum, sei lá... Vocês já tão a tanto tempo juntos... Quantos anos mesmo?! Cinco anos ?!
- Não... Três anos e meio... – cada vez mais desconfiado que deveria encerrar a conversa por ali...
- Certo, três e meio... Mas qual é o problema de vocês dois ?!
Temia que ele lhe fizesse esta pergunta. Pensou em censurar tudo aquilo, mas algo lhe prendia para tal decisão...
- Assim... Ela tem uma espécie de disfunção...
Achou que uma explicação científica afastaria a curiosidade daquele (certamente) estranho. Contudo ele continua:
- Disfunção ?! Como assim ?! – pergunta, enquanto pega uns amendoins dum pires.
Ananias achou invasão de privacidade ele querer saber detalhes, achou canalhice ele pegar do seu amendoim, achou ultrajante aquele maluco estar naquela mesa, conversando como se lhe conhecesse de vários anos... Mas será que não conhecia mesmo ?! Sua mente oscilava inconstante...
- Você promete guardar segredo ?!
- Prometo sim, Ananias... E quando foi que lhe falhei ?!
Ele não sabia. Ele não conhecia, não lembrava daquele indivíduo...
- É, nunca...
- Pois então... Conte, vá... É bom a gente se abrir nestas horas...
- Bem, antes eu achava que tinha uma vida sexual feliz ao lado dela...
- E não tinha ?
- Bem, eu achava que tinha. Até que um dia conversamos e descobri que ela nunca tinha tido um orgasmo...
- Ah, Ananias... Isto é comum. Quase todas as mulheres fingem orgasmo na realidade...
Começou a sentir raiva do “Isto é comum” dele. Pensou instantaneamente em pagar a comanda, sair daquele bar e ir direto pra casa: hoje iria passar uma sessão de filmes do Humphrey Bogart na TV a cabo...
- Só que ela me confessou que gozou de verdade comigo uma única vez...
- Hum, que bom... Quando ?!
- Olha: o que vou lhe contar é extremamente confidencial. Nem sei ao certo porquê devo falar disto contigo...
- Ué, Ananias... Somos amigos. Amigo é pra isto, desabafe mesmo...
Sabia que não eram amigos, cada vez mais sabia disto...
- Ela me confessou que teve um orgasmo no dia em que demos uma rapidinha durante um show do... do...
- De quem, Ananias ?!
- Ai, tenho vergonha de dizer...
- Vamos lá, diga aqui pro seu chapa: diga-me, vá...
“Preciso mesmo dum antiácido...”, pensou.
- Do Guilherme Arantes !!!
O outro se conteve pra não soltar o riso – fora impossível...
- Perdão, Ananias... Você disse Guilherme Arantes ?!
- Sim, disse sim... Agora descobrimos que ela só entra em orgasmo ouvindo a voz do Guilherme Arantes...
O estranho indivíduo solta apenas um “caramba”. Ananias prossegue:
- Parece insanidade, mas é verdade... Há um mês só transamos ao som de Guilherme Arantes. É “Êxtase”, “Meu mundo e nada mais” direto... “Fã n° 1”, por exemplo, a deixa nas alturas !!! “Pedacinhos” então... Nem se fala !!!
- Putzs, cara...
- Agora fico com “Adeus também foi feito pra se dizer: Bye bye, so long, farewell...”na mente o dia inteiro !!! Até parece mantra, Não agüento mais...
- Rola até com “Planeta Água” ?!
- Moço, nem fale nesta... Eu broxo só de ouvi-la !!!
- É, Ananias... Sua situação não tá boa não...
- Homem, eu odeio Guilherme Arantes !!! Acho que agora sou eu que vou ter uma disfunção sexual...
- É, tá russo mesmo... Cara, o papo tá bom, mas infelizmente tenho outro compromisso. De boa: compre um protetor auricular ou põe um chumaço de algodão no ouvido. Talvez até resolva... Ah, paga este chope pra mim, valeu ?! Em nome da nossa velha amizade...
E sai rapidamente. Ananias então abstrai aquilo tudo, a começar pelo nome: seu nome não é Ananias !!! Olhou rapidamente seu RG e constatou:
- Damião Henrique dos Anjos... Ah, filho duma pu...
Antes que completasse o palavrão, repensou o conselho dado: uma mínima surdez na hora do amor em nada imacularia a coisa em si... Sim, é isto !!! Pensou em correr atrás do já declarado estranho e apertar-lhe as mãos, dá-lhe um maço de cigarros ou até as chaves da casa de praia, mas conteve-se a apenas girar o dial na hora que o rádio do carro anunciou mais uma do Guilherme Arantes...

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

VERSÃO DOIS DO MOMENTO UM

Típico programa dominical, aparece atenuante figura:
- Ôêêê, começamos mais um “Namorico na TV”... É com você, Bombardim !!!
Após os reclames, aplausos. Um contra-regra me empurra, adentro o palco. Mais aplausos... O apresentador me cumprimenta e diz:
- Mas você é o Amadeus, certum ?!
Logo percebo que há um crachá em minha lapela, escrito meu nome em letras garrafais.
- Mas meu filho é mudum ?! – comenta o sujeito de cabelos entopetado e acaju. O público ri.
- Nã... não...
- Então você está aqui atrás duma namorada, certum ?!
Sorrio amarelo.
- Mas diga: tá ou não ?!
Apenas confirmo com o balançar de cabeça...
- Vejo que o garoto é tímido, não é publícum ?!
Em uníssono, a plateia responde um “sim” cheio de “is”...
- Mas, sente, sente...
Há um sofá enorme, em formato de coração... Sento-me nele. O animador fica ao meu lado. Olho para o auditório, uma placa no teto acende em neon, com os dizeres “silêncio”...
- Repito: você tá atrás dum grande amor, estou certum ?!
- Tou sim, seu Mílvio Mantos...
- Você não tá conseguindo arranjar namoradas no mercado, meninum ?!
O público ri. Uma espécie de coreógrafo tenta acalmá-los...
- Não, seu Mílvio Mantos... Tá fácil não...
- Mas você se esforça ao menuns ?!
- Eu tento, seu Mílvio...
- Sem sucessum ?!
- Assim, vez em quando eu até bico aqui ou ali... Mas nunca pinta nada sério...
- Sei, sei... Mas qual é o problemam ?! Você até que não é um rapaz de se jogar foram...
- Acho que o problema é que sou muito eu, saca ?! As mulheres não me agüentam por mais de quatro horas !!!
- Certo, certo... Mas vejo aqui nas minhas fichas que você está interessada numa rapariga, corretum ?!
- É, é sim...
- O nome dela é Anna Lud, estou certum ?!
- Tá sim, seu Mílvio...
- E ela é muito bonitam ?!
- “Elas”, o senhor quer dizer...
- Como assim “elas” ?!
- Elas, tipo... Ah, chama aí que o senhor vai entender...
- Ai, ai... O mocinho sabe que bigamia é crime no Brasil, não ém ?!
Mais risos de velhas gordas e jovenzinhas em faniquitos...
- Bem, bem... Que entre então “as” Anna Lud !!!
E logo os aplausos dão lugar à reações de espanto. Mílvio Mantos não se contem:
- Mas são gêmeas siamesas ?!
Anna Lud – ainda sem me vê – cumprimenta o comunicador, apertando-lhe as mãos...
- Acho que a primeira vez que vejo uma coisa destam...
- Ah, existe primeira vez pra tudo né... – diz apenas uma das cabeças.
- É verdade, é verdade... Mas, mas... Você nem imagina que tá de flerte contigum ?!
- Ai, sei não, seu Mílvio...
- Nem desconfiam ?!
- Não, não... Tou curiosíssima pra saber !!!
- Teria alguém que você gostaria que fossem ?!
- Ah, tem vários... Não sendo o insosso do Amadeus, de resto tá ótimo...
- (ri) Certum, certum... Mas, (ri com mais força) antes de vermos quem é o mentecapto, me mate uma curiosidade: neste tempo todo, vocês nunca quiseram se separar ?!
- Ai, seu Mílvio, aproveitando o espaço me dado, eu queria pedir pro senhor...
- Mas você está confundindo os programas. Aqui não é o “Porteira da Esperança” !!! Vamos logo, venha ver quem é aquele que tento o quer, venham...
Anna Lud se aproxima, Suo frio nas mãos... Finalmente ela me vê:
- Amadeus, não acredito...
Respondo com um inaudível “oi”.
- Não acredito que é você... – diz, sentando-se ao meu lado...
- Pois é, pois é...
- Cara, você é louco mesmo. Eu já não te disse que entre a gente não rola nada ?! O que você pretende afinal ?! Me matar de vergonha em rede nacional ?! - Neste momento as duas cabeças falam ao mesmo tempo, entrando em total desconexo.
- Mas, Anna Lud... Eu gosto de vocês de verdade, é amor...
As gêmeas entram em acordo e uma delas começa o sermão:
- Amadeus, cara... Eu já disse que meu carinho por você é de irmã, de amiga... Não há e nunca haverá atração sexual entre a gente. Por favor, não subestime minha lucidez !!!
Fico quieto, como se querendo esconder minha alma na parte mais abissal de meu corpo...
- Você é sem graça, sem vaidades, fraco, tolo... Como amigo assexuado você serve que é uma beleza, mas como namorado...
- Não, nem fale... Eu até já sei como vai terminar seu discurso: “Você um dia vai encontrar...”
- “Encontrar alguém...”. É, é isto mesmo que eu penso, já te disse. Você vai ter uma garota massa, que te ame mesmo, é só ter paciência... Vai ser qualquer uma, menos euzinha aqui...
- E por quê você tira o seu da reta ?! Por que não pode ser você, hein ?!
- Ah, Mate... digo, Amadeus... Vou bater na tecla mil vezes de novo: não sou eu porque não sou eu e ponto !!! (neste momento a platéia grita um “ahhhh” de condolência...)
Resmungo qualquer coisa, soco uma das mãos na outra palma... Mílvio Mantos então entra:
- Mas, Anna Lud...é Anna Lud, né ?!
- È sim, seu Mílvio...
- Então, então... Anna Lud, dê uma chance pro nosso amigo Amadeusum ?!
- Pôxa, seu Mílvio... Não deseje uma desgraça desta pra mim não... Amadeus é um puta cara gente fina, mas não serve sexualmente pra mim...
- Mas, mas... Veja a cara do meninum... Ele tá em chorum... O que o auditório acha: dá uma chance pra ele ou não dáam ?!
Centenas de vozes femininas gritam um “dá”, seguidos duma alternância de “dê uma chance, dê uma chance...”. As cabeças de Anna Lud já não sabem pra onde olhar, uma tentando querer esconder a vergonha da outra... Eu, no meu canto, digo num quase grito:
- Eu só quero uma explicação plausível, Anna Lud...
- Mais plausíveis do que as que lhe dou, Amadeus ?! Cara, ai, ai...
O coro de “dá uma chance” aumenta ferozmente. O “patrão” faz um sinal, logo entendido pelo coreógrafo de palco, que exige silêncio num só gesto.
- Bem, bem... Não podemos forçar a menina a escolher o que ela não deseja, corretum ?!
Passo a mão por dentro do meu colete. Uma grata surpresa pra todos, certamente...
- Assim sendo – continua Mílvio – só posso lhe desejar boa sorte, Anna Led...
- É Lud, Mílvio, Anna Lud...
- Ah, certum, certum... Boa sorte, receba esta lembrancinha do programa e boa sorte pra vocêm... – e Mílvio Mantos grita, sempre com vogais hiperbólicas – Broque !!!
Logo aparece um sujeito, que entrega um buquê de flores pras gêmeas. Quando ia me levantando, o apresentador me segura pelo braço e me desce com força para o enorme puff.
- Espere um pouco, Amadeusum... Me comovi de verdade com sua situação. Quero lhe ajudar a encontrar a outra goma da sua tangerinam... Tou pensando aqui, vai ser algo inédito no programam... Tem um quadro onde uns rapazinhos ficam olhando umas mocinhas por uns binóculos, você deve conhecer, não ém ?! Pois então... Vou lhe dar mais uma chance de encontrar o amor, se você quiser, é clarum... Você tem apelo popular, nosso ibope vai subir que é uma belezam !!! Por favor, aceite participar deste quadro tambéem...
Cortejo então a proposta, mais uma vez a platéia incendeia com seus gritos de “aceita, aceita...”
- Bem, tudo bem então... – digo, concordando.

Seguem-se as gravações, agora estou num dos cantos do estúdio. Há uma patota de uns oito garotos, todos munidos de binóculos azulados e exalando feromônios por todo lado. Antípoda a isto se vê um grupo feminino, igualmente de binóculos – estes, cor de rosa – e com um sorrisinho maroto e fuxicos inocentes a cada resposta do grupo alheio. Não me sinto nada a vontade, contudo tento fixar olhos em alguma garota. Algumas são até bonitas, dariam ótimas namoradas certamente... Como não estou muito bonitinho para escolhas, opto por alguma que esteja correspondendo ao meu ataque. Bixo, acredite: nenhuma me olha com maiores interesses.
Então Mílvio Mantos pede uma música de fundo. Rola um Núlio Iglesias das antigas, os rapazes dirijam-se em direção às moças do outro lado. Demoro pra ficha cair, mas sigo a direção dos caras... Cada um procura seu flerte combinado, vou cambaleando e sendo jogado de lado, empurrado com asco de um lado para outro, até que pela graça do número par de presentes, sou glorificado com uma mina que fica no vácuo, quiçá torcendo para que eu não a percebesse...
Então chamo-a para dançar. Ela aceita – parece que era contratual: ela não podia recusar dança à um participante... Bailamos, eu ainda tímido, ela a olhar para um outro camarada. Num certo momento, quando já estava me preparando para o xaveco, ela antecipa-se e diz ao meu ouvido:
- Nem cogite esperanças, que eu não vou lhe aceitar em namoro não, valeu ?!
Aquilo me brochou de imediato. Pensei em retrucar, querer saber o porquê daquela decisão...
- Bem, tudo bem então... Bôra continuar a dançar só por burocracia, né ?!
Ela concorda e logo a música pára, as luzes se acendem, Mílvio Mantos se aproxima... Começa a fazer a enquete de quem namora quem, sempre pedindo os palpites adivinhatórios da platéia... Seguro a mão daquela garota, apenas por trâmites do programa, algo frio... Mílvio nos deixa propositadamente por último. Muitos casais depois, troca de parceiras e afins, continuo segurando a mão daquela da qual sei que me dará um fora monumental...
- E finalmente chega Amadeus...
Aplausos efusivos ecoam pelo estúdio.
- Então você conversou bastante com esta garota ?!
Acanhado, respondo com gestos, o que motiva risos entre todos... Mílvio prossegue com o qüiproquó, cheio de piadinhas e tiradinhas sacanas. Ambos queríamos uma definição praquilo logo... Então, finalmente, o apresentador pergunta:
- E aí, minha filha, é namoro ou amizade ?!
- Deste traste eu não quero nem amizade...
Começa então uma saraivada de vaias...
- Mas que é que isto ?! – pergunta Mílvio Mantos – Qual mal este moço lhe fez ?!
- Certamente o de ter nascido no mesmo mundo que eu... Sai pra lá que eu te chuto, macumba !!!
Mais vaias cobrem o local. A moça responde:
- Se vocês defendem tanto este mané, por quê alguma de vocês não namora com ele ?!
Silêncio absoluto... Passo mais uma vez a mão por dentro do colete. Não resisto e tiro-o duma vez: um 38 cromado... Pego Mílvio Mantos pelo pescoço e ponho a arma perto de sua orelha:
- Parados aí que eu mato este esclerosado...
Um batalhão de seguranças se faz em frente. Um cameraman ameaça sair de seu posto...
- Não desliga esta bosta não, senão eu atiro... Falo sério !!!
Todos pedem calma, um dos seguranças – seguramente o chefe deles – tenta negociar...
- Me ouçam: tou com este babaca como refém... E o que quero é simples... Só peço uma namorada bacana, que me queira de verdade... Tou com duas balas nesta porra. Se em dez minutos não aparecer uma mina disposta a me aceitar, eu mato este zé-ruela e depois eu me mato, aqui na frente de todos... – já choramingando – Por favor, não me forcem a fazer o que não quero...
Neste momento o palco é todo escoado, mulheres saindo nervosas, em prantos... O superior entre os policiais propõe que eu desista, que abaixe arma e me entregue. Contudo estou irredutível...
- Uma namorada, moço, é só o que peço...
Nesta hora Mílvio Mantos diz:
- Moço, não peça o impossível. Vamos negociar algo que meu dinheiro possa lhe pagar... Que tal a paz no Oriente Médiom ?! Isto posso conseguir pra vocêm... Ou o fim da corrupção no Brasium ?! É mais fácil e lhe faria bem... Que tal então uma cesta com produtos da linha Muriqui ?!
- Não quero merda de perfumes e creminhos não... Cala a boca, seu velho caquético !!! Quer morrer, quer ?! É só você abrir esta sua bosta de boca... Experimenta pra ver, vá...
Foi no exato momento em que fui alvejado por um tiro fatal, bem no pescoço, o suficiente para deixar o apresentador ileso... O autor do disparo fora treinado na polícia secreta israelita e estava escondido nas coxias do estúdio...

Então me torno herói, um quase santo... Criam-se páginas em redes sociais, algumas com os dizeres “Eu daria uma chance pro Amadeus”, “Amadeus: o namorado perfeito”, “Eu só quero uma namorada – Amadeus Forever”, entre outros... O vídeo com toda esta história fica entre os mais assistidos de todos os tempos, propõem-se construções de obeliscos em minha homenagem, praças levam meu nome de norte a sul deste país, viro um mártir entre os solteirões encalhados, sou estudo em debates acadêmicos, em rodas de conversas antropológicas, cafés filosóficos, palestras de grandes figurões, viro tema de teses, uma nomenclatura científica para certos traumas psicológicos... E, em algumas mesas de bar, um motivo de lamentações etílicas, com garotas se dizendo, no fundo, no fundo, um pouco apaixonadas por mim...

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

É POSSÍVEL (POR MAIS QUE WESLEY NÃO ACREDITE...)

é possível
alguém se apaixonar por mim,
gostar do que escrevo
aqui ou em qualquer espaço,
sim, é possível...

escondo-me da ação,
faço-me anti-prático, apático,
não vivo...
rastejo nos breus ateus,
lá onde laços não hão
aonde a luz se põe, se separa
onde tudo pára...

mas é possível
que a musa inadmissível
venha a jato, feito míssel
apareça impossível,
quebrando regras, réguas, tréguas...

é possível
que seus olhos me amem
além dos lábios,
aquém, seus sábios sorrisos
sejam transes precisos
e queiram assim meu indolente ser...

é possível que ela venha
é possível que já esteja
é possível ela acessível,
é possível tocar suas mãos máculas,
é possível que ela decifre o apócrifo,
o anacrônico, os palíndromos epítetos...

é possível que ela passe
e eu nem...
é possível que ela nuvem
e eu também...
é possível que a idade finde,
que o fim invente,
que o eterno cegue,
que a visão canse,
é possível até que a inexistência
tenha-lhe tocado a face, as fases, as frases
que nunca disse, que sempre digo...
é possível que tudo seja mero engano,
sincera brincadeira do destino,
eu, em desatino e bobo,
acreditando e creditando ao futuro
a chegada vil e sutil da possibilidade...

tudo isto pode ser
tudo isto talvez será,
contudo tenho que adiantar
que ainda sim
é possível...

domingo, 30 de outubro de 2011

FOME DEMAIS PRA DORMIR, APATIA DEMAIS PRA COMER...

Baseado numa tuittada de @mabaleia

Não saiam de casa:
há elefantes soltos na rua...
Saiam de casa:
há elefantes soltos...
Eles voam
e dá pra pegá-los pela mão...

fome demais pra dormir,
apatia demais pra comer...
comer mais a mais: produzir sono e devorar sonhos,
feito monstros de Goya,
como a descoberta dos espelhos,
deste eu maçante, anti-ético...

AQUI, TÃO PERTO...

em voga, alguma vogal:
são poucas, nem completam um verbo
deixam meu corpo vago,
meu sustenido, gago...
deixa o instante seco,

você em eco, em mim,
dominando meu ego,
fazendo-o espectro
que lhe reflete assim – aqui, tão perto...
mas você nem está aqui ao certo...
e talvez faça da minha vida um deserto,
reta do incorreto, círculo sem setas

vontade de tê-la neste momento,
metade numa tela, outra parte no rebento...
e que se espalha-se pelos espelhos,
dos cofins ao sideral,
fazendo-a tão somente musa única,
descobrindo que sempre fui unicamente seu...

terça-feira, 25 de outubro de 2011

SEM DESTINOS (TRÊS ACORDES)

é preciso estender a mão,
é preciso entender que o irmão
pede, cede, insinua...

é preciso precisar o quão as palavras
irão ferir, é preciso
ir em vão, sem destinos...
é preciso somar forças e subtrair tiros,
não trair o amigo nem titubear diante obstáculos,
é preciso oscular o novo sem ocultar o antigo,
limpar gavetas sem esquecer da naftalina,
rever fotos, conceitos, incisões...

e com três acordes acordo o mundo,
faço acordo com os cordados,
traço cordas dissonantes, candeio as cadeias
do mundo, os laços e as prisões...

e diante todas as decisões,
sorrir para inimigos e colaborar para o bem,
não pensar muito em infernos ou além,
se o mundo acabar, que caiba todos os sonhos em mim...
se a chuva vier, contemple o sorriso que instantaneamente virá...

AMOR, VÁ TOMAR NO C* !!!

amor, venha...
não venha com estas garras, com estas guerras...
amor, não venha...
venha de vendas nos olhos,
com suas sedas, com suas sedes...

Amor, vá tomar no c* !!!
não lhe quero mais,
quero-lhe em paz, calada
cálida, quase pura
em sua lisura, seja morna
venha brasa, venha brisa
venha lúdica, venha palíndroma
venha íntima, numa redoma
pousada na sua glaucoma, em coma cósmica
venha onírica, não venha...
vá embora, vá agora
lhe quero agouros, não pouse aqui
esqueça de mim, vade retro
esteja a cinquenta mil metros do meu coração, demarco linha
fique sozinha, lhe amaldiçoo
venha sem voo, tropece numa pedra
não venha, louca
me esqueça torta,
bato-lhe as fuças na porta
estrago a simpatia, rogo-lhe um ebó...

ah, amor
venha, venha logo
beijo-lhe, faço delícias por você
dou-lhe papinha na cama, cafuné na cabeça
um ramalhete, confetes, um presente da Natal..
amor, apareça após contar até dez
não faça esconde-esconde com meu coração,
queira-me no seu bem-me-quer.
ame meu pedido,
faça-me amigo, amante
um colorido desejo...

ah, amor
seu idiota...
por que demora, será que não vem?
não lhe quero mais, não preciso de você
vou passar a roda do carro em sua cabeça
e queimar com seu braço com a ponta do cigarro,
vou te fazer beber água sanitária,
lhe desejo malárias;
que você tire zero na prova de álgebra,
que quebre acidentalmente uma vértebra,
que sinta febre, dor de dente,
diarreia das fortes, cãibra descontente
que você vá pro canto de castigo,
ajoelhe no milho, vá a merda, a puta que o pariu
que lhe digam verdades num primeiro de abril,
que seu escutar seja sempre senil,
que no seu carnaval faça frio,
e que joguem num caldeirão fervente
o seu boneco de vodu...

amor, amor...
surja, dê sinais
acabe com estes meus ais
que tendiam a crescer mais e mais...

não, não venha...
fique aí, ao lado dos mendigos...
dispute carne podre com os urubus;
que cuspam na sua cara, vomitem na sua camisa de domingo
te joguem água enquanto estiver dormindo
e lhe atirem num poço fétido;
e lhe façam entrar num jogo sortido,
lhe retirem as sortes,
que sejam sádico contigo,
lhe arranquem um rim e lhe deixem numa banheira cheia de gelo,
que ninguém ouça seus apelos,
e que te deixem esquecido no shopping, numa sessão
de achados e perdidos, num escuro límpido,
no fundo do Tietê...
que mordam você,
lhe causem tifo, gangrena, lhe tornem tísico
que batam no seu físico e imaculem seu interior,
você, amor...

vá tomar naquele lugar:
um casebre cheio de flores,
um dia bom cheio de cores,
utópico sonho, sem dores,
sândalo lhe canto, um instante, uma boa surpresa
que tudo em sua vida seja
uma maçã-do-amor,
o perfurmar dum amor-perfeito,
um quindim de final de festa,
o primeiro sorrir de seu filho...

enfim, amor que amo e odeio,
que nasce e logo quero matar,
que (ingrata) nunca aparece...
que (sensata) suas pegadas tece,
amor, coisa chata
amor, uma praga
amor, minha dádiva
amor, instante raro
amor em déjà vu,
amor que já vi,
amor cego à minha presença,
amor aliança,
amor num romper de grilhões
amor pros milhões
amor, meu ninguém
amor, harem
amor, o que me deixa só
sem alguém... sem mim, sem tu....

amor, vá tomar no c* !!!

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

FEITO JONH E YOKO

Para todos os casais amigos - aqueles que felicito e invejo...

feito John e Yoko,
feitos um para o outro,
feito eu e você...

feito cornubação,
simbiose de almas siamesas,
junção de mãos, encontro dos pés ,
visão do mar em algum convés,
pantomimas bobas são nossos olhos a se encontrar...

feito John e Yoko
uno em duo, jeito de corpo
feito o peito oco
antes da completude,
feito maturidade em juventude,
feito fonte, feito ponte
ponta de saudades,
a saúde dos meus olhos a lhe encontrar;

contra todos os contrários,
peitando as banalidades dos otários,
feito o feitio dos que espalham gentilezas,
feito os que espelham nossas internas belezas,
feito o amor, prontinho pra gente
feito os defeitos que nos tornam perfeitos,
feitos os casais que invejo,
feito a lúdica que cortejo,
feito sonhos que me fazem sólido,
solidão de quem espero, feito ela que não chega
feito os chegas que grito em desamor,
feito desmoronamento da fantasia,
feito o que não me agracia...

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

MAR E LEME

vamos tentar
nós dois,
atentar contra a lógica
que tenta nos separar,

vamos fazer de nós
um nó,
um singular plural,
um casal ou casulo,
célula única, médula e túnica -
o que ergue e aquece,
o que segue e adoece,
meu doce, meu amargo...

fazê-la mar,
meu mar, meu leme
mar e leme do meu ir...
conduzir meu ser torto
ao porto duma segurança qualquer,
uma sanidade sem idade,
infantilidade saudade,
saudosa rosa,
rasa plataforma, arpoador
qualquer forma de amor,
e do qual quero esta mordida...

mórbida distância entre nós:
você tão alta, acima dos meus céus,
rasgando os véus que desvelam este eu, a vela,
o leme, o mar...

CONSAGRAÇÃO

sou um poeta de merda:
não aparo as cerdas
que me ponham num bom declamar;
clamo e me expresso: assim é meu poetizar.
minha léxica disléxica,
minha métrica não gramatical...

escrevo com sinceridade
e oferto minha cara aos críticos
– “Vão, vão logo...
podem jogar seus tomates podres em mim...
não presto, não sou poeta, sou um demagogo
que denigre o sentido das palavras...”

não me encontrei, nem tenho damas:
meu samba parou, não sei se sou
o que sou,
ou acho que sou...
faço do que escrevo alicerce, meu cobertor,
o pathos que me define, a cura insana pro meu surrealismo...

sexta-feira, 16 de setembro de 2011

ENTREVISTA

Uma entrevista comigo, dada à Marcelo Novaes – inicialmente no “Bloco de Notas” (já desativado), e agora publicada em seu novo blog (futuramente pueril, conforme o próprio) “Uns Tantos” (http://marceloconversacom.blogspot.com)

MN: Mateus, qual o tamanho do passo da prosa cotidiana de cada dia para a poesia?



MD: Em primeiro lugar agradeço a atenção que me é dada pelo “Bloco de Notas”. Nem sei se tenho maturidade suficiente ou obra contunda para uma entrevista de tal porte... mas, respondendo à pergunta: o tamanho deste passo é a própria dimensão da vida. Poesia é descrição de vida, oscilada com pontos surreais e/ou imaginários. Já a prosa é a versão escarrada disto. Viver é um eterno conto a ser contado... ou seria também um poema a ser declamado?! (risos) Me atento em especial ao redundante “cotidiano de cada dia”... sim, porque há dias que não soam tão cotidianos (no sentido mais buarquiano da palavra), né?! Contudo o “cada dia” já nos remete a algo bem cotidiano... ah, sei lá!!!! Sou um eterno paradoxo... (risos)




MN: Diz você, Dourado, em Furta-Cor: sentir-se/ peixinho verde/ no meio/ do mar vermelho,/ enquanto o espelho solene(mente) reflete: “perde, perde...” Das perdas se arrancam poemas? Ou em termos de filme americano: "Are you a loser, man?"



MD: Não sei se necessariamente “arrancam poemas”, mas a derrota faz parte da vida, concorda?! Perder é o primeiro passo para se valorizar uma vitória. Só sabemos o delicado gosto de vencer depois ou através do acre sabor da derrota. Soa meio Los Hermanos e é bem “Loser mano” mesmo (risos). Mas enfim... estes versos em especial, assim como quase toda a minha obra, retratam situações autobiográficas, momentos que se passam comigo e que os criptografo em poesia. Nesta poesia tentei mencionar o lance do procurar “se encaixar no mundo”, tal qual o quebra-cabeça que é o nosso viver... e claro que caminho pelo lado do não-encaixe, por isso mesmo do tal “perde, perde...”. Este talvez seja o meu grande dilema: procurar me encontrar no mundo. E não falo apenas no âmbito social, mas sim e também no aspecto psicológico, econômico, passional, familiar e, principalmente, humano.



MN: Há o impulso de "gravar o selvagem ou as coisificações do puro" [expressão sua], desde as pinturas rupestres. A solidão também impele [ou compele, dependendo do grau], e talvez faça parte da mesma equação. Eu, aqui, te lembro uma pequena coisa: desenham-se animais [ou mimetizam-se suas danças] para depois caçá-los, ou deles se aproximar. Disso concluo que se escrevem poemas para se aproximar "da coisa selvagem" ou dar "alguma forma possível ao puro". A poesia te permite essas duas faces das possibilidades da grafia-ritual, ou, por outro lado, "é um saco ser lido por um psicólogo junguiano"?




MD: (Risos) Só Jung tem poder !!!! (risos) Bem... acho que este verso deve ter sido influência de minhas leituras de Manoel de Barros. Mas analisando-a, sei lá... pode também ser algo rousseauniano, aquela parada de se buscar o primordial homem natural, saca ?! Mas creio nos gráficos como acalanto para a solidão humana, como aquela sensação de achar que o mundo todo te ler ou te lerá um dia, que escrever, pintar, atuar ou qualquer forma de arte te aproxima da humanidade como um todo... poetisar me faz humano (não tão demasiado, mas ainda sim humano...). “Escrevo porque não falo”, já diagnostiquei um dia num escrito meu... e todo mundo precisa dizer algo. E é claro que sempre se diz algo a alguém, como nossas professoras de Português já diriam em aulas sobres verbos e seus transitivos... (risos). E é também a poesia (linguajar dos deuses?!) nosso balbuciar primeiro. Antes o “poemar” do que o pragmatismos dos “pêa-pá, PA... pêa-pé, PE...” que nossos pais nos ensinam para um melhor dialogar!!!!! Falei abobrinhas demais?! (risos)




MN: Caetano e Betânia fazem parte [e são parte] da tua trilha sonora a embalar poemas. Além de serem baianos [como você], esses dois fazem verdadeiros "acalantos". Em termos de "trilha de fundo", o que mais acalenta teus versos? Certa cantiga tua me remete a seresteiros de outrora [talvez você ouvisse os discos de seus pais...]. Fale um pouco deste imaginário poético-musical. Devo lhe dizer que outro dia, vi um documentário sobre Silvio Caldas e Orestes Barbosa e me inspirei... [pra falar de coisas como "calúnia", por exemplo, os antigos pegavam na veia, não só dor de cotovelo...].



MD: Não consigo conceber poesia sem música. Me parece insensato um poema concebido em estado de total mudez... e, graças a lira de Orfeu, a música industrial-comercial nos delicia com bons instantes e insights de contemplação e hedonismo... Agora mesmo respondo esta pergunta ouvindo o incrível “Matita Perê”, disco de Tom Jobim de 1973 (e quando menciono referências não é com intenção de ser ou parecer esnobe, besta... cito-as com sinceridade, com espírito solidário, vontade de dividir o que ouço com meus leitores...). É um ato altruísta, saca?! Como se eu pudesse dizer “cara, leia este poema ouvindo tal álbum, tal som...”. Gosto muito da rotulada MPB no geral, rock nacional e internacional, samba (Cartola já embalou muitos momentos meus...) e outros, outros... agora minha tara maior é música antiga. Costumo dizer que me excito com música cheirando a mofo (risos) – quando vejo uma data tipo anos 50, anos 60 do século passado, ah... entro em transe total !!!!! (risos) Meus pais são musicais ao estilo deles, cada um na sua (minha mãe, por motivos religiosos, tem cadência pelo gospel; já meu pai permeia por sons mais interioranos, especialmente Luís Gonzaga e música melódico-brega...). Não tive, portanto, uma típica “herança musical”: muito do que ouvi descobri na rua, através de amigos e/ou conhecidos, na minha época de faculdade, aos poucos e num processo meio autista, entende ?!




MN: Poetas, por falarem para poucos [ou "nenhuns"] por vezes fantasiam coisas interessantes, que são brados. Eu escrevi um poema vociferante contra a letargia acadêmica e o retardo do olhar da crítica frente à literatura com um poema: "Voo solo". Agora, encontro no teu blog um "monograma". Pergunto: uma andorinha em voo solo dá pistas sobre a estação do ano? ou poesia, para ser vista e descoberta, precisa de "agito coletivo", "organização do ímpares em pares", ou movimentos, como ocorreram no passado? [A Semana de Arte de 22 seria o marco mais emblemático desse tipo de pensamento]. Quem ausculta vozes solitárias? [Se você ora, certamente concebe quem ausculte, mas não "horizontalmente"...].




MD: Já me arrisquei a fazer um “poema-coletivo”, mas confesso que gosto da coisa “casulo” que a poesia lhe proporciona, para deste então brotar o escrito... é meio transcendente, como se “as moiras da poesia” não viessem gritando para todos, mas sim num sussurro para escolhidos... Não faço parte de movimentos, mas me utilizo de alguns de seus artifícios, como a atividade poética dos concretistas, por exemplo... Poesia é me trancar no quarto e num lapso escrever... e aí você me pergunta: seria então escrever ao léu?! Bem, creio que sempre escrevemos para alguém, como já disse na pergunta 3. Hoje em dia temos muitas formas de nos divulgar de uma maneira mais introspectiva (bem tautológico esta parada de se “divulgar introspectivamente”, não ?!), seja através de rede sociais, ou então pela própria atitude de se bancar a publicação seus escritos... ou seja, podemos lançar nossa garrafa ao mar sem que necessariamente haja um receptor. Quando escrevo é assim: jogo minha mensagem e se ela atingir alguém, tudo bem... se não, o que há de se fazer?! Dizem que a criação é um dejeto que precisamos jorrar de alguma maneira... ao vencedor, as batatas, aos meus leitores, minhas fezes?! (risos)




MN: Quando você "brinca sério" de pensar o criar, salta do Logos ao Lego, retrocedendo até o apeiron como matriz primeira das coisas, antes das delimitações e conotações. Ou seja: você chegou a Anaximandro! Diga-me uma coisa, enquanto poeta pensante [não importa se incipiente]: pra que serve o filosofar sobre as questões primeiras e últimas [ainda que só cheguemos às segundas ou terceiras, e às antepenúltimas]? Filosofar é escolha ou escolho diante de nossa falta de escolha? Somos levados à filosofar, para além [ou aquém] da escola? Ou pensar em tudo isso acaba sempre em "lobotomização" ou "curto-circuito neuronal"?




MD: Pertinente esta sua pergunta... bem, sempre penso num “filosofar” do nosso senso comum, o filosofar longe dos academicismos herméticos e livre no seu mais puro pensar... é a filosofia vulgar, embrionária e eugênica, sem contaminações, o filosofar primeiro, da letra minúscula, “filosofia”... e talvez nisto aí lhe remeta aos pré-socrático. Falo da filosofia antes da Filosofia (com F maiúsculo), a indagação sem conceitualidades pré-moldadas, sem rótulos ou influências... é claro que Hegel, Nietzsche ou Merleau-Ponty tem o seu grau de importância, reverencio os seus totens e deles me embeb(ed)o... mas gosto do filosofar primário duma cantiga de vaqueiro, da filosofia das rezas populares, a filosofia indagativa do nosso cotidiano, a filosofia de bar, de calçada, das brincadeiras infantis... a philosophia anterior à Filosofia dos meus professores catedráticos!!!! (rsrsrsrsrsrsrsr). E isto é natural: balbuciamos, inocentemente, nossos primeiros “porquês”. Então é evidente que isto reflita nos meus poemas – escrevo naturalmente, as coisas veem, o filosofar é inato a isto tudo... uma premissa longe das redomas e ampolas empíricas do que nos é imposto, nos moldes da “educação pela pedra” que João Cabral de Melo Neto propõe...




MN: O amor é uma desgraça também para quem ama, ou só quando se é enjeitado?





MD: Isto faz parte da minha vertente paradoxa, saca?! (risos) Assim... o amor é tudo o que quero, é o que não consigo e por isto ojerizo... o odeio e o amo, amo-o e deixo-o... falo, evidente, do amor passional – não tenho problemas com os outros amores e desamores... a minha eterna busca pela parceira perfeita, a parte que falta para saciar meu romantismo piegas, a Ariadne, a Isolda, a Julieta, Ismália... musa carnal de meus poemas, o amor é a desgraça que quero, a experiência que falta, a inveja que sinto das mãos dadas na praça, o beijo da novela que me faz chorar... então creio que o amor (pelo menos este que decalco) seja nocivo e sujo para os enjeitados. O amor é um prêmio, apenas uma cobiça... canto-o como um trovador em tudo, meus contos são recheados de estórias rocambolescas e imbuídas de amor brega, daqueles bem “empregada que se mata por causa do namorado, bebendo ácido muriático e ao som de Odair José” (risos).




MN: Como é participar de um blog coletivo como o dos "Homens Hediondos"? Que crimes vocês impetram com a palavra? E o que [por enquanto] ainda está fora do alcance da tua palavra [longe da tua "alça de mira" de “jagunço palavrador”?].



MD: O “Homens Hediondos” foi a injeção de alucinógenos que precisava enquanto escritor. É evidente que o poeta não quer sua obra guardada ad infinitum em suas gavetas de criado-mudo... a notoriedade, o holofote, a vaidade é “a anima” do poeta!!!!! (risos) E saber que há, nalgum lugar, pessoas reunidas para divulgar seu antes “secreto escrever” é motivador, algo que nos ativa, dá combustível para ir e seguir... só tenho a agradecer ao Germano Xavier por ter me chamado pra participar desta patota motriz da literatura digital. Os “crimes” formam este “nomenclaturar hediondo” – o de transgredir, pinchar na moral canonizada de nossas “Pasárgadas manuelinas ou bilaquianas”, ou seja, do imutável caretismo dos padrões para a escrita! Fora o pitagórico na escrita!!!! (risos). Me fiz claro?!




MN: Eros é um menino tolo e travesso, eu já disse isso em algum lugar. Certamente, imaturo. Num poemeto próprio pra twitter [144 caracteres, exercício ao qual você se dedica, vez por outra] você se pergunta se "Dionísio seria um erê". Uma das melhores perguntas sobre Dionísio dentre as muitas afirmações que leio ou ouço sobre o dito cujo. Já obteve a resposta, ou ela se dissipou depois da embriaguez?




MD: Cara, tenho total certeza que Dionísio é um infante traquinas!!!! (risos) A embriaguez nos dá esta clara evidência – embebe(da)r nos transporta pra nossa tal “felicidade clandestina” de ser criança e descobrir Monteiro Lobato, de usar bodoques e barro, de brincar e ser quixotesco nos atos e atitudes... é a manifestação do lado dionisíaco do ser!!!! Bebo, ora me torno um erê, silogismo puro!!!! Este “quase-haikai” específico surgiu diante aquele questionar sobre suas tolas ações diante dum porre – o porquê de tornar-me tão bobo diante uma boa “cachaçada” entre amigos?! Não sei se a dúvida é universal, mas a universalizo para o cruzamento comum que a literatura nos permite... (risos) E quanto ao “poema-twitter” que mencionou (sei que não é o mote da pergunta, mas ainda sim senti necessidade de falar - se é que me é possível tal hiato aqui...) é a uma tentativa íntima para as adaptações que as gerações e as eras nos impõem, como a revolução do verso livre para os parnasianos, por exemplo... a necessidade da reciclagem, do mover as teias de aranhas em nossos nebulosos cantos, enfim... você deve ter percebido que adoro usar três pontos em meus argumentos, não é?! Seria uma forma de pôr respostas sem uma conclusão padrão?! Como já disse aqui: “sou um eterno paradoxo” (risos).




MN: Obrigado, Mateus.

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

LUDICA

Ludica, lúdica
de tão lúcida parece voar,
translúcida, telúrica se esconde
e confunde-se entre flores e orvalhos...

Ludica, mostra-se pudica;
querendo contrair a reta,
evita a meta do nosso encontro:
dois pontos desejosos de amar...

Ludica, cabelo rubro,
deusa em forma de riff,
o encanto que emudece meu cantar,
a visão que quero ter ao acordar,
o acordo em forma de segredo e
o medo na vontade de encarar...

Ludica, tão cara
- sem valor ou na grandeza
dum preço ínfimo -
seu íntimo é meu querer,
tê-la intocável, minha improvável namorada...
invisível, aparece nos meus pareceres
e nos seres míticos que dizem, ópticos,
que você, mesmo sem estar aqui,
ainda está lá...

META

"O verbo tem que pegar delírio." (Manoel de Barros)

a palavra, mutântica,
diante o ato,
faz-se domínio
e irrompe minha razão:
a metamorfose da metonímia.

meta da linguagem,
o neo dos logismos,
dádiva lógica do verbo, óptica das palavras:
a busca constante do seu perímetro...

meta, seguindo a seta
metendo o bendelho no discurso,
espelhos no curso do rio
onde atravesso uma vez
e outras vezes, ao avesso;
onde passo novamente,
passado dolente, futuro vidente,
meta, o instante...

ser que é, ser que muda
ser que fala, muda
ser que palavra, palavrear,
árvore de mármore, onipotente
de repente: tênue asa de mariposa...

é a meta do dizer,
essência que muda cor, dor, odor...
matéria primal, prismal
espectral, a palavra concreta e nua...

meta da palavra: sua nudez vestida.

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

MADREPÉROLA

Para Hellynha (in memorian)

A flor deixou de sorrir,
foi-se como um passarinho
sua luz que nos aquecia hoje tornou-se lua:
algo do qual iremos nos lembrar pra sempre...

embora tenha saído de maneira tola,
e de tão torpe deixou meu coração tristonho;
ainda é rainha, tiara coroada em madrepérola ...

é do que você transmitia que eu quero se lembrar...

ou do seu bom dia que deixava o dia bom,
do seu companheirismo, do seu carinho sem igual,
seu encanto, nosso canto mais feliz...

sua docilidade salgou-se de nossas lágrimas,
a saudade tornou-se rícino acre, torpor que doí
sua alegria ainda estará em minhas lembranças,
voou, pomba disforme
cicatrizou este estancar doentio...

Você não está aqui, mas te vejo
refletida em meus olhos que choram.

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

TOLDO DO SER

Nem todo clipe é clip;
Nem todo eclipse é elípse;
Nem todo nano é dano;
Nem todo natal é nasal;
Nem toda dor é doril;
Nem todo rodo é roda;
Nem todo Rui é rei;
Nem toda rua é lua;
Nem todo relativo é reles ativo;
Nem todo motivo é movido,
Nem todo algo é alga...

E nem todo todo,
mas o todo no todo
é toldo do ser,
é o ser no nem,
o ser neném,
aquele ser ninguém que há
em todo alguém...
onde alguém há...
ou a de ser tudo...

Nem todo pé é pá;
Nem todo blá é blá-blá-blá;
Nem todo cara é cara;
Nem todo caro é claro;
Nem todo sol é solo;
Nem toda sola é cola;
Nem todo caracol é carambola;
Nem todo Marx é sax sexy;
Nem todo nem é sem...

Nem toldo todo
nem todo todos
pássaros soltos, salto voar
do ser, dose do dó
ser do nó, dono seu
o que sou quando atravesso
o rio, o riso, o travesseiro?

Sou passageiro,
passo ligeiro, ínfimo;
dínamo do tempo, grãos da ampulheta...

Todo ser é o que é,
todo ser pode ser além do que é,
além do é, além da essência...

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

A MULTINACIONAL

“As multinacionais têm filiais
em quase todo o mundo,
mas mantêm suas sedes
no país de origem do capital...” -
assim me diz o informativo,
assim sei, captei,
gravei e grafitei de alguma forma
em meu coração...

mas a multinacional não têm coração;
ela nem se importa com minhas dores
de dente ou de amores,
nem se sonho com a lúdica ou com milhares
que não me escrevem, nem gravam
um rock'n'roll qualquer...
a multinacional só enfeia meu ar,
só arranha o céu acima de mim,
a multinacional apenas cai – e seus ais
são mais cais
que minhas tristezas sem filiais...

a multinacional não conhece certezas,
nem as purezas das minhas entranhas pagãs,
a multinacional não quer o amanhã ou
as estranhas que me afagam na febre terçã;
a multinacional que ser placa,
placar de vantagem sobre minhas vertigens,
a multinacional assassina as virgens dos homens-bombas,
a multinacional engarrafa o trânsito,
transita sobre as garrafas de cerveja,
a multinacional quer ser capa, veja...
a multinacional quer épocas e caras,
as caras coroas, as máscaras dos seres...

a multinacional doma o poder,
toma meu doer
doa o que é interesse, 0800, um milhão e tal...
a multinacional vem de longe,
tange a tangerina, azeda meu almoço,
faz-me engolir troços, caroços,
amarra meu cadarço, amarrota meu arroto,
amordaça minhas traças, sorve taças e laços...

a multinacional rouba o brilho da lua,
tapa o sol sem ser Ícaro,
torna-me cego pícaro,
trago fumaças no meu respirar...

a multinacional grita, eu ouço
a multinacional pinta, eu admiro
a multinacional exige, eu visto
a multinacional anuncia, eu - à vista - passo Visa
a multinacional visa, eu alcanço...

e assim, atemporal,
no casulo meu,
me traz saudades do que não vivi...

Como pode ?!

segunda-feira, 22 de agosto de 2011

PATERNO

Vi meu pai envelhecer,
ouvi seus ais emudecerem,
atraquei, solene, em seu cais seguro;
E seus braços eram meus abraços...
os laços, bagaços do que sou;
parte infinda de meu carinho:
a TV, a novela, o sorriso na propaganda de margarina...

e assim escrevi,
meros rascunhos que divagam:
todo poema é um ato de amor.

UM AMOR EM CALEFEITO

"Não quero a boa razão das coisas. Quero o feitiço das palavras." (Manoel de Barros)

Escrevo com emergência,
como se quisesse dizer tudo automaticamente,
como se temesse a parada do coração,
a quietude da voz, a queda da vida...

assim sou no amor: desejo-o certa veemência;
anseio sua vinda tal qual certos arrombamentos;
que ele decalque meu ser com certezas dúbias,
que não se preocupe com centenas ou dúzias,
com rosas ou beijos soturnos; que não se gabe
do que cabe ou resta, um amor em calefeito...

Escrevo com o temor dos passos de ponteiros,
escrevo querendo vingar-se do tempo, das eras,
dos serás e do que se liquefaz...

segunda-feira, 15 de agosto de 2011

A METRÓPOLE

A metrópole candeia,
acende-se no escuro,
e então, adormece...

e a garoa fina me traz saudades
de você,
a falta de seu inverno no calor glacial,
a sua ausência, meu grito de clemência
minha demência, dormência sem anestésico...

a metrópole na brasa de meu cigarro,
no pigarro que vem quando você não está,
nas táticas que aplico pra suprir esta dor,
pra não subir esta febre, pra me cobrir do clamor,
pra acalalentar a invisibilidade da sua presença.

PASSARIANDO

Minha vaidade não se veste,
minha vaidade não se reveste de ouro e panos:

minha vaidade é, passariando,
aquilo que escrevo adormecido.

DUAS NUMA SÓ

Para Ludmila e Anna Cleide

metade de uma,
metade da outra,
metades que busco,
metades que são
unção...

eu só...
sozinho sem clave,
sem sol, nem pôr,
nem chave...

e cadê você, mitose do meu monólogo,
pedido dos meus diálogos,
simbiose do amor querido ?!

conheço-as separadas,
são duas numa só...

duas
numa só
musa...

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

LÁPIS-LAZÚLI

Inspirado nas sensações da minha amiga e comadre Aline em relação ao mar soteropolitano...


No mar há mares,
no mar, meus amores...
No mar expurgo meus males -
sentado na areia, sentindo nas veias
a maré da maresia...

risco seu nome
na palma da minha mão,
escrevo à lápis,
consulto conchas em desatino,
lapido você no meu destino,
mando bilhetes à lápis, em garrafas inócuas,
clamando sua presença,
tinjo, de lápis-lazúli, o mar
tão gris de sua ausência,
desdenho das onisciências –
elas não me trazem você...

Olho o mar, assim parado...
As ondas vão, faço visão
de seus olhos cor do mar...

ouvindo Chopin, vendo um mar
que não há...
o mar tá tão dentro de mim,
o azular em mim,
nos azulejos, em mim...
nos beijos azuis, em mim...
você - que não sei quem é - em mim...

domingo, 7 de agosto de 2011

JOSÉS

José não pode sonhar,
José não pode mais prever
José não pode nem ver
premonições ou deuses...
José não pode agourar
José não pode acabar
José não pode apagar a luz...
E agora ?!

todos Josés de seus josés
de seus josés...
de seus josés...

ai, Josés...
ainda não chegou seu próximo
lava-pés,
então lavra seu revês
nas palavras de viês;
na sede ao pote,
no trote, nas narinas que sangram,
no coração que dilata,
na oração da massa,
um coro juvenil:
ei, você tem que esconder seu amor !!!
o José dentro dos josés,
tão sós nos nós
que nos unem,
no nu que nos anulam,
na aliança que nos anelam...

José dentro do josé,
José minúsculo, sem músculos
sem os apolíneos dum dionisíaco,
sem par ou ímpar particular...

josé dentro do José,
sem Jesus ou cruz,
sem credo ou crédito,
sem ditos ou desditos,
ser maldito, verme e vil...
límpido e líquido, sem líbido;
um desejo, cabido...

sim, é assim...
Josés.

segunda-feira, 1 de agosto de 2011

SEU ENCANTO

seu encanto
ficou num canto,
acuado, semi-acordado
sem acordo, não morreu...

seu encanto
não desencantou: paralisou,
adormeceu, adoeceu,
não se doou;
renegou-se, não cresceu...

seu encanto
agora é vil,
ficou muito amigo,
não quer nada comigo,
apenas dá aceno, um adeus distante...

seu encanto
migrou feito retirante,
tornou-se tonto, retardou
não sabe contar, calou-se...

mas seu encanto jamais
será desamor:
ele apenas se encontra encolhido,
mas lá ainda está;
ele foi amaldiçoado e dormirá
por cem anos – pra depois então
ser acordado por um príncipe de Bagdá;

seu encanto ainda continuará aqui,
imóvel e eterno,
interno e contido,
contado e imaculado,
o maior de todos:
seu encanto.

quinta-feira, 28 de julho de 2011

ANIMAL POLÍTICO

“Brilhar para sempre,
brilhar como um farol,
brilhar com brilho eterno,
gente é para brilhar,
que tudo mais vá para o inferno,
este é o meu slogan
e o do sol.”
(Maiakóvski)

Ele não quer seus centavos,
nem os avos de sua salarial fração;
ele só quer um olhar de atenção,
uma palavra amiga, alguns conselhos,
alguém que o auxilie a sair
desta inócua posição de joelhos
e o faça se erguer para o mundo,
ele quer olhar no espelho
e não ver a face dum animal qualquer...

ele só quer ser mais um animal político...

E façamos mais que dizeres bíblicos,
vamos cessar os césares,
não ter mais líderes ou poderes:
poder, apenas um querer bem...

ele quer encher de acalantos
sua fome de vazios;
não precisa apenas do pão – tem
que viver também de circo;
de círculos, de grupos, de gente...

E que este brilho da gente
seja visto nos faróis, nos sóis
e nos slogans,
nos anúncios de vans,
nas vãs manhãs, nas polêmicas...
nas teses acadêmicas e nas simples trovas,
nas canções de cegos, no olhar bonito...
em tudo o que digo,
no mendigo que soube levantar:
que este brilho inato
esteja em qualquer tato,
assim, intacto
nunca estático,
brilho deste estribilho,
na valsa que conduz nosso ser...

que este SOS não nos deixe sós,
que nossas mãos sejam nós
e atem
os que têm
e os desvalidos...

Que seja válido este clamor,
que esmolas não sejam apenas vinténs,
que o amor vença todas as bombas biônicas,
e que os homens vejam uns aos outros
como olham, narcisamente,
para suas faces cínicas - tão clínicas de amar...

quarta-feira, 27 de julho de 2011

JARDINAR (DESISTIR DE VOCÊ)

Joguei, ao ar, sementes de amores-perfeitos;
algumas caíram no solo, mas amor dali não brotou...
fiz então bem-me-quer com as flores que nasceram,
mas nem um bem querer dali apareceu...

Seria erro do meu jardinar
ou da planta que, tão injusta,
não soube surgiu em sentimento ?!

assim sou: um jardineiro do fracasso...

Escasso de paixões,
campeão de coisas mal fadadas,
de fadas que não me querem amante,
avaro aos lascivos instantes, querendo-os em egoísmo,
não entendendo o porquê de tão excessivas amizades...

e quem dêra se meu semancol
concatenasse no dial do seu não...
quem me dera poder olhá-la sem
querer imacular seus beijos,
ah se pudesse apenas lhe ver
sem desejar a carne, sem cobiçar seus braços,
seus ombros, seus assombros...

vou desistir de você...
vou me entregar ao seu anti-corpo,
vê-la assim num pedestal,
sem pecar num toque,
vendo e torcendo pela sua felicidade
em braços estrangeiros,
querendo-a sem tê-la,
tendo que aceitar sua amizade que me faz
forte e fraco,
em mil paradoxos, tendo que ser único,
gritando ufânico que entendo
as razões que a própria mesma
não entende...

desistir de você,
decalcar você, assim: sempre amiga...

segunda-feira, 25 de julho de 2011

PRO SUMIÇO DE QUEM QUERO BEM...

Cadê sua resposta, que não vem ?!
Cadê sua voz, cada vez mais muda ?!
Cadê seus bilhetes, tão escassos ao léu ?!
Cadê o sol, os anéis no céu,
cadê o girassol, o girar do carrossel ?!

Cadê você, que me prometeu o mais belo parabéns ?!
Cadê suas palavras, fazendo-me contente refém ?!
cadê a bala, cadê o trem,
cadê o cada, cadê a fala,
cadê alguém ?!

cadê sua boca, mesmo insossa ?!
cadê seus olhos, tão cegos do meu eu ?!
cadê suas divagações, tão sábias e sonsas ?!
cadê o que me nutre: aquele sorriso seu ?!

cadê você, cá está ?!
cadê, estaca que estanca meu ser ?!
cadê você, que não está no meu sofá ?!
você, que sufoca em dolo a razão que há... cadê ?!

Cadê você, voou ?!
Cadê você, nas luas ou no luar ?!
Cadê o amor-amigo, onde o abrigo faz-se dor...
Você, agridoce amizade no qual sonho avançar...

cadê você ?!

quinta-feira, 21 de julho de 2011

O PASSADO PRESENTE

“Uma simples frase nos falsifica ao infinito. Um poema é uma pose...” (Nelson Rodrigues)

Gosto de olhar meus sapatos
enquanto caminho...
é como se o tempo ziguezagueasse
numa linha reta,
ou como se os paralelepípedos
fossem a concretização
do que passei...
passei, passei...
passou.

como se meus passos
nunca parassem num plano qualquer;
como se eu mantesse, ainda intacto num âmbar,
o passado presente,
feito um abraço em forma de caminho.

quinta-feira, 14 de julho de 2011

ESTA SUA ONIPRESENÇA

O telefone não toca à dias:
é o desamor que adia
estes desarranjos que nos separam;
há dias que são assim -
você tão longe de mim
que pareço morar na Sibéria,
e você em qualquer lugar...

esta sua onipresença chega a ser devaneio,
feito areia e deserto, um mar em veraneio,
e cadê seu corpo ?!
você não está aqui ou ali,
nem cá, nem em minha casa...
está sim no meu cabelo,
no meu ar, no meu cerebelo,
no número, no úmero, no útero
no esmero dum bordar, no abordar do sol,
na passagem dos dias, no futebol,
no arrebol do ocaso, no acaso sombrio,
no arrepio de frio,
num toque de oboé...

Você está em tudo,
até no telefone mudo
ou na mudança da estação...
Você está no invisível,
na telepatia,
na tela do computador - ao me dizer bom dia;
no dia bom, no riso farto,
na treva, na trova, na prova final
você está...

só não está ao meu lado...

assim
sinto-me alado sem plumas
dia nublado, pintado em brumas
incolor, chato, num dissabor...
assim
fico num coletivo só,
sem objetivo, tino ou destino vil
pratico dolos, fico vândalo
minto mito, pinto o que não há,
entro numa esquizofrenia
que oculta minha razão,
faço tolices, infantilizo meninices
vou pra qualquer esquisitice
ao saber que você não está ao meu lado,

ou que não receberei nada em garrafas;
mendigarei nesta estafa por um recado seu,
por um ditado de seus ditames que tanto torna
meu pranto feliz, que retorna
aquela esperança do quanto posso,
do quanto vou conseguir...

mas você não está ao meu lado...

então sou apenas mais um,
sou mais um apenas,
não sou mais,
sou apenas
um.

terça-feira, 12 de julho de 2011

SINESTESIA

ouvir
algo que lhe faça chorar,
ver
algo que lhe faça sorrir,
sentir
algo que lhe faça agir,
aspirar
algo que lhe faça cair...

sinestesia, anestesia,
o corpo dolente que sente,
lentes que analisam
lentamente,
a mente vã, o corpo são;
sãos e salvos, são fluídos
ruídos moídos, miúdos cânticos,
como se tais desejos tântricos
viessem escutar
acostumar...
costurar o mar na palma da mão,
no não que brota da afirmação,
traço da ação,
da dádiva de ter o seu gozar...

e comer seu som
com o dom mágico do onírico,
lírico bandido,
distribuir seu amor aos mendigos,
dar a bondade dos seus passos
àqueles que aquarelam,
quaram o instante dum amarelo sépia;
e daquilo que virá,
tranquilo voo num declinar da corda bamba,
bomba que explode, rosa transmutada...

ouvir o azular do céu,
seu cintilar num pacto de dedos,
talvez não seja cedo para decidir
num "papai-do-céu mandou",
pra testar sua testa na minha,
pra me fazer seu...
pra não me fazer só...
pra atar nós...
nossos corações, nossos pés...
nossas fé numa mesma comunhão,
fuga de caminhão, acasalar feito ursos,
nossa felicidade jorrando num curso de rio,
rir e dormir contigo,
numa confusão de sentidos
na felicidade de te pedir à uma estrela caída.

quinta-feira, 7 de julho de 2011

PRA EU ME ENTENDER

"Amar não é aceitar tudo. Aliás: onde tudo é aceito, desconfio que há falta de amor."
(Maiakovski)


Queria dividir contigo
tudo o que falo sozinho,
queria que o que escrevo mudo
não lhe fosse tão sânscrito...

Mas não quero gastar saliva
apenas com blá-blá-blás:
não lhe beijar é blasfêmico,
gostar de você é endêmico,
faça de mim seu par
pra eu me entender...

e façam riffs pro meu versar,
tragam rifles para roubar
este beijo que você quer poupar desta alma infante,
tosca e vil...
Trazê-la pra mim duma forma brusca,
atinar esta minha busca ofegante,
torna-me gigante pra merecer você,

decifrar assim
este elo que insiste em nos desunir,
pra finalmente
eu me entender..

A MINHA RESPOSTA

De você vai depender
a minha resposta;
só de você, querida...

só você,
torpe e meandro de minha vida...

A minha resposta então virá,
virará pó ou par,
parênteses do seu casulo,
anelar minha impaciência em tê-la,
anular meus dedos que não te guiarão,
enxergá-la em perfeição,
numa tela só nossa...

torta assim você é sublime,
lágrimas pretas de rimel, heroína francesa de filme,
firme solos que iluminam meu caminho de nuvens.
Esta neblina que você entende fuligens
pode ser apenas uma fase, meu bem...
tal qual a lua mostra-se por face...
faça-me parte destas suas agonias !

ver-me verme – assim verei-me enquanto
seus lábios não forem íntimos
de meus dentes ínfimos,
tão lábaros quando dizem seu nome,
quando me faz príncipe em qualificar-me,
iluminando este espaço inócuo, sem ação,
parado quarto vangoghiano...
ou quando cita um coração selvagem –
epítetos do nosso amar invisível...

A minha resposta à vida
que soca o ventre seco,
um Deus que não ouve,
ou ouve...
será que houve
uma dádiva e eu, olhos de estátuas,
cego não me orientei por nenhuma estrela ?!

Assim, enfim
juro nunca mais desdizer de mim,
prometo mais nunca me ofender com palavras ácidas,
ou com cálidas ofensas
ou digestões vãs...

Conseguirei até olhar o que mais de belo há em mim,
poderei sim;
lá devia estar e eu não via,
mas juro por qualquer coisa que alumia
que meu olhar se abriu enquanto você sorria,
e eu descobri assim,
que posso ser paraíso-labirinto,
mito dum rito que
consigo
só...

TEMPORALIDADES (EM VÃO)

Certas situações desbotam o tom.
Nada é mais como antes, não...
Tudo é tão espectral, tão prosaico,
mosaicos dum passado que futuralizará...

segunda-feira, 4 de julho de 2011

INTRANSITIVO II

Poesia, minha lobotomia
Poesia, minha pantomima
Poesia, meu sacrilégio
Poesia, meu sacríficio
Poesia, minha guilhotina
Poesia, meu ressurgir
Poesia, minha fogueira inquisidora...

Poesia, meu purgante
Poesia, meu odor
Poesia, minha dor
Poesia, meu suor
Poesia, meu traço
Poesia, meu braço
Poesia, minha essência

Poesia que me mantém tão unido a você,
Poesia que me distancia de você,

Poesia que me deixa bobo, que me torna rei
Poesia, meu xeique
Poesia, meu xeque
Poesia, meu sei não sei
Poesia, meu espaço
Poesia, meu esboço
Poesia, meu poço
Poesia, meu passo
Poesia, meu intransitivo
Poesia, meu não transar...

Poesia, mar que nos distancia
Poesia, istmo que nos une...
Poesia, paradoxo que pune
Poesia, conclusão cética do que não sou.

UM POEMA-ROCK PARA MINHA REVOLTA

Ó Deus,
também estou cansado de tantas guerras,
de tantas violências ou falta de leitos nos hospitais...
Juro que me incomodo com crianças famintas,
com pessoas aflitas ou com a devastação da Amazônia...
Me abalo facilmente com cães abandonados,
com tsunamis horrendas e com políticos corruptos...

Mas, ó meu Deus...
compadeça dessa minha dor,
ela já é bem antiga,
peço todos os dias, abuso de seus ouvidos moucos...
Meu Deus,
sei que todas vem para o bem,
mas confesso que não é reclamar do nada;
Gosto de todas, mas queria apenas uma namorada
Confesso: cansei de só ter amigas !!!

Um poema-rock para minha revolta,
Estou puto, cansado, cansado !!!
Todos se dão bem, parecem pro amor ter bom trato,
um tato adestrado, um faro pra coisa...
Já eu, pobre coitado,
peço em vão e tenho que sofrer sofro calado,
- Chega, chega, agora quero reclamar !!!

Faço do poema minha voz muda,
são letras onde digo o que meu ego não ecoa,
coagulo esta vontade e estanco a sina;
tenho que lutar pelo ser que quero,
ir pra dolosa briga...
Porém, sem as qualidades e os esmeros
vivo paladino e oculto, feito eclipse sem admiração
um riff contido, balada sem canção
retido numa senha mágica: amiga...

então questiono se o destino de meus genes
é tornarem-se estéreis
ou assexuados,
nesta minha sexualidade velada, invisível,
que não se valoriza, que não faz cartaz...

este meu veredar coxo
que não me faz estar em suas coxas,
no ruborizar que provocar meu palavrear...
cancioneiro do amar contente,
indecentemente me abdica desta cantiga
Senhor – clamo – pelo amor cadente
Não me traga mais uma amiga...

P.S: Em nenhum momento me revolto aqui contra minhas amigas, muito longe disto... Na verdade só peço pra que o dádivo me ofereça uma namorada no futuro, sei lá...

INTRANSITIVO I

Uma menina lê enquanto caminha.

Encantou-me.

Mas ela não retribuiu o olhar...

Seria a concentração na leitura
ou a mera constatação do óbvio - a de que
nunca sou notado - enfim ?!

LANGERIE

Uma conversa de mulheres por telefone:
- Dalva, você já sabe o que vai ganhar no Dia dos Namorados ?!
- Hum... Nem faço ideia. Pra falar a verdade, eu nem sei se o Rafael vai me dar algo este ano...
- Ah, eu desconfio que ele vai dar sim, amiga...
- Ué, e por que você desconfia disto ?!
- É que eu o vi saindo ontem duma sex shop...
- Sex shop ?! O Rafael nunca foi dado disto...
- Bem, sempre tem uma primeira vez né... Talvez ela tenha lhe comprado uma langerie...
- Langerie ?! Não, não... O Rafael nunca foi dado a isto...
- Pára de falar isto, Dalva !!! Como já lhe disse, sempre se tem uma primeira vez...
- Será, amiga ?! Não... O Rafael é tão polido em sua timidez, tão sisudo em suas morais e tal...
- Moça, vai por mim... Vai que ele queira dar uma apimentada na relação... E outra: o que ele faria numa sex shop ?! Foi comprar jornal ?!
Dalva emudece por instante. A amiga insiste, temerosa:
- Dalva, você taí ainda ?!
- Hãn ?! Ah, tou sim...
- E então ?!
- Perdão, Bárbara... É que é tudo tão confuso pra mim...
- Amiga, deixa de neurose. A questão é simples: o Rafael vai te dar algo de sex shop, imagino que uma langerie...
- Mas é que é tão raro Rafael se lembrar de datas, de presentes... E quando se lembra, é sempre a mesma coisa que ele me dá: uma caixa de bombons baratos e um cartão.
- Ah, Dalva... Sei lá, este ano ele quis dar uma inovada. São quantos anos mesmo de casados ?! Doze ?!
- Quatorze. Faremos quinze anos em setembro. A mesma idade de Lígia, a minha mais velha...
- Tá bom então... Ah, o presente é pra você mesma. Ou você desconfia que ele tem uma amante ?!
Ficou com aquela pergunta na mente, ecoante como pedido de socorro numa caverna. O Rafael, daquele jeitão que só ele, com uma amante ?! Não, descogitou aquilo no imediato... Despediu-se da amiga e desligou o telefone.

Dia dos Namorados, noite. Dalva está deitada em sua cama, fingindo ler uma revista. Seu pensamento estava no presente que, até agora, não havia ganho... Logo adentra Rafael, pacote em mãos. Beija levemente a boca da esposa e diz:
- Feliz Dia dos Namorados, amor... – entrega-lhe o presente.
Ela, em êxtase:
- Ah, querido, não precisava...
E desenrolava o pacote com fervor. Mal poderia esperar pra ganhar...
- Bombons ?! Cartão ?!
- Ué, não gostou ?!
- Não, não é isto... Mas é que...
- Qué que foi, meu bem ?! – diz, beijando na nuca.
- Ah, Rafa... Sei lá... É que eu pensei que este ano você ia me dar...
- Dar o quê ?!
- Assim, sabe... Algo bem diferente, mais, mais...
- Mais ?!
- Ah, você nem faz ideia ?!
- Ideia ?! Ideia do quê ?! Não tou lhe entendendo, Dalva...
Ela se levanta da cama, já fula da vida:
- Rafael, a Bárbara me disse que te viu saindo duma sex shop dia destes... O que o senhor foi fazer por lá ?!
Rafael fica multicolor:
- Bárbara... sex o quê ?! Não tou entendendo...
- Eu que quero uma explicação aqui... A Bárbara não é dada a mentir ou ter enganos. Se ela te viu saindo duma sex shop, é porque você saiu duma sex shop. Eu só quero saber o que o senhor tava fazendo por lá... Aposto que não estava rezando, né ?!
Rafael balbucia algo, anda em círculos, como se procurando uma resposta...
- Foi a Bárbara quem viu ?! Você jura: foi ela mesma ?! Não foi ninguém que viu e contou a ela, né ?!
- Foi sim, homem... Por favor, me explique logo este quiprocó. Rafael, se você tem uma amante, se você tem uma... – não conseguia completar seu gaguejo.
- Bem, vou ter que contar mesmo né...
- Você tem mesmo uma amante, Rafael ?!
- Eu ?! Eu não, coração... Vem cá, vem... – e aproxima-se da esposa, repousando-a de leve na cama. Explana:
- Você quer realmente saber toda a verdade ?!
- Claro... – diz, choramingando.
- Bem, é difícil de dizer...
- Não, não é, Rafael... Basta você me dizer que tem uma amante e aí eu saio de sua vida, levo as crianças, vou morar com a mamãe...
- Não, eu não tenho amante, já lhe disse...
- E então ?!
- Bem, eu realmente fui numa sex shop...
- Tá vendo, eu não disse ?!
- Calma, deixa eu me explicar... Bem, eu fui na sex shop, mas não comprei presente pra amante alguma...
- Ah, Rafael, conta outra !!!
- É sério, amor... Fui na sex shop...
- E comprou uma langerie, acertei ?!
- É, foi...
- E ainda confessa, seu cafajeste... Aposto que esta sua amante deve ter uns vinte anos ou menos. Ai, maldição...
- Me escuta, Dalva... Não tem amante nenhuma, friso...
- A casa caiu, Rafael... Confessa logo, diga logo toda a verdade. Prometo suportar...
- Dalva, acredite em mim: não tenho amante nenhuma. Meu coração e meus olhos só tem atenção pruma mulher só, querida...
- Você ainda não me disse o que foi fazer numa sex shop... Se você comprou uma langerie, certamente era pra mim... Ou não, seu sacana, filho duma...
- Tá, comprei a langerie... Mas ela não era pra você...
- Pronto, assinou a confissão...
- Não era pra você e nem pra nenhuma amante minha...
- Como ?! Vai me dizer então então que você a comprou pra si mesmo ?!
- Oras, claro que não...
- E então...
Bufa no ar, esmurra a porta do armário, faz cena e diz:
- Eu a comprei pro Ary...
- Ary ?! Marido da Bárbara ?!
- Sim, ele mesmo...
- Mas pra quê ele iria...
- Ele é que tem uma amante na verdade... Uma ninfetinha, um pouco mais velha que a Lígia...
- Credo, que safado...
- Pois é... Ele queria comprar um agrado pra ela e não tinha coragem de ir numa ex-shop. Então eu fui, só como favor de amigo...
- Coitada da Bárbara, meu Deus...
- Pois é... Não queria contar, sabe... coisas de amigo, enfim...

Rafael e Ary num bar, no dia vindouro:
- Você o quê ?!
- Chapa, tive que improvisar... A Dalva nem pode imaginar que o presente na verdade era pra minha outra neguinha...
- E pra isto você precisou ferrar o meu lado ?!
- Ué, e o quê é que têm ?! Você mesmo não disse que tá querendo se separar da Bárbara. Pronto: agora você tem um bode-expiatório...
- Mas, Rafael... É que agora a situação é outra, eu já tou me entendendo com a Bá... E tem um outro inconveniente...
- Qual ?!
- É que eu dei um presente de Dia dos Namorados pra ela...
- Sim, e ?!
- Você não tá curioso pra saber o quê foi, não ?!
- Não me diga que foi uma...
- Sim, uma langerie... Sei lá, aproveitei sua ideia e quis apimentar meu lance...
- Ah, bandido !!!
E bebeu sua bebida, torcendo que a coisa não fedesse mais pro seu lado...

sábado, 2 de julho de 2011

EM TORNO DE SI MESMO

Os livros estão parados na estante.
Mas eles não estão totalmente estáticos.
As ideias giram em torno deles,
fazendo-os serelepes...

O eu-poeta também é assim:
parado, calado,
aparentemente passivo...

A diferença é que o poeta gira em torno de si mesmo;
e as ideias, como numa dança, casulam-se perenes,
fazendo-se então, serelepes.

segunda-feira, 27 de junho de 2011

O ONTEM

"Haja hoje para tanto ontem" (Paulo Leminski)

"Eu amo tudo o que foi
Tudo o que já não é
A dor que já não me dói
A antiga e errônea fé
O ontem que a dor deixou
O que deixou alegria
Só porque foi, e voou
E hoje é já outro dia."
(Fernando Pessoa)

É estranho
como o hoje
virará, um dia, ontem...

não entendo
como tudo era tão tangível;
agora, tudo pó
na hora: intocável
em minutos, dissipado...
um dissabor,
lembrar ?! Apenas um disse que retornou eco...

antes era tudo praça,
a festa, garrafas, beijos...
Em instantes, distantes vestígios,
apenas destroços,
o vazio das garrafas,
o beijo guardado...

como devorar de traças,
devastar de tsunamis,
a infelicidade do fracasso,
a felicidade do escasso,
óculos, ósculos, escarros
citações de Lispector entre cigarros,
rum com vodca, uísque com Coca,
cacos e cacoetes, amor, suores...
o preservativo que preserva a seiva do ser,
nove meses, nove luas, nove em vinte e nove amizades,

tudo, agora nada.
do nada: o nada.

A madrugada que virou dia,
A noite finda, a consciência vinda,
o acabou...

mutação do pré-pós,
a consagarção do depois,
o ontem...

MAIS UMA PARA LUDMILLA (OU “QUE DIA, FINALMENTE, ELA VAI VER QUE SOMOS FEITOS UM PARA O OUTRO?”)

"E no meio de tanta gente eu encontrei você
Entre tanta gente chata sem nenhuma graça, você veio
E eu que pensava que não ia me apaixonar
Nunca mais na vida..."

(Não vá embora - Marisa Monte)

id
e super id
se fundem,
se fodem,
se osmosem
no conhecer-se a si mesmo...

e daí é preciso se auto-amar,
mas como conseguir isto, sendo eu tão fraco ?!
Tenho que me escorar nos ombros dum gigante
e assim poder alçar belos voos...
E sinto que você é tudo isto: esta força
que me ergue e me faz caminhar, seguir, continuar,
escrever, dissipar e sublimar...

(serei mesmo real dentro do meu mundo surreal ?!)

e cadê você ?!
cadê você, naquele metro quadrado onde estou ?!
cadê você, no meio da multidão, no meio daquela gente ?!
cadê você, que é tão gente...
cadê você, que é agente motor
deste meu poema
feito de sangue e insônia...

como te quero, você nem saiba...
seu sorriso me encanta de forma descomunal...
temo que estas palavras possam ferir o que há
de mais belo entre a gente,
mas estancar este grito
seria o mesmo que podar os cabelos da clássica personagem infantil.

Então o que farei, pergunta uma boa voz amiga:
- Esperas então o cabelo da Rapunzel crescer
Ou procura uma escada, antecipando assim o encontro com sua amada ?!

E saio à sua procura, feito algo no cio
uma bomba em pleno fim de pavio,
algo que preciso dizer, evitar vazios...

Não quero desmurar nosso castelo tão rijo,
(faça de mim ainda seu refúgio, um esconderijo...)
mas tenho que lhe perguntar se há um amor dolente,
se posso ver futuro entre a gente,
se posso sonhar em tê-la, minha amizade diferente ?!

domingo, 26 de junho de 2011

PRA TE LEVAR

Pra Ludmilla, minha fã mais que especial...

Só queria ter um Fusca
pra te levar
aos céus ou ao Hades,
lá onde o sol arde,
cá onde solo aquele blues intimista,
ali, onde tudo parece bom...

Só queria ter um meio qualquer
de te fazer enxergar
que aquele momento não criou dissabor,
que o instante não desabou,
os cigarros ainda estão na estante,
e o antes não é mais prima da saudade...

Só queria a brevidade do para sempre,
só queria ter aquele velho Fusca
pra te levar ao altar,
ao andar dos prédios imovéis,
pra te levar ao alto daquela montanha,
ao topo do seu cabelo que se assanha na trepa dos ventos,
à vida – tão ínfima, meu Deus... – que insiste em nos afastar,

pra te levar ao começo de tudo,
ao beijo tácito do nada,
te ouvir citar Lispector,
saber que você leu minha mão,
e que nela você desenhava nossa união,
cobrindo este sonho de luas e estrela,
píntando nela uma sela para cavalgarmos
no nosso encontro embriagador...

pra te levar e sentir sinceridade nos seus olhos,
se encantar como se eternamente nos vissemos pela primeira vez,
descobrir o quão idiota fui antes de você,
ver, cego, que não te percebia...
sentir o quanto perdia por causa disto...

pra te levar, me sentir gigante por te conhecer
pra te levar comigo, indivisível e constatando o óbvio:
não precisar daquele Fusca, basta ter seus pés
pra te levar...

quinta-feira, 23 de junho de 2011

MIUDEZA

Guardo uma latinha cheio de coisas inutéis.
coisas futéis, manoelinas...

gosto da inutilidade do fútil,
do microcosmo tão macro daquilo que se esconde,
da miudeza da mudez, do velar calado,
do que não se destaca, do que passa desapercebido,
o que passa cabido, o que passa meramente...

Reconheço-me nestas coisas.
Também tento ser oculto, obtuso,
invisível em certos momentos, estar sem estar...

Não conheço tudo: sou íntimo do nada.

quarta-feira, 15 de junho de 2011

NÃO ACABOU

Não acabou.
Se antes a via com olhos de cristal,
é porque não havia distâncias
entre nossos caminhos e o meu eu....

Mas não acabou, acredite...
você ainda será bela,
(dadivosamente bela)
a mais harmônica aquarela,
aquela a quem me refugio,
a serenidade que me traz estio,
vitalidade que me nutre
diante meus vazios...

agora sua beleza não é mais utópica:
meu sonho em tê-la se desfez, feito areia;
você nunca esteve tão distante,
contudo ainda está em mim de alguma maneira...

seu corpo nunca será meu:
seremos como promessas de Julieta a Romeu – santos
que não devem ser tocados,
peregrinos que profanam num beijo cálido
a alma chagada dos que amam e querem...

nossa estrela é ainda ligação,
nela me atento, peço em oração
que o verbo de nossas carnes conjugue um eterno amar,
uma inefável concisão...
este paradoxo em ser fraco,
deixar-me opaco,
de não ir ao seu encontro
de não ser perfeito pra você...

é um amar mais consciente agora, friso;
você ainda e será o que preciso,
mas agora compreendi que o final desta ciranda
poderá ser solidão de rede na varanda,

mas ainda perpertuará esta amizade concisa
nela me atenho, não quero sua censura...

Você é quem me faz homem com lisura,
meu palíndromo mais oculto,
inaudível que mais ressoa em mim...

segunda-feira, 13 de junho de 2011

RETALHOS DADAÍSTAS (VOO SER)

“É preciso transver o mundo.” (Manoel de Barros)

Novas rugas do meu pai,
velhas rusgas de mim...

abro meus olhos fechados.
Fecho então meu olhar aberto:
é lá onde lhe encontro...

Meus dentes sangram minha vaidade feia;
duma idade que vai,
entre tantos ais,
deixando cais,
ancorado num coroado ser...

Não acabar,
sim caber
apenas carpir...

ver além
a ler mãos,
a ler manhas...

escrevo o que vejo,
linhas paralelas que são meus olhos,

assim,
dizendo perco a força do que sou.
Então cravo: escrevo...

e faço como pássaro fazendo bioma
no dorso do rinoceronte...

bocas que não beijei,
bocas que me disseram não:
eu
não
ou eu vão ?!

retalhos dadaístas,
nexo sem anexar,
axiomas que beira-mar
marcas ou cacos...

dizer (des)dizer
desdenhar da fala,
desenhar o fato
transver o mundo...

seguir sem significados,
poema sem moral fabular
apenas inventar
ventar a pena que não voa,
translúcida, apenas...
planar, homem alado...


dizer, pra quê ?!
o poema é o que sou...
sou o que o poema é:
quebra-cabeça, cuca, cuco...
tempo templo,
tic-tac...

tudo numa brusca busca,
juntando quandos,
andando andares
passar passeando
passar e andar,
pedaços de cadarços,
nós de laços,
unção de nós...
de você...
de mim,
do fundo do rim,
dum eterno voo ser...

segunda-feira, 6 de junho de 2011

EQUÍVOCOS (A CARA DO AFONSINHO)

Os seres humanos estão no mundo pra comerem uns aos outros. Assim pelo menos pensava Tobias, mequetrefe metido a galã, pegador digno, nato e de carteirinha. Contudo ele será o antagonista desta história. Foquemos no seu antípoda, Fidípedes, que desembaraçadamente encontra-se naquele mesmo bar, reduto dos happy hours de alguns escritórios e empresas adjacentes...
- E aí, Fidípedes ?!
Este dá apenas um leve aceno e um “oi” inaudível.
- Tudo na paz, meu querido ?! Posso me sentar aqui ?! – apontando pruma cadeira vazia.
Fidípedes concorda.
- E aí, como vai esta caçada ?!
Ele estranha o termo “caçada”.
- Caçada ?!
- Sim, seu mané... Caçada de mulher, de sexo selvagem, me entende...
A pergunta soa como uma certeza de entendimento. Porém Fidípedes não entendia nada. A única coisa que ele queria era tomar seu chope em paz, pegar um táxi, chegar em casa, preparar algo no microondas, ver alguma série na TV (talvez até a National Geographic, cogitou...) e dormir cedo. Pensou em listar tudo isto para ele, contudo Tobias intervêm:
- Hoje é sexta, cara... Sexta !!! Sacou ?! Sexta-feira é dia de dar umazinha, é de lei, obrigação universal !!!
Sexo certamente era a última coisa na qual pensara. Não que fosse adepto à quaisquer celibatos, muito contrário disto: há tempos que se definira “na seca” e sentia uma certa necessidade de “dar umazinha”, conforme o dito por aquele que naquele momento estava numa intercomunicação com uma garota duma outra mesa...
- Bem, pelo jeito minha noite vai ser das melhores... – diz pondo a boca na tulipa de chope do outro.
Fidípedes dar uma olhada discreta pro lado e percebe uma loira, linda, tipo estagiária, 20 aninhos estourando... Tobias se levanta em direção a esta. Mas, antes, ainda diz pro inócuo:
- Cara, percebi agora: você é a cara do Afonsinho... Você deveria usar isto a seu favor. O carinha traçava geral...
Antes mesmo que Fidípedes pudesse questionar quem seria o tal mencionado, Tobias avança em direção à garota. Não tolerava aquele sujeito. Quer dizer, não que fosse uma má pessoa, muito longe disto... Era um garotão, destes que chegam na contabilidade ainda cheirando à mamadeira. Certamente tinha a inexperiência de não ter lido um Proust na vida... Mas, mesmo entendo se tratar dum infante, para Fidípedes esta criatura chegava ao terror dum nefasto ser do Hades !!!
Mal ele poderia imaginar o quão importante seria a informação lhe dada. Quando começava a abstrair o porquê duma possível coincidência facial com uma pessoa do qual não sabia da insígnia, uma moça – destas que nunca falaria com ele – chega e lhe aborda:
- Afonsinho, quanto tempo...
Embasbacado com aquilo, respondeu no automático:
- Não, a senhorita se confundiu... Não sou o Afonsinho...
Logo pensou o porquê de ter aplicado o artigo “o”, assim no definido, como se conhecesse este homem do qual carregaria a sina da semelhança... Contudo, mal assentado estava estes seus paradoxos mosaicos, chega uma outra, morena cor de jambo, mulata escultural... Enroscando-se em seu pescoço, logo sai exclamando:
- Afonsinho, seu puto... Cê tá sumido hein... Esqueceu-se da sua Íris aqui, foi ?!
Dádivo daquilo tudo, Fidípedes faz da honestidade um rícino que desce-lhe a goela:
- Queria até sê-lo, mas não sou este Afonsinho. Perdoe-me...
Logo a garota desgruda-se do cachaço alheio:
- Bem que eu percebi... Faltou-lhe a pegada do Afonsinho, sei lá... Eu é quem lhe peço desculpas. Foi mal...
E sai. Não entendia aquela lógica: quem seria Afonsinho ?! Seria um monstro que sugou-lhe a mais visível de suas essências, parte siamesa da qual fora abastado , fruto bom de suas ramificações genealógicas ?! Queria um cigarro, mas prometeu parar de fumar logo que soubera de algumas disritmias um tanto quanto inconstantes, pensou em pedir mais um chope, mas imaginou que a soberba poderia ser pecaminosa e os resultados, desastroso... Decide então ficar congelado no canto, esperando que aquela ironia do destino tivesse um prolongado fim. Bebe duma só vez o resto que havia em seu copo, olha as horas e manda às favas todos os seus tradicionais compromissos. Só não sabia se havia feito aquilo por ousadia ou medo da situação. Suas pernas tremiam. É o momento em que outra figura se aproxima.
- Afonsinho ?!
- Bem, se eu for ele, o que ganho ?!
A moça – sem pedir – senta-se ao lado e retruca:
- Como assim ?! Você é o Afonsinho ou não ?!
Ele bufa, quis esmurrar a mesa de ferro:
- É, você tem razão... Não, não sou o Afonsinho. Está feliz ?!
Sentindo que fora um tanto grosso, quase pede um “desculpa”. Emudeceu, esperando alguma reação newtoniana...
- Bem, assim... Feliz tou não, já que esperava o Afonsinho, mas... Cara, você é muito igual ao Afonsinho viu...
Então Fidípedes resolveu prolongar o “engano”:
- Posso te pagar uma bebida ?!
A moça dá um sorriso de canto, talvez pondera se seria uma boa, olha pro teto, pra janela, pra si mesma...
- Hum, bebida... Acho que não. Mas podíamos rachar uma bagana. Topas ?!
Aquilo estava indo muito além da sua ética. Fidípedes engole seco, logo raciocina: quando, em sã consciência, poderia pegar uma garota daquelas ?! Mas narcóticos, cara, narcóticos... Pensou na mãe assando biscoitos enquanto entoava cantos religiosos. E no avó, manco duma perna e que cantava, em basco, a Internacional socialista. Não sabia porquê viera assim a imagem do avó. Encarou como um sinal e perguntou:
- Maconha ?!
- Fala baixo, cara... – pedindo um certo cochicho – É, maconha... Curte ?!
A maldita balança de pesar consciências... Não sabia o que responder, suava frio, suas mãos estavam empapadas. Sabia que seria mané caso dispensasse uma gata só por questões . Contudo prometera que nunca botaria um entorpecente no seu organismo. Tentou pensar numa música, isto poderia abstrair a situação... Lhe veio então os violinos do The Verve em “Bitter Sweet Symphony”. Tentava em vão extrair algo dos olhos daquela garota...
- E então, seu zé-ruela ?! Vamos ou não ?!
E Fidípedes gagueja barbaramante uma resposta.
- Xi, pelo jeito é careta... Se fosse o Afonsinho não negava não...
Novamente lhe aparecia este fantasma estrangeiro, este nominável sem rosto... Ou pior, com um rosto sim: o do próprio Fidípedes !!! Não sabia o que fazer, sentiu-se como um fausto goethiano diante da perca do tudo...
- É, seu bundão, vou vazar. Ok ?!
Ela se levanta, mas agilmente nosso herói a agarra pelo braço, travando suas intenções.
- Espere um pouco. Que se foda este meu mundinho, que se foda por um momento o Fidípedes que sou... Só por hoje, neste exato momento serei o Afonsinho que não conheço, contudo me parece tão íntimo... – respirou bem fundo, a paralisia parecia findada e ele finalmente se levanta – Vambora fumar esta porra e depois vamos dar umas, baby !!!
Antes da moça sorri ou topar, ele anuncia em catarse:
- Fidípedes morreu e talvez ressuscite no terceiro dia !!! Viva ao novo Afonsinho !!!
E para espanto de Tobias e meia nação de gatos pingados daquele já batido boteco de esquina, Fidípedes sai entrelaçando seu braço numa bela e escultura cintura juvenil de nossos tempos...

terça-feira, 17 de maio de 2011

HISTÓRIAS DE AMOR

“Que pode uma criatura senão, entre criaturas, amar?...”
(Carlos Drummond de Andrade)


Nasceram no mesmo dia. Também nasceram na mesma cidade, exatamente no mesmo hospital. Um foi mais precoce que o outro, uns vinte minutos. As mães sentiram as mesmas dores de parto, os pais dividiam a mesma sala de espera. E ambos fumavam. O primeiro choro foi da menina. Chamou-se Flor Branca.
Choveu. Contudo a lua já brilhava quando o segundo deu a luz da graça: viril, bonito, cabeludinho, denominou-se Sísifo. Aquele que era chamado de pai na verdade era seu avô. O genitor era então desconhecido, a mãe enlouquecera desde a descoberta da gravidez. Coronel Androceu, o primogênito desta linhagem aqui descrita, foi o primeiro a vê-lo. Dizem que não declinou lágrimas.
A menina, loirinha como a mais alva estrela, era filha dos vendedores de frutas da cidade. A terceira de três irmãs, última do quarteto. Sua mãe sorria feliz, no pleonasmo devido desta afirmação. Sorrir feliz era o mínimo que Dona Esperança poderia fazer. Sentia-se dadívada com tudo aquilo, como se um anjo gabrielino a tivesse comunicado de tal benção. Rezava a lenda que, ao seu nascimento, da pesada chuva exalou-se um aroma de rosas e o ar encharcou-se dum púrpuro sem igualdade.
Curioso é lembrar que o mesmo fato viria a se repetir somente vinte minutos depois. E nunca mais então...
A criança sem pai e dono dos mais valiosos vinténs teve que se contentar com um parto feito por uma estagiária. Na época só havia um médico na maternidade e este estava dando preferência à aquela que chegara primeiro, ou seja, a esposa do fruteiro. Lógico que isto causou um imenso rebuliço por parte do militar de patente. Mas tudo foi esquecido quando as mãos trêmulas, inexperientes e sangrentas daquela moça traziam consigo o garboso menino... A própria não acreditava no que acontecia, atribuindo tudo aquilo ao misterioso cessar dos aromas e do ar pesado e tinto.

2.

Aqueles dois cresceram em ambientes opostos. Um não viria o outro até um determinado instante que aqui será realmente mencionado. Vale apenas salientar que o neto do Coronel Androceu chegou e rebentou-se naquela atmosfera cinza e sisuda, onde cada poro daquele casarão exala poeira e coisa por envelhecer, sem esperanças, sem a coloração da vida brotada... Era uma enorme sala. A mãe vivia taciturna, pusilânime de si mesma. Mal comia, usava o vestido surrado de sempre, fechava-se num luto de mudez e desatenção. Também havia uma biblioteca, cheia de clássicos. Uma poltrona de algum século qualquer, uma mesinha de mogno, polida pela beleza marmórea do helenismo, um cachimbo que fedia folhas colhidas das Cubas escravistas, a janela que abortava uma luz como se do inesperado... Lá o Coronel isolava-se dos seus problemas. Lá Sísifo deu seus primeiros passos. A cozinha não era diferente de suas negras que por ali trabalhavam desde de pequena, herdadas do traço e da força que urravam seus antepassados. Uma enorme mesa, colheres de pau, tigelas coloridas brilhavam ao titilar das pratas que adornariam a mesa do jantar. Via-se dali Dona Amorosa, a esposa do Coronel. Com a ausência da filha, coube a ela a educação do seu neto. A doidivana menina chamava-se Diotima, fruto etimológico da paixão do Coronel por filosofia grega. Ela vivia num quarto aos fundos da localidade, donde de uma porta era lhe servido a comida e os raios solares. Diziam os negrinhos que por lá trabalhavam que a moça costumava brincar com seus excrementos e comia baratas entre suas fomes. Vivia no seu próprio mundo, não dava as mínimas ao filho que acabara de dar os primeiros passos, ou de falar cacofonias iniciais, ou de fazer rabiscos nas paredes da casa colonial... Sísifo crescia jubilado do amor materno, contudo encontrava na Vovó Amorosa toda à vontade de ser cuidado enquanto criança. Nunca lhe faltou nada. Vivia dependurado nas longas tranças de sua cicerone, corria atrás das galinhas que iam ser servidas no jantar, encantava-se com as grossas enciclopédias derivadas da biblioteca do Coronel, foi um menino feliz e sempre que podia, distanciava-se do local onde estava a “louca”, como assim chamava a mãe.
Já Flor Branca teve um início de viver mais brando, pobre no sentido social de bem-dizer. Um casebre sem cuidados, porém bastante limpo e organizado. O patriarca, seu Golias, assim como o nome, era bastante forte para os padrões. Ou em comparação com sua cônjuge, Dona Esperança, bastante frágil e com a candura de uma andorinha em fim de inverno. A pequena fazenda era repleta de flores e pássaros. Havia um pomar donde tiravam seus sustentos, um poço de água quase cristalina, um imenso quintal com árvores e balanços artesanais. A menina foi a caçula de um grupo de quatro. O mais velho, Fortunato, já era da idade de ser pai. Do Céu, uma quase noiva. E Meíta, aquela que deixara a posição de última do bloco, já debutara. Todos os dias acordavam com o cantar do galo, fazia as assepsias matinais, tomavam café com broa, arrumavam as frutas na velha carroça e ia para a cidade vender o seu plantio. Neste caso iam apenas os homens da casa. As mais velhas cuidavam ora do pomar, ora de Flor. A mãe também tinha a mesma função, só que em dobro. Do Céu arranjara bom noivado, casaria no final do ano. Viviam felizes, ouviam grilos no fim de noite, cantavam suas lamúrias ao redor da fogueira de São Pedro, lavavam suas roupas no riachinho que cortava a propriedade... Um bucolismo de dar dó.
Na idade de quatro anos, apesar de engatinhar e fazer todas as funções de um bebê normal, Flor apresentava um distúrbio quase anormal. Muitas das vezes do dia, Dona Esperança flagrava a filha a olhar concentrada para colméias e enxames. Nada seria estranho se esta não fosse a única atividade que a garotinha fazia na vida. Deixava os brinquedos de lado, não conversava com ninguém, seu lazer era a tal observação botânica. Seu Golias em nada preocupara, achando que era fase. Mas aquilo era motivo de horrores para a mãe. E como forma de desabafo, nos cantares e ensaboar das pedras do riacho,durante as lavagens da roupa, confessava a dor para Negra Nhá.
“Já não sei o que fazer com a Florzinha...”, dizia.
“Bom, me disseram que na cidade tem uma professora muito boa. Quem sabe o mal de sua filha não seja falta de convívio com outras crianças ?”, aconselha Negra Nhá.
A idéia remoeu Dona Esperança por dentro. Nenhum dos filhos tivera estudos. Nem precisava. Qual matemática era necessária para colher pêssegos ?! Mas o caso de Flor Branca era de pensar nesta alternativa. Chegou em diálogo com o marido. Ele achou complicado, coçou a cabeça, tinha a mesma opinião quanto à escola... “Mas se é o melhor pra menina, pode botá-la na escolinha...”, concluiu então.
Assim Flor Branca teve a sua primeira chance.

3.

Não é preciso dizer que a possibilidade de Flor Branca estudar causou inveja por parte dos irmãos. Mas especificamente de Meíta. Sempre ambicionava aprender o bêabá, os números e as ciências. Chance nunca lhe dada, mas agora à disposição da criatura mais nova da família.
E lá se foi o primeiro dia de aula de Flor. Como foi difícil vestir-lhe o melhor vestido, fazê-la entrar na carroça, segurá-la para não cair do veículo... Ao chegar na escolinha da prefeitura, arredia que só, insistia em arranhar as pernas da mãe, forçando uma barreira para a sua não-entrada. A professora demonstrava toda a doçura que já fora mencionada por Negra Nhá, tentando pedagogicamente contornar o embaraço. Em vão lutava contra a ação interna da garotinha, que temia pelo o que havia dentro da sala. Mas daí veio a guinada para tudo: a visão de Flor Branca turvou-se diante uma figura gravada na parede. Era o mapa dos aparelhos duma abelha. Nunca vira algo tão belo, uma coisa que tanto a fascinaria... Andou então, pé a pé, como uma cândida fadinha ao encontro do encanto, em direção à aquela gravura. Todos a olhavam catatônicos. Inclusive um que construía um castelo com pecinhas de montar.
Sísifo sublimou-se naquela loirinha que entrava na sala como a doce visão dum anjo mensageiro. Sentiu-se num sonho. Sua boca refletia um ataque asmático, seu coração, uma cadência de estorvos e festas... Dedicou seu olhar para aquela cena. A professora tentava controlar o grupo, passando alguma atividade. Todos sentaram em roda. Todavia Flor Branca estava de pé, olhando em reza para aquele desenho. Sísifo não perdia a concentração em venerá-la por segundos. Então decidiu pegar um papel e começou a rabiscar algo...
Aquele dia correu manso. No final da aula, Dona Esperança enchia seu coração de graça ao ver a filhinha. E quando a pegou pela mão, que surpresa foi ver Negra Nhá.
“ O que fazes aqui, Negra Nhá ?!”, pergunta.
“Ué, não vê aquele menino ?! È o Sísi, o bacuri que alimento no peito desde recém-nascido...”
As duas crianças então se olham. Pareciam estarem juntas desde sempre. Os nervos de Sísifo tremiam, sua alma congelara, as mãos estenderam e entregaram o pedaço de papel. A menina aceita, olha e sorri. Fala um tímido oi. O desenho de abelha que Sísifo fizera saiu tão perfeito quanto o original da parede. Quase tão realista quanto uma de verdade. Descobrira seu talento. Descobrira Flor Branca. Seriam amigos desde aquele momento...

4.

Desde desta época, Neiva já sofria de solidão. Bem, não era uma solidão das bem ditas. Na verdade já entrara na idade em que qualquer mulher preocupava-se em morrer encruada. Nem muito feia, nem muito bonita, Neiva tinha os mesmos anos de Do Céu. Contudo a sua solteirice já era motivo gozador entre as meninas da cidade. Todas de dezoito tinham um namorado fixo, um noivo garantido, uma barriga para contar história (garantia de casamento, vide o desrespeito às embuchadas sem matrimônio)... Neiva sofria e catalisava suas lamúrias na arte do bem cozinhar e na decoração de bolo e doces para casamentos. Sabia como ninguém qual o ponto ideal para o glacê, como desenhar bordados para contornos dos mais belos bolos; fazia tudo num capricho inenarrável, quiçá na esperança do seu próprio casar...
E não era por falta de ação. Estava ela lá, presente em toda novena de Santo Antônio, dependurando o santo pelo avesso, fazendo simpatias e mandingas diversas. Nenhum resultado positivo. Já até tivera um compromisso, um quase noivado. Mas este morreu infartado antes das núpcias. Neiva tinha um singelo buço e uma curiosa sorte: em todos os casamentos em que ia, sempre pegava o buquê jogado. Era batata: convidar Neiva para a cerimônia era garantir a sua saída com as flores que antes adornavam a dama principal da festa. Não era entendível como tamanha sorte resultava em tão grande agouro. Por que Neiva não se casava, se tanto era colecionadora de buquês ?! O tempo passava e a madura perdia a esperanças dum bom partido para dividir trouxas...

Rebento não era diferente das outras cidades interioranas. Sua pequenez a fazia desaperceber de mapas e censos. Tinha igreja com coreto, uma praça principal defronte a prefeitura, um busto do fundador, a família que mantinha domínio... Também era comum os pombos, o jogo de dama entre os velhos, os fuxicos da janela, o apagar das luzes após a meia-noite. A cidade era mórbida, parada na sua doce liturgia de esquecer-se do mundo, assim como o matuto que dorme sob a relva do nascer do dia. Havia um padre, um delegado, a rua das putas, o cheiro dos tamarindeiros, dois ou três armazéns, a gazeta de notícias sensacionalistas, a morte que causa comoção geral... Rebento nascia onde o rio atravessava as pontes, a pedra-sabão que enfeitava anjos nus aos pés do padroeiro, a vassoura que limpa as calçadas riscadas a cacos de telhas e carvão, o beijo escondido, a rosa, a Rosa, o José...
E Rebento dormia no olhar vago de Neiva. A janela do seu quarto ainda se alumiava quando os lobisomens dormiam. O calor intenso, a falta de um par, a lua amarelada. Neiva dava suspiros de crença, seu homem ainda viria no cavalo alado de suas fantasias... Do outro lado da cidade, Sísifo não pregava o sono clássico das crianças temerosas de mitos que pegam os insones. Queria que o amanhã logo chegasse, desenhou outra abelha para presentear Flor Branca.

5.

Logo se tornaram melhores amigos. A única sociabilidade de Flor Branca era o desgrenhado garoto que lhe desenhava abelhas. E Dona Esperança atribuía aquilo ao fato de nascerem no mesmo dia, no mesmo e espantoso fato do fluído aromático que nunca mais atingiria Rebento.
Viviam juntos. E assim cresceram nos avanços escolares. Sísifo se aprimorava nos desenhos, queria fazer bonito para sua musa. Passou a desenhar paisagens, sofrimentos, o rosto de Flor Branca... E apresentava-lhe o mundo dos livros, enciclopédias, aritméticas e espaços. Através de Sísifo ela descobriu que havia um mundo além de Rebento. E isto a fascinara bastante. A menina retribuía mostrando o físico, o contato com a terra, a grama, o mato, os animais, o fiozinho de água... Aprendeu, então, a subir nas goiabeiras, a matar passarinho, a cuspir semente na direção mais distante. Ambos se completavam. E aquilo preocupava o Coronel Androceu.
Não que fosse contra o neto envolver-se com crianças de nível social mais baixo. Mas esperava de Sísifo amizades mais finas, distintas para o brasão da família. Como se comprometera a fazer do jovem apenas um qualquer que errou, fazia um “deixa pra lá” da situação e recostava a coluna na poltrona, sempre por detrás de um Dostoievski por terminar... Já Dona Amorosa era pura docilidade com a garotinha, sempre lhe servindo o delicioso bolo de laranja que, talentosa, conseguia fazer até com as mãos ateadas !!!
Numa conversa, enquanto Sísifo esboçava traços e Flor Branca não desgrudava de um Dickens...
“Ei, você já pensou no que vai ser quando crescer ?”, pergunta um deles.
“Crescer ? Sei ainda não...”
“Pois eu quero construir casa...”
“Casas ?!”
“É. Como se constrói casas ?”
Sísifo pôs a ponta do lápis no queixo. Queria a melhor resposta para a indagação da menina.
“Bem, creio que tudo começa com o arquiteto...”
“Arquiteto ?”, a palavra soava bonito nos ouvidos de Flor Branca.
“É, arquiteto. Aquele que projeta como será a casa, quantos cômodos ela terá, os tamanhos das paredes, as posições da janelas...”
E pensou em dizer mais. Queria explicar a importância de posicionar bem as janelas, de como era importante saber das incidências dos raios solares na casa projetada e outras coisas mil. Contudo a idéia foi interrompida pela voz de Flor Branca:
“Pois eu vou ser arquiteta quando crescer.”
“Tem certeza ?”
“Absoluta.”
Não discordou. Em troca desenhou-a. E ela sorriu. Sísifo pintou o mais belo sorriso naquele dia...

Eles cresceram. Flor Branca menstruou, Sísifo "roubava" constantemente o carro da casa. Nenhum dos dois estavam mais tão perto naquele momento. Pelo contrário: há muito tempo não se viam com a antiga e devota constância... A menina desabrochava seios e não queria mais o banho de rio. Ele deixava pelugem no rosto e o cabelo grande sob protesto. Ela herdou as revistas de fotonovela das irmãs. O menino já contraia suas primeiras doenças venéreas. Flor Branca sonhava com o príncipe escandinavo que a tirasse daquele mundo. Sísifo queria uma moto e com ela fugir do mundo. Esqueceram-se um do outro. O primeiro beijo dela foi num rapaz longe de sua querência. A primeira vez dele foi com Rita Matilda, melhor amiga de Flor Branca. Aos 14 ficaram pela única vez, no Carnaval local. Nem se perceberam. A inércia que se levava àquela amizade rimava com algo trágico e vil.
O tempo foi passando. E Flor Branca queria expandir suas vontades. Conseguiu bolsa da prefeitura, embarcou para a cidade grande, ia fazer vestibular para arquitetura. Sísifo não planejava carreiras, mas queria a liberdade. Também foi para a cidade grande. Tentou e conseguiu entrar em duas faculdades. Não terminou nenhuma. A garota procura por seu nome numa lista interminável de pessoas. Finalmente FLOR BRANCA DOS PASSOS, aprovada.
A cidade grande assustou Flor Branca a princípio; mal conhecera o mundo e a ele temia. Sem conhecer ninguém, procurou uma república que, num anúncio de jornal, pedia mulheres para pousada. Ao chegar no estranho lugar, logo se familiarizou com o grupo, em especial com Magali, sua colega de faculdade. Descobriu nela uma cumplicidade que parecia cósmica. Ou de afinidades, conforme a denominação de sua preferência. Mas o que vale realçar é que Magali mostrou o mundo à interiorana que nada sabia dele. Assim Flor Branca conheceu a cerveja, a vodka, a cachaça, o cigarro, o Prozac, a bagana, o sexo, o sexo a três, o mesmo sexo... Flor Branca sujou seu nome na justiça, pinchou muros, dançou nua em festas e bacanais, leu Maiakovski, Carpeaux, todos os Henry Miller, Sartre, John Fante, On the road... Conheceu bandas alternativas, mas não se encantara por nenhuma delas. Colocou um piercing, uma tatuagem ao qual se arrependeu no futuro, tomou LSD, cheirou um pouco de tudo. Só não se permitiu aos injetáveis ou aos roubos de carros. Viveu de tudo, tudo aquilo que Sísifo já conhecia. Não pensou mais nele, mas mantinha o sonho de casar com um príncipe escandinavo.
Sísifo tentou a carreira como cartunista. Tinha talento, desenhou para diversos jornais subversivos. Mas a imprensa marrom não dava dinheiro suficiente para seus sustentos. Como era bonito, chegou a prostituir-se para conseguir um prato de comida. Orgulhoso, não escrevia para a família reclamando de seus maltratos. Num dado momento virou barman duma birosca de um bairro marginalizado. Ganhava dinheiro de algumas prostitutas que namorava, e nestas conheceu Roxanne. Garota de 15, cabelo vermelho, recitava Álvares de Azevedo, aparelho dentário e a mesma e surrada camisa do Judas Priest. Começaram romance, tentou levá-la a sério. Foi fiel, moraram juntos no pequeno conjugado locado por ele. Roxanne deixou de prostituir e contou-lhe que era fugida de casa. Pareciam felizes.

6.

Neiva adotara a filha da empregada morta no trabalho de parto. Batizou-a Antônia, mas todos a chamavam de Morena. A idade passava, desgraçada idade que passava! Tinha anos para ser uma senhora, contudo ainda era senhorita. Várias vezes pensou em quebrar a imagem do santo de devoção, muitas quis se matar. Em todos os casamentos que ia, o buquê insistia em cair no seu colo. O falatório era maior, Neiva guardava todos os buquês numa enorme caixa acima de seu armário de quarto.

Como há tempos não chovia em Rebento, aquela estranha tempestade de primavera fez enormes poças em que as crianças pulavam na brincadeira feliz de serem crianças. Os cheiros se misturavam, ninhos molhados e o zoar de grilos e louva-deus. Um sinal de sorte.
Seu Zenóbio abre a farmácia. Carrancudo, sonhava com o mundo de sua época. Espera os funcionários chegarem, dá reclamação por seus atrasos. Sobe para seu escritório improvisado e põe um tenebrosos minueto de Bach. O disco parece ralado, saltita pela agulha do velho aparelho. Todos o temiam, nem parecia que um dia fora feliz...

No mesmo dia Neiva recebe mais uma encomenda. Festa grande, precisaria de ajudantes para dar conta do trabalho. Até Morena, no brotar de seus oitos anos, seria uma mão de serventia.
“Nossa, Alair já vai casar ?”, pergunta após engolir seco.
“Pois é. Deu sorte de achar um bom partido...”, a senhora era gorda.
Sentiu que foi uma indireta para ela. Porém pareceu educada:
“Quantos anos ela tem mesmo ?”
“18...”
“Ah...”
“É, porque é assim: nem sempre temos sorte na vida... Graças a Deus minha filha não vai morrer encruada e...”
Nem deu tempo para a madame terminar tal fala.
“Olha aqui, minha senhora... Ou você sai daqui rapidinho ou não terá mais nada pra sua filhinha contar história. Vou fazer tudo só porque tenho respeito pela pequena Alair, que nada tem a ver com a mãe que tem !!!”
E geralmente as brincadeirinhas era as mesmas. As respostas de Neiva também. Contudo ela nunca abandonava serviço: estava no mundo para isto e fazia disto sua missão maior. Já que não podia ter o casamento de seus sonhos, não iria estragar os dos outros... Lembrando que Neiva era a única da cidade e também a melhor doceira que existia em toda a região. Sua renegação podia indicar uma fadada cerimônia.

Zenóbio olha para o porta-retrato. Era a mesma foto, uma bela moça. A razão de sua amargura, Anja Maria. A mais bela das mulheres, várias vezes miss Rebento, cobiça de todos os homens... Apesar disto, fora logo escolher o mais vagabundo e boêmio daqueles tempos. Cinco meses de casados e ela morreu. Do nada, uma simples enxaqueca e a dona caiu de cama. Sem grandes choros, morreu feito santa. E desde então Zenóbio ficara na situação atual. Dizem que nunca mais dormiu. Vivia a zanzar pelas ruas da cidade, altas madrugadas adentro. Conta a história que ele fora um dos homens mais disputados daquelas bandas. Sedutor, tinha um grupo de choro, Os Serenos da Lua. Ele no cavaco, Casca de Ferida na viola, Miltinho na flauta e Jotapê no pandeiro. Saiam nas noites a tocar, encantando as moçoilas e desesperando os pais. Zenóbio era o grande destaque, com seu topete a gel, um bigodinho a la Clarck Gable, voz de Orlando Dias... Não havia garota que não se derretesse por tal rapaz, ao luar de um tempo onde nem havia postes. Como eram românticos àqueles anos, Os Serenos da Lua deixariam um vazio na vida dos mais velhos. Foi nesta época que Zenóbio conheceu sua musa mor. E por ela abandonou o cavaco, a noite, os amigos de branquinhas... Tornou-se homem de compromisso, agradou os pais da mocinha. Até a tragédia abater toda a felicidade. Neiva ainda era muito criança naquele fato, mas lembra de tudo como a clareza de um pirulito saudoso...

7.

A faculdade passou como um raio. Estudou, foi uma das melhores da turma, estagiou, formou-se. Numa maré de sorte, logo abriu um micro-negócio com Magali. Ainda tinha uma poupança do estágio, graninha que acabou por realizar o sonho delas: seu próprio escritório, uma empresa que aos poucos foi ganhando destaque no ramo da arquitetura. Não ficou muito rica, mas com certeza tinha mais dinheiro do que o seu pai já juntara na vida! Aos poucos esquecia da cidade, nem mais abria as cartas que de lá vinham...
Sísifo ainda tinha dificuldades para pagar o aluguel. Terminava, voltava para Roxanne. Começou a endivida-se, primeiro com o pôquer, depois com traficantes. Continuava no balcão de bar, inventava drinques intragáveis, mendigava por melhores gorjetas. Tentou voltar ao ramo dos desenhos. Fez uma "boneca" de revista, criou uns personagens... A grana estava escassa. Roxanne pensou estar grávida. Fez testes, uns deu negativo, outros o contrário. Consultou um médico e o veredíto foi afirmativo. Neste dia tomou o maior porre de sua vida, quase engasgou com o próprio vômito. Não sabia se queria esquecer o hoje ou se pensava no filho por nascer. Queria ser um pai presente. Indagou-se pela displicência da mãe louca e pelo pai que nunca conhecera. Ao chegar na casa, encontrou Roxanne absorvendo carreiras de cocaína. Deu bronca nela, jogou-a contra a quina dum criado-mudo. Um hematoma, Roxanne sentiu medo. Fugiu do lugar, passou um tempo na casa duma amiga. Logo voltou. Continuou cheirando. Sofreu um aborto espontâneo ao terceiro mês de gestação. Sísifo comprou uma arma. E conseguiu vender um de seus desenhos para uma importante gazeta.
Flor Branca prosperava. Abriu filial em outras cidades e estados. Já aparecia em reportagens sobre empreendedoras de sucesso. Seus projetos eram ousados, nunca antes vistos ou imaginados. Alcunharam-na de “Dalí das casa”, “a grande mestra dos desenhos arquitetônicos”, “uma máquina de fazer dinheiro”... Seus esboços eram disputados por governos e grandes milionários. Mas sentia-se infeliz. Magali julgava ser stress...
“Por que você não faz uma enorme viagem ? Vá conhecer novos países, novos povos, novos amores !”, propôs a amiga.
“Será ?!”
“Não era você que sempre quisera conhecer o mundo ?! Como chegar até as nuvens com os pés no chão ?!”
Aquela filosofia de Legião Urbana encheu Flor Branca de coragem.
“Qual lugar você adoraria conhecer ?”, perguntou Magali.
“Lugar ?! Sei não...”
Magali pega o globo:
“Veja: aqui é o mundo. Feche os olhos e indique qual país você vai conhecer...”
Achou esquisito, mas entrou na brincadeira. De olhos fechados, fez um sinal de indicação e dirigiu o seu dedo para o mapa.
“Escandinávia. Suécia, para ser exato. Frio, mas lindo. Conheço Estocolmo...”
E Flor Branca relembrou páginas amareladas de revistas de fotonovelas.

O avião, as nuvens batendo contra a janelinha onde sua vista apenas via formiguinhas e pequeninas casas. Chegou na capital sueca e lá fazia frio. Logo pegou um táxi e locou um quarto. Sabia se virar no inglês, imaginou a vida que poderia levar numa Rebento que já esquecera... Andou por praças, conheceu museus, jogou moedas em fontes. Brincou com a neve, o branco dela até cegara seus olhos tão acostumados com os trópicos! Parou em sebos e comprou livros e discos. Então descansou num café da cidade. Pediu um chocolate quente e começou a folhear uma de suas compras. Não percebeu que alguém a olhava noutra mesa.

Sísifo ganhou um bom dinheiro. Comprou um carro, torrou uma parte com futilidades. Roxanne queria casamento, não precisava ser de igreja. O rapaz sempre dizia não. Então a moça ficava quieta. O jornal cansou das tirinhas, não tinha um público tão fiel. A crise voltou, Sísifo participou de pequenos furtos. Nunca foi detido, mas levou dois tiros. Perdeu uma parte do intestino, uma das balas alojou-se no seu braço. Estava barbudo e os dentes estragara. Bebia diariamente, maconha algumas vezes por semana. Traiu Roxanne pela primeira vez. Várias vezes, muitas mulheres diferentes. E Roxanne completou vinte anos aos seus braços. Engravidara umas duas vezes. Numa abortou por consciência e segredo. O rapaz foi demitido do bar, brigou então com o dono e levou uma facada no rosto. Quatro pontos, uma pequena cicatriz no rosto.

O homem abordou Flor Branca. Perguntou pelo livro que lia.
O Processo, Kafka...”, respondeu a moça.
Ele perguntou se podia sentar ao seu lado. Era loiro e forte, o príncipe escandinavo de seus sonhos de adolescente.
“Claro que sim...”, o díalogo seguiu-se num inglês macarrônico.
“Dá pra se ver que você não é daqui...”
Não sabia se dissera aquilo pelo fato da língua ou se pela cor meio amorenada. Devera Flor Branca sorria.
“É, não sou. Sou do Brasil...”, respondeu.
“Hum, Brasil...”
Ele pediu um uísque. O chocolate quente chegara em seguida.
“Prazer, Denny.”
“Flor Branca...”, e apertaram as mãos.
Conversaram sobre acaso, artes, Brasil... Ele era um poeta fracassado e trabalhava num jornal como crítico de cinema. Trocaram telefones e marcaram encontro. Há tempos o coração de Flor Branca não acelerara tanto. Pela noite caiu uma pequena nevasca. Flor Branca ouviu Aretha Franklin - conselho de Denny. E pensava nele quando o telefone tocou.
“Alô ?! É Denny. Lembra ?!”
Ficaram em voz por algumas horas. Ele propôs antecipar o encontro. Marcou de passar no hotel depois da meia-noite...

Dois amigos de Sísifo morreram de overdose. Uns quatro foram para a penitenciária. O cabelo de Roxanne ficava mais escuro. Seu rosto ganhava olheiras e estranhas manchas, algumas rugas também. Já não era bela como antes, abandonara de vez a camisa do Judas Priest. Ora andava nua pela casa, ora usava uma Pólo azul de Sísifo. Mesmo quando os amigos do homem estavam em casa, o traje era o mesmo. Sentava-se sempre de pernas abertas, o que era garantia de espancamentos depois das visitas. Em suas laricas comia repolho com mel. Até lascas de lápis apontado ela já pusera na boca. Sísifo andava reclamando do estômago. Achava que beber uma garrafa de Domus era a solução. Pensou em suicídio umas duas vezes. Chegou a ligar o gás e fechar janelas. Roxanne propusera uma morte mista. Ele não achava digno morrer por tal proposta... Leu Bukowski por pedido de uma das amantes. Roxanne gostou de lê-lo também. Desenhou-se, biografou-se numa tira caseira. Gostou, batizou-o de “Pequeno Cagado”. Por trocados publicou-o num informativo sindical do bairro. Os seios de Roxanne estavam enorme, ela engordara como uma leitoa. Sísifo broxou pela primeira vez. Riu disto e escreveu no desenho “Meu pinto ficou menor que uma casca de amendoim...”. Foi Dom Quixote numa sessão de maconha. Uma das garotas que transou morreu aidética. Fez o teste e, pra seu alívio, deu negativo. Sentia-se vazio na vida. Constatou que amava Roxanne.
“Ei...”, chamou o homem.
“Hã ?!”, Roxanne despertava dum sono.
“Tu quer casar comigo ?”
Ela o abraçou e beijou-lhe os lábios.

Flor volta noiva da viagem. Um belo anel de 28 quilates. Conversavam por e-mail, ele prometia morar no Brasil em dezembro. Marcaram cerimônia para março do próximo ano. Neste tempo enjoou, mas era alarme falso. Tentava esboçar sorrisos, mas havia um negro vazio por dentro de si.

8.

Morena se tornara uma bela de dezoito anos. Cabelos cheios, cacheados e muito negros, corpinho de pilão, seios na redondez perfeita. Uma deusa na brasilidade certa. Muitos a cortejavam, Neiva estava ciente disto. Mas havia uma condição:
“Morena, tu pode estar certa: antes de mim tu não casa não ! Portanto não quero ver você de rabicho com ninguém, estamos dito ?!”
E a menina atendia, apesar do seu coração bater mais forte por um caboclo atendido por Jurubeba. Tinha uns 26, nenhum tostão no bolso, chapéu-panamá e um cabelo engomado com pasta de cheiro ruim. Feições bonitas, um nariz bem arendondado, sem pelugens nas bochechas, pupilas clarinhas... Sempre abordava Morena com um caramelo e um elogio.
“Por tu, minha Morena, daria o céu em toda sua santidade e o mar em toda sua profundidade... Pra tu o meu mais amistoso amor e meus mais sinceros votos de felicidade comunhada comigo...”, dizia malandrosamente poético.
Na fala, via-se um dente de ouro na gengiva que mascava um velho chiclete. Seu verdadeiro nome era Cleonílson, odiava-o.
“Nem um namorinho assim posso ter, madrinha ?!”, indagava a mocinha para Neiva.
A chamava de madrinha, nunca de mãe. Sabia da história toda desde muito pequena.
“Em vez de pensar nestas coisa, tu devia é me ajudar. Bate esta massa pra mim, fazendo favor...”, sempre disfarçando conversas.
Morena nunca dissera nada sobre Jurubeba. Nem que lhe prometera beijo na boca na quermesse de São João. Foi ali que o namoro secreto começou. Ela temia tanto pela madrinha que tinha diárias crises de diarréia.
“Nunca de vi gente que caga tanto, meu Cristo!”, brincava aos prantos Neiva.

9.

Flor Branca sentiu uma agonia qualquer, algo que a consumia no dia inteiro de trabalho. Saiu do escritório, caminhou pela rua, comprou tangerinas. Resolveu pensar no que viria a acontecer. Tinha horário para a prova do vestido de noiva, ia conhecer os pais de Denny, faltavam muitos detalhes do casamento para serem acertados. Andou pela praça municipal, viu garotinhos brincando nas gangorras e balanços, respirou fundo... Sentou-se num banco e leu um folheto que recebeu dum anônimo.

Sísifo não sentiu-se bem ao receber tal telegrama. No envelope havia o nome de Rebento. Há quanto tempo não recitava este palavra. Rebento em nada lhe representava. Não naquele momento. Fazia quantos anos que não pensava na cidade natal ?! Não quis abri-lo na frente de Roxanne, nunca se sabe o que esperar dum telegrama. Foi para o lugar mais distante de seu bairro. Era a praça municipal. Caminhou pelos paralelepípedos que enfeitavam a rua, cada um de uma certa cor que faziam um estranho mosaico. Olhou para um casal de joão-de-barro, a estranha que caminha doutro lado da praça pareceu-lhe conhecida. Não ligou para suas impressões.

A mulher percebe o azul do céu, há tempos não fazia um parecido. Quis saber qual desenho as nuvens queriam fazer para ela. Havia perdido o onirismo de desenhar em nuvens. A infância falhou-lhe lembranças, parecia ter deletado qualquer imagem do passado. O saco cai e deixa rolar algumas tangerinas. Uma lágrima brotou-lhe quando a estranha velha senta ao seu lado.
“O que há, linda moça?”, diz. A voz lembrou-lhe a mãe.
“Ah, sei lá... Sabe quando você parece ter tudo e não ter nada?”
“Sei não.O que tenho?! Apenas este agasalho e um gato no meu barraco. O nome dele é Melquiades. Era o nome de meu falecido...”
“E como é este gato?”, o papo parecia realmente interessante.
“Ele é assim preto, com manchinhas brancas... Ou seria branco com manchinhas pretas ?! Ah, ele é muito lindo, sabia ?!”
“Deve realmente ser...”
“E você, tem o quê ?!”
“Um carro último tipo, uma boa casa, propriedades, um noivo escandinavo...”
“E tu é feliz ?!”
“Feliz ?!”
“É. Eu com tudo isto seria a mulher mais feliz do mundo...”
“Entretanto você só tem o agasalho e o gato....”
“É, o Melquiades !!!”
“E você é feliz ?!”
“Sabe o que eu faço quando estou infeliz ?!”
Flor Branca negou com a cabeça.
“Observo aquela colméia ali. Como pode as abelhas serem felizes nos fazendo feliz ?!”
E Flor olhou a colméia. A lembrança veio-lhe parcialmente. Enxergou a decisão. Ia buscar a felicidade, qual custo lhe fosse...

Do outro lado da praça, Sísifo criava força para abrir o telegrama. Tinha medo do que aquilo poderia resultar. Estava amando Roxanne a cada dia mais. Suas mãos pesavam, ocupavam algo maior que a alma. Resolveu encarar. Jogou o envelope no lixo e concentrou-se naquelas palavras. Diziam lá que seu avô não estava nada bem e que esperava apenas a presença dele para ter "o conforto da paz eterna", nos dizeres do escrito. Não era justo deixar o Coronel na agonia de morrer desta forma. Suas profecias estavam certas. Tomou a decisão que mudaria tudo a partir dali...

Flor Branca abandonou o noivo, vendeu sua parte na empresa, o carro, as propriedades. Tinha em mente o que fazer: voltar para Rebento e lá abrir uma pequena apicultura.

Sísifo chegou em casa mudo. Pegou a mala e começou a pôr peça por peça. Roxanne chega e logo indaga:
“Vai pra onde ?!”
Ele nada responde.
“Tu vai viajar ?!”, insistiu.
O homem olha para ela. Um sereno olhar, queria dizer tudo sem precisar esmiuçar palavras...
“Fala comigo, Sísifo !!!”, dizia Roxanne, já alterando voz.
“Vou ali...”
“Ali onde ?! Tu tá doido ?! Fumou algum estragado ?!”
“Ah, Roxanne... Não mereço uma mulher como você....”, tenta abraçá-la.
Ela foge dos braços.
“Tu tá me deixando é ?!”
“Sei não...”
“Peraí, tu tá ou não tá ?!”
“Tô !”, diz isto sem olhar para ela.
“E posso saber por quê ?!”
“Vou viajar. Não sei se volto...”
“E eu não posso ir contigo ?!”
“Não.”
“E por quê ?! Vai se encontrar com outra ?!”, acende um cigarro e senta numa cadeira.
Resolve encará-la.
“Não há ninguém...”, e aproxima de Roxanne. Acocora-se à frente dela.
“Então o quê é ?!”, já chorosa.
“Aconteceu umas coisas aí...”
“Me diz o que é, caralho !”
“Com o coroa...”
“Tu vai voltar pra tua cidade ?!”
“Talvez.”
“Tu volta ?!”
“Não sei...”, levanta-se e acende um cigarro.
“Tu não me ama mais ?!”
“Amo.”
“Então ?!”
“Então o quê ?!”
“Deixa eu ir contigo...”
“Melhor não...”
“Deixa eu ir contigo !!!”, também levanta-se. Chega bem perto dele.
“Não, tu não pode ir...”, olha para a janela.
“Mas eu quero ir com tu...”, beija-lhe as costas.
“Por favor, não insista !!!”, virando-se para ela e recomeçando a pôr as roupas na mala.
“Eu te amo...”
“Também te amo.”
“Vai não...”
“Desculpa. Mas é o velho que precisa...”
“Depois tu podia voltar...”
“Acho que eu não volto mais não...”
“E nós ?!”, grita.
“Não grita !”
“E eu ?!”
“Arranja outro...”
“Eu não quero outro.”
“Tu arranja fácil. Ainda tá bonitinha, tem uns peitão...”
“Eu só quero tu...”
“Pois vai ter que arranjar outro !”
Os dois se olham. Ela desaba na cama, copiosamente suas lágrimas encharcam a coberta. Sísifo afaga-lhe os cabelos.
“Ô, minha gatinha...”, beija a cabeça da moça, “...vai viver tua vida. Eu gosto de tu de verdade. Amo mesmo. Mas o meu amor por você é tão grande que, não vendo outra situação, só me resta te deixar...”
E começa a sair. Roxanne levanta o rosto e diz:
“Ó, eu vou me matar! Cortar meus punhos...”
“Faça o que tu quiser. Te amo, viu ?!”
Sai, fecha a porta forte. Caminha como se deixando tudo num ralo. Não vira o rosto para ver Roxanne vendo-o partir...

10.

Estavam na mesma rodoviária da cidade grande, mas ainda sim não se viram. Ela embarcou primeiro, Sísifo teve que pedir uma grana emprestada para pagar a passagem.

“Mas as minhas intenções são as mais sinceras...”, diz Jurubeba em mesa de bar.
“Sei, crêdito...”, responde Mané das Marvadas, seu grande amigo.
“É verdade, Mané !”
“Tu fala disto pra todas as suas namoradinhas....”
“Mas com Morena é diferente...”
“Tu também fala disto pra todas as outras...”
“Minha Moreninha é a única que me faz ficar assim...”
“Assim como ?!”
“Com este olhar de,de...”
“Peixe morto. Olhar de peixe morto...”
“É. Desta maneira. Eu num passo um instantinho assim sem pensar na minha morena...”
Mané das Marvadas vira-se para o balcão do bar Legume´s e grita:
“Amarelo, mais uma Pitú !!!”
“Eu num entendo como você pode beber tanto...”
“Nasci pra isto. Você sabe como identificar a melhor branquinha ?!”
“Não.”
“Pede uma Havana pra mim ?!”
Jurubeba faz sinal afirmativo com a cabeça. Havana era a mais cara das cachaças. Mané grita mais uma vez:
“Amarelo, suspende a Pitú !!! Traz uma Havana no capricho, tá ?!”, logo conversa com Jurubeba:
“Tu tá com bufunfa pra pagar uma Havana ?!”
Ele fez sinal negativo com a cabeça.
“Então como é que...”, gaguejou Mané.
“Só pra tu ver. Tava tão aqui, nos pensamentos em Morena, que nem percebi o preço do pedido...”
“Se tu quiser a gente suspende o pedido e...”
“É tarde demais...”, a voz de Amarelo saiu tipo trovão. Ele bate o copo com força na mesa de ferro.
“Não, Mané. Bebe !”, responde Jurubeba.
“Tem certeza, Jurubeba ?!”
“Absoluta...”
“Tá vendo o colarzinho ?! Esta linha curva ?! É só dar uma deitadinha no copo, sem derramar, e voltar a posição original. Taí a curva !”
“Como é que vou fazer pra dobrar aquela velha encruada ?!”
“Quem ?! A Dona Neiva ?!”
“É.”
“Vixe, aquela tá duro de casar...”, e toma de seu trago.
“ A velha só deixa Morena namorar se ela arranjar um homem...”
Mané solta uma risada sarcástica. E diz:
“A encruada ?! Casar ?! Jurubeba, deixa esta menina, desista dela logo... A solteirona num vai casar é mais nunca !”
E grita novamente para a direção oposta:
“Amarelo, agora sim ! Traga aquela Pituzinha que suspendemos !”, voltando a rir.

O casarão já desbotado, uma multidão acompanhava os últimos suspiros do Coronel. Flor Branca estranhou, contudo lembrou-se de Rebento como um vídeo repetitivo. Tudo estava exatamente como antes, a tirar as ferrugens nos coretos e poucas pinturas nos bancos e em algumas casas... Pegou o envelope da última carta mandada pela irmã mais velha. Sua casa de mulher casada era logo ali. Continuou a olhar o movimento daquela estranha casa que as lembranças nublavam. Sabia que sua infância era marcada daquele local, mas não lembrava mais de quê.
Aproximou-se da porta que o endereço lhe indicava. Tocou a campainha. Um rapazinho a atende:
“Sim ?!”
“Aqui é a casa da Do Céu ?!”
“É sim senhora...”
“E ela está ?!”
“Tá sim...”
“Eu poderia falar com ela ?!”
“Entra...”
Flor Branca entra naquela casa. O rapazinho grita por sua mãe. Engolindo seco, Flor passava as mãos nervosamente uma noutra. A imagem de Do Céu a emociona. Fazia anos que não se lembrava da família. Não foi preciso palavras ou explicações. As duas se abraçaram. Lágrimas, inevitáveis.
“Florzinha, a caçula ?! Meu Deus, meu Deus...”, exclamava Do Céu.
Emudeceram, se olhavam, não acreditavam em tal reencontro. Do Céu passa um café e a vida toda pareceu passar por ali. Flor contou tudo sobre si, a irmã só escuta. Com que alegria revia a sua mais nova dos filhos de sua mãe.
“Pai e mãe morreram chamando por você...”, comenta Do Céu.
Flor lacrimeja pouco, diz:
“Papai... Mãe... Meu Deus ! Como pude ter os abandonado...”
“Ora, aconteceu ! Não adianta lamentar. Olha, saiba que, de onde eles estiverem, estarão abençoando este momento... Ai, Flor Branca ! Como eu sonhei em te ver novamente...”
De repente a porta bate. Mas uma vez o rapazinho abre. Do Céu grita:
“Januário, quem é ?!”
Uma outra voz responde:
“Sou eu, Do Céu. Soube que a sumida resolveu regredir. Resolvi conferir...”
Flor Branca se levanta. Está cara a cara com Meíta, sua irmã do meio.

Com que assombro foi recebido Sísifo naquela mansão tão movimentada.
“Mas é o meu menino ?!”
“Negra Nhá ?!”
Os dois driblam os curiosos e se abraçam.
“Pequeno Síssi ! Mas como você ta magrinho ! E, olha só: de barba mal feita... Cristo, meu menino ta um homenzarrão ! Mas venha aqui, dá outro abraço nesta véia preta !”
Realmente Sísifo achou-a bastante velha. Logo perguntou:
“E vovó ?!”
“Ai, menino ! É tanto tempo longe... Tua vó é morta há alguns anos. Agora vai ser o tempo do seu avô Coronel...”
Não disse nada. Deixou-se conduzido pelos braços de Negra Nhá. Subia aquelas escadas de seus passados, os mesmos quadros, fotografias, o cheiro de mofo. Os móveis impecavelmente no mesmíssimo lugar, raros as mudanças. O abajur quebrado, um desenho seu na parede da época de criança... Tudo era particularmente conhecido. Sentiu-se como se absorvendo novidades para sua mente tão vaga pelo esquecimento. Entrou no quarto, lá estava seu avô. Havia uma luz rubra. Uma estante de livros, um criado mudo com uma bacia em cima, um penico embaixo da cama, nela o já moribundo. Do seu lado, sentada com um pano umedecido sob o vestido, uma figura:
“Conhece ainda ?!”, Negra Nhá não sabia para quem dizer aquilo.
A mulher levanta. Gagueja ao dizer:
“Dizem seres meu filho...”
Sísifo achou-a estranha. Contudo havia um distanciado lembrar.
“Não abraças tua mãe ?!”
Manteve-se na mesma posição. Não agiu de forma alguma. Negra Nhá pensou em ajudar:
“Síssi, esta é Diotima. Tua mãe. Ela está curada...”
Nem aquilo fê-lo mexer.
“Não estou bem. Preciso sair. Por favor, não deixem papai sozinho...”, diz a antiga louca.
“Eu te acompanho, Diotima. Agora é o pequeno e o Coronel. Eles precisam tirar os anos de conversas atrasadas. Qualquer coisa é só chamar, viu filho Síssi ?!”
Sísifo abraça Negra Nhá. Continua seu estranho olhar para aquela mulher. Ambas saem.
Então escuta um brando a sussurra-lhe. Aproxima-se do avô e senta-se na cadeira perto da cama.
“Vovô, sou eu...”
“Sísifo ?!”
“Sim, meu avô...”, pega-lhe na mão.
“Ah, meu pequeno Sísifo ! Parece mais homem agora...”
Ele ri. Logo diz:
“Todos nós envelhecemos...”
“Continua muito bonito...”
“Agradecido fico, meu avô...”
“Como me é agradável te olhar...”
Sísifo engole um seco. Observa mais uma vez o quarto. Da janela aberta, uma borboleta noturna parecia procurar um alimento. Suas asas são negras, um negro sem igual visão. Ela sobrevoa o local, pousa em cima duma Bíblia aberta. Perto há um vaso com flores e um pequeno baú. A borboleta anda por aqueles versículos, deixa alastrar uma poeirinha de cor amarelada. O avô olha-o como um apaixonado, um enfeitiçado na expectativa de dizer uma prece...
“Sabes que vou morrer...”, diz.
Sísifo nada fala. Não queria causar engano para tal moribundo.
“Ah... Está me faltando os últimos ares. Nada vejo. Cristo, compadeça-me desta hora...”
O neto prefere o silêncio. Queria mais ouvir que falar. Aquilo parecia agradâ-lo mais. Sentia que o Coronel precisava desabafar.
“Sísifo, carregaste a pedra da vida por toda a sua eternidade. Ela parece de um peso constante, nunca tem fim o martírio. Viver é carregar a eterna pedra de Sísifo. Foi o que eu entendi de Camus na minha vida toda. A Filosofia é também uma pedra. Platão, Descartes, Spinoza, Nietzsche... Todos este são pedras que devem ser levadas e novamente trazidas. Mas eu não sei o que isto tem a ver com isto...”, esmiúça um riso, “...Perdão a esclerose insana. Deve ser o mal de quem está por morrer. Sísifo, querido meu... Não sabes o quanto me orgulho de tê-lo. Queria estar moribundo para somente te dizer isto... Tua mãe, ah tua mãe... Foste o mais belo favo do algodão já existente. Como odiar um fruto dela ?! E tu parecia prodigiar um futuro tão maravilhoso, sempre dedicado a ler... Qual foi o primeiro livro que abordeio-o lendo ?!”
Parecia forçar ar para dizer tão epílogo.
As Aventuras de Tom Sawyer...”, respondeu Sísifo.
“Claro. Twain aos... Seis anos, certo ?! Ai, ai... Vivias cercado de Horácio, Sófocles, La Fontaine, Monteiro Lobato... Prodígio aos extremos...”
“Não force muito, vovô...”
“Chama-me de novo disto...”
“Vovô...”
“Nunca me chamavas de avô. Era somente Coronel...”
“É verdade...”
“Já disse que me orgulho de você ?!”
“Agora a pouco...”
“Sinto um descompasso no coração. Como se ele estivesse fadando... Não pareço ter mais tempo. Tenho algo a te revelar...”
“Sim...”, diz isto aproximando o rosto da boca do avô. Quase não o ouvia direito.
“Tenho algo para te passar. Um anel que atravessa gerações. Meu avô comprou-o numa viagem para as Índias. Há uma lenda nele. Diz que somente deve ser dado à amada de seu dono. Parece que nenhum de nós tivemos este privilégio por enquanto. Nem meu avô amava tanto minha avó, nem eu amei como se devia amar a Amorosa... Minha missão é passá-lo. Prometa-me manter esta história. Ou você entrega-o para seu grande amor ou então o guarda para entregar para o seu neto, a sexta geração desta desgraçada sina...”
Sísifo afasta o rosto dele. Pareceu refletir por instante.
“Promete ?!”, o Coronel já faz um cego esforço.
“Onde está o anel ?!”
“Promete ?!”
“Prometo. Cadê o anel ?!”
“Ai, não posso... não posso falhar... O anel, o anel está no...”, tenta apontar. Os olhos não brilham mais, não há mais suspiro ou sopro na sua boca, o Coronel nada mais sente. A morte lhe repousa os braços.
Sísifo, sem mais nada a fazer, fecha as pupilas do avô morto. Então levanta, põe as mãos do Coronel em posição de morte, olha-o pela última vez e desce para dar notícias...

“Meíta... Você não mudou nada...”, exclama Flor Branca antes de se levantar.
“Que milagre faz aqui ?!”
“Resolvi dar uma nova chance a minha vida...”
“E por quê ?! Não deu certo a sua outra vida ?!”
Flor Branca respirou mais fundo ainda. Respondeu :
“Certo, não sei... Consegui quase tudo aquilo que muitas pessoas desejam. Vim aqui preencher meus vazios...”
“Vazios ?!”
“Sim, Meíta. Vazios. Por mais tolos que sejam...”, olha para a janela.
“Como quais ?!”
“Que movimento é aquele ?!”
“Ah, é o Coronel Androceu que falece. Se é que já não é morto...”
“Coronel Androceu ?!”
Do Céu aproxima-se da porta. Diz:
“É, o Coronel. Ele andava bastante adoentado fazia tempos. Você costumava brincar com o neto dele, não lembra ?! Só não me recordo o nome do menino...”
Antes que Flor Branca pudesse puxar pela memória, Meíta interfere :
“Sim, menina, não disse por quê resolveu aparecer assim, feito alma penada ?! Sabe por quanto tempo nossos pais aguardaram notícias suas ?! Não tem um tanto de compaixão ?!”
“Meíta, vamos parar...”, Do Céu tenta apartar, “...Flor deve de ter tido os seus motivos. E isto não nos diz respeito. O que é mais importante é que ela retornou...”
“Bem, bem... Eu realmente tenho um motivo que me fez voltar aqui para Rebento...”, diz Flor. Meíta logo indaga :
“E qual foi ?!”
“Como já lhe disse, precisava preencher vazios. Abandonei um trabalho de sucesso, um noivo de futuro, uma vida na cidade grande... Abandonei tudo por algo que realmente acredito e quero pregar aqui.”
“E qual é o desatino ?!”
“Desatino ?! Talvez até seja...”
As duas irmãs mais velhas aguardam com emoção aquela previsão de Flor Branca. Sentiam o coração bater trincado, queria o segredo como dálias num jardim seco de mimos...
“Resolvi que vou criar abelhas.”, diz Flor.
“Como ?!”, pergunta Meíta. Do Céu apenas ouve.
“Vou investir na apicultura, vou colher e comercializar mel. Já estudei e vi que Rebento é bastante propício para fazendas de abelhas. Tenho umas economias, aplicarei tudo na compra de aparelhos e contratação de funcionários...”
“Endoidou...”, comenta Meíta.
“Pois eu apoio à menina. Ela sempre fora fascinada por abelhas. Comum que seguisse tal sina...”, contrapõe Do Céu.
Flor olha a janela novamente.
“Um caixão está chegando no casarão...”, comenta, “...O Coronel já deve ter morrido...”
Meíta caminha em direção a porta. Logo branda:
“Pois de minha parte você não pode confiar um vintém de ajuda, tamos entendidos ?!”
Sai apressadamente, batendo forte a portinhola. Pareceu exclamar um “parece doida, Cristo !” bem baixinho, porém audível para todos.
“Não ligue para a Meíta. Ela sempre foi assim...”, fala Do Céu.
Flor observa pela terceira vez a visão que os vidros da janela a ofertavam. Coronel Androceu, seu neto... Aquilo soava bastante distante, como um eco, mas sentiu-se muito próxima daquela recitação tão antiga.

Sísifo resolveu sair um pouco daquela muvuca. Acendeu um cigarro e sentou-se na calçada. Lá recebeu algumas condolências, nem todos o reconheciam. A casa enchia de curiosos, o médico veio dar o laudo, o padre a extremunção. O corpo ainda a de ser lavado, vestido com pompas militares, talvez o enterrassem noutro cemitério que não aquele modesto de Rebento. O homem pensou nas últimas palavras de seu avô, entregar o anel para o amor de sua vida... Pensou em Roxanne. Será que já o esqueceu ?! Ou dorme com outro, fuça a comida noutra panela, cheira outras golas de camisa ?! Pensou em Roxanne com uma ternura de quem dispensou algo, não era tamanho amor... Sentia que ainda encontraria aquilo que jamais perdeu. Não sabia o que era, talvez um devaneio. Sentiu a fumaça entrar pelos pulmões, soltou o mais brando dos ares. Fez círculos, brincou com o cigarro. Este acabou, acendeu o último do maço. Observou a praça e seu movimento chulo, os bancos com namorados vis, uma árvore por deteriorar, quis um copo de qualquer merda apenas para esquecer as pedras que levaria, como os ditames do Coronel profetizavam.

“É sabido a morte do Coronel !”, alguém pronuncia em alto tom no Legume´s.
Mané das Marvadas vira-se para Jurubeba e diz :
“Pois eu bebo por ele !”
“Ué, eu não sabia que tu conhecia o Coronel...”
“E não conheço. Mas todo morto merece a sua água digna. Deus compadeça da alma deste bravo homem...”, pede um brinde geral. Poucos o acompanham, nenhum diz palavras de homenagem. Mané bebe a aguardente rapidamente.
“Tu inventa qualquer coisa pra beber mais...”, exclama Jurubeba.
“Amarelo, mais uma destas...”, sua voz já embolava. Fato raro para tal bebum.
“Ah, não ! Nós vamos é pra casa. Tu tem mulher e filhos...”, grita para o lado oposto, “... Amarelo, suspende ! E pendura esta rodada...”
Jurubeba ajuda Mané a se levantar. Segura-o pela cintura e começam a via-crúcis de quem bebe. Caminham e veem ao longe os carros que param e as pessoas que entram no casarão do Coronel. Há uma figura que fuma um cigarro descompromissadamente. Não sabiam quem era. Logo escutam uma terna voz:
“Querem ajuda ?!”, era Morena.
“Oh, minha nêga... Deusa do ébano, meu doce amor...”
Ela faz algum sinal com a cabeça, como se dissesse que havia alguém entre eles naquele momento.
“Como ?! Ah, o Mané ! Fique tranqüila, meu bem ! O Mané é meu grande amigo e confidente. Não há segredos entre nós...”
“A Morena mais morena !”, diz Mané naquele urrar de bêbado,”...Este caboclo aqui é doido de amores por sua figura. Pensa em casamento e tudo...”
“Cala-te, Mané !”, ordena Jurubeba.
“Sim, mas eu posso ajudar ?!”, pede novamente a moça.
“Não é risco demais ?!”
“Risco, num sei... Mas a madrinha tá lá no velório do Coronel. Acho que ela só sai de lá quando o sol raiar. Ela adora velórios...”
Morena pega o bêbado do outro lado de seu corpo e conduze-o até a sua casa. Chagam no casebre, é inevitável não acordar a esposa de Mané. Os três colocam-no na cama. Jurubeba e Morena saem. No caminho, comentam:
“Tu é doida mesmo...”
“Tinha que inventar um motivo pra te ver...”
“Mesmo assim. È risco demais. E se a Dona Neiva te pega ?!”
“Vai dizer que tu não gostou ?!”
O rapaz a entrelaça pela cintura.
“Oxi, se eu gostei ?! Acaso perguntam ao luar o porquê de seu brilho ?!”
“Ai, Jurubeba ! Fico toda arrepiada quando tu fala deste jeito tão poeta...”
Antes que os dois se beijassem, começa a cair uma chuva. Um lacrimejar de nuvens, gotas sublimes empapavam o vestido de Morena, deixando-o justo. Jurubeba propõe uma guarita no barraco dele, próximo dali a alguns metros.
“Não é decente moça de família ir pra casa do namorado sozinha...”, ela diz.
“E nós vamos ficar ensopados aqui ?! Tá querendo pegar uma gripe, é ?!”
Ela concordou com o último argumento de Jurubeba e acabaram por ir. A chuva torna-se tempestade. Entram no pequeno conjugado, um sofá-cama, uma mesa bagunçada com pedaços de biscoitos e frutas mordidas. Papéis remexidos, uma vitrola...
“Ai, uma vitrola !!”, saltitante Morena avança.
“É, bota um sonzinho aí para a gente ?!”
Morena mexe nos poucos discos ali existentes.
“Ai, não tem nada bom...”
“Como não, meu doce ?! Olha, tem um aqui do Roberto Carlos que é bala...”
Então ele liga a vitrola e começa a música :
Eu quero ser sua canção, quero ser seu tom
Me esfregar na sua boca, ser o seu batom.
..”
“Então, não é bom ?!”
“Você não tem nenhum do Bon Jovi aí ?!”
“Como é que tu prefere estes estrangeirados ao invés do Rei ?!”
“Nem um Michael Jackson ?!”
“Ouça o romantismo de Roberto. Talvez esta seja melhor...”
Põe outra faixa:
“Eu te proponho,nós nos amarmos
Nos entregarmos...”

“É, é bonitinha...”, diz Morena. Logo sentando-se na cadeira.
“Tu não quer tirar este vestido ?! Olha, tá todo molhado...”
“Tá doido, é ?! Seu safadinho...”, levanta-se e caminha para a veneziana.
“Ai, esta chuva que não passa...”
“Ué, tá preocupada com o quê ?! Não tá gostando da companhia não ?!”, e vai dar um cheiro no cangote de Morena.
“Sai, Jurubeba ! Eu sei de tuas intenções. Mas isto só vai acontecer depois de nós casar. É só a chuva passar e eu volto lá pro velório...”
Jurubeba olha o céu. Proclama
“Não é te desanimando não, mas esta chuva parece que só vai passar pela manhã...”
“Não diz isto nem por brincadeira ! Se a madrinha não me ver logo, vai dizer é coisa comigo...”
“Vem cá, minha Morena !”, ela aproxima-se dele. Jurubeba abraça-a. “...Tudo vai ficar bem. Tu parece cansada. Vamos dormir, viu ?!”
“Na mesma cama não !”
“Mas só tem uma cama ! Ou melhor, um sofá-cama...”
“Então eu não durmo...”
“Não, minha flor de candura ! Você dorme no sofá-cama e eu improviso aqui...”
“Mas não precisa, meu docinho... Eu num tô cansada. Vou ficar acordada até a chuva passar...”
“Eu tô lhe dizendo que esta chuva vai durar madrugada toda. Dorme aqui, vem !”
Jurubeba arma o sofá-cama. Pega cobertores e travesseiros. Um deles ele estende no chão e lá deita.
“Pode vir, minha morena ! Tu vai é dormir feito princesa...”
“Tu vai dormir nesta coberta estendida no chão ?!”
“Ah, eu já dormir em lugares piores...”
“Mas, meu neguinho...”
“Sem mais, Morena ! Pode dormir, vixi ! Ô, ô...”, e deita-se na coberta, “...Tá a maior gostosura aqui !”
Então Morena se deita no sofá-cama. Realmente estava cansada.

Um toró cobre os céus negros e encharcam os paralelepípedos das ruas de Rebento. Mesmo assim o velório seguia-se cheio, figuras ilustres e pessoas do cotidiano misturavam-se no ver a última imagem do Coronel. Claro que muitos iam para beliscar dos petiscos que Negra Nhá servia aos convidados. Num canto da sala vê-se Meíta e Dona Neiva :
“Saliência desta pequena em retornar depois destes anos todos...”, diz Meíta entre um bolinho e outro.
“Que pequena ?!”
“Flor Branca, minha irmão caçula...”
“E ela tá de retorno ?!”
“E não foi o que eu te disse ?! Voltou com a cara mais cínica do mundo, só se vendo...”
“E voltou por quê ?!”
“Disse que veio preencher vazios. Mas eu sei o que ela quer encher...”
“E é o quê ?!”
“Os bolsos ! Provavelmente veio pra buscar a parte dela na fazenda...”
“Ué, mas não é dela ?!”
“Bem, é. Mas voltar só pra isto, depois que papai e mamãe morreram...”
“Tu tem razão. Peraí, cadê Morena ?!”
“Hum, tem mãe que é cega...”, alongando o tom na última sílaba.
“Como ?!”
“Nada não...”
“A chuva tá forte, né ?!”
“Agora é que tá...”
“Ela disse que ia na casa da Carmina, filha da Iáiá...”
“Sei...”, e põe os lábios na borda da xícara.

“Ô, Jurubeba, tu tá acordado...”, exclama Morena.
“Hum, tô...”
“A chuva tá mais forte, né ?!”
“Num te disse ?!”
“Como é que tu tá conseguindo dormir neste chão gelado...”
“Não se preocupa não, minha flor...”
“Ei...”
“Fala...”
“Se eu fizer uma coisa tu promete de ser bem comportadinho ?!”
“Prometo.”
“Promete mesmo ?!”
“Pela alma de minha mãezinha morta...”
“Assim, se tu quiser dormir aqui comigo...”
Ele logo se levanta.
“Mas num pode bulir neu...”
“Tudo bem, minha sementinha de maracujá fresco...”
Jurubeba deita-se ao lado dela. Procura a melhor posição. Finalmente se acomoda:
“Assim tá bom, Moreninha ?!”, pergunta.
“Tá, tá ótimo...”

Flor Branca observa a chuva de sua janela, num confortável quarto alojado por Do Céu. Não conseguia dormir, espalhado por sua cama alguns folhetos e apostilas sobre apicultura. Pensou em acender um cigarro, mas havia decidido parar de fumar. Uma jarra no criado mudo, refrescou-se de água. “Coronel Androceu...o neto...”, pensava em gaguejo.

Sísifo não queria ver toda aquela gente. Logo que começou a chover, procuro abrigo e solidão no quarto que Negra Nhá havia lhe destinado. Não tinha mais cigarros. Desceu até o escritório e pegou alguns charutos. Não gostava de charutos, mas o que faria ?! Também olhou a chuva bater nos vidros da janela. Lembrou-se da infância sem nomes ou pessoas, saudou-se como se vivesse num eterno breu, onde fisionomias e imagens não importavam para tal vivência. Deitou-se na cama, pensou nas palavras do avô e no tal anel...

11.

Passaram-se alguns dias e Flor Branca estava a todo vapor para a concretização de seus sonhos. Calculou custos, contratou especialistas e pessoas dispostas ao trabalho, comprou os avançados modernos... Queria contar com as melhores condições para a produção do mel de abelha mais puro e saboroso que se podia imaginar... Uma de suas funcionárias ia ser Morena. Tendo inclusive o incentivo de Dona Neiva. Era um grande salto para a menina que não queria viver do cozer docinho e enfeites de casamento.
Só havia um empecilho para tudo se realizar: o pequeno terreno que Flor herdou era bastante micro para as idealizações do negócio. Com as terras divididas em quatro, pouco rentáveis seria usar apenas um quarto de um local com bastante potência para tal investimento. Fortunato já era falecido e sem família, fazendo de Do Céu, a mais velha, proprietária de metade da antiga fazenda.
Numa conversa informal de cozinha, Flor Branca entre papéis e calculadoras...
“Hum... O tamanho do terreno é pouco, mas dá inicialmente. O problema será quando expandirmos os negócios...”
“Flor, minha irmã, eu estive conversando com meu esposo e...”
“Cristo ! Olha quanto vai me custar às mãos de obra ?!”
“Flor Branca !”
“Hã ?!”
“Presta atenção... Eu conversei com o Bamba e nós decidimos que vamos doar minha parte pra você...”
“Parte ?!”
“Do terreno...”
“Não, Do Céu !”
“E por quê não ?!”
“Ora, a parte é tua...”
“Por isso mesmo. Faço dela o que quiser. E eu quero passá-la pra você...”
“Ai, minha irmã... Não seria justo...”
“Eu acredito no seu trabalho. Papai e mamãe estão orgulhosos de você...”
“Poxa...”, e abraça a irmã, “... Agradeço o incentivo e as suas palavras. Mesmo assim ainda não seria justo.”
“Mas por quê ?!”
“Que lucro você teria me dando sua parte na fazenda ?!”
“Ora, eu não ligo para dinheiro. Eu e meu marido já temos como viver. Nossos filhos já estão feitos na vida, só faltando o Elivelton. Agora só quero ver você crescer...”
“Fico até emocionada. Mas eu ainda não acho... Peraí, eu tô tendo uma idéia...”
“Ai, ai, qual é ?! Não faça nada que possa lhe prejudicar...”
“Vou te pôr como sócia !”
“Sócia ?!”
“Sim, seremos donas. E dividiremos os lucros...”
“Mas eu já disse que não quero...”
“Só aceito se for assim... Então, topas ser minha sócia ?!”
“Tenho outra alternativa, sua teimosa ?!”
E as duas se abraçam mais uma vez.

Sísifo vivia escondido dentro daquele casarão. Queria porque queria resolver o enigma do avô. Onde estaria aquele maldito anel ?! Fuçava a casa toda, procurava nos mais obscuros cantos, nas passagens secretas... No grande cofre (ao qual sabia a combinação desde moleque, de tanto ver o Coronel abrir e fechá-lo.), apenas notas de cruzeiros envelhecidas e alguns dólares ainda válidos, fotos e uma garrafa de vinho... A mãe, que parecia tão bem, retornou à sua loucura interna. Sísifo resolveu então interná-la, pelo bem da casa e da própria. Negra Nhá era deixada de lado aos poucos. Contudo jurou morrer naquele casarão. Também pensava no bem estar do seu amo-de-leite. Cuidaria dele até quando houvesse forças nas suas pernas. Dia e noite, era a rotina de Sísifo pensar nas palavras finais de seu avô, tentando achar nelas alguma pista que decifrasse o sumiço da jóia. Nem tanto pelo valor do objeto, mas sentia que estava ali a solução do vazio que tanto o atormentava. Dá-lo ao seu grande amor, seria isto o fim de suas infelicidades ?!

Nada mudou para Zenóbio. Continuava a chegar muito cedo para abrir a farmácia, dava reclamações para os atrasos dos funcionários, subia para o escritório improvisado e ligava a vitrola naquela mesma faixa fúnebre, quase não almoçava, observava e chorava por aquele retrato, o cuco lhe indicava a hora de fechar e, segundo dizem, andava vagando pelas ruas de Rebento. Parecia manter os velhos hábitos de quando boêmio, onde dormir era a única possibilidade de deixar de ser feliz no hoje. Mas o seu “zumbinismo” desta vez era patológico, sem amores dados ou o chorar de seu cavaco de ouro. Era um sonambulismo maléfico, que o deixava feio e monstruoso. Não mais se barbeava, nem escovava os dentes, os cabelos despenteados, uma completa falta de vaidades e higiene. Sempre o mesmo terno marrom, descosturado na bainha e em algumas outras partes, mofado e velho. Quem o via duvidava que num passado havia sido o mais folião dos carnavais, o mais amante das primaveras, o mais vivo dentre as pessoas daquele lugar... Apático e infeliz, Zenóbio despede-se dos funcionários sem sinal algum, fecha as portas e põe o molho de chaves no bolso empoeirado. Caminhava litúrgico pela praça, na procura de nada, nenhuma cura, nada enfim que o fizesse ter missões da vida. Andava e andava, contudo e ao contrário do que todos imaginavam, ele tinha uma finalidade nesta procissão a só: todos os dias, chovia ou não, ia visitar o jazigo onde estava enterrada sua Anja Maria. Não levava flores, apenas lágrimas e saudades. Dormia lá mesmo, num segredo dele e de seu Tico, o coveiro.

Sem pompas, num clima ameno e com um pouco mais de trinta funcionários, a “Distribuidora de Mel Flor do Céu Ltda.” começava a sua produção. Aos poucos, os débitos tornaram-se lucros e parte do que fora investido já havia entrado em caixa. Contaram com a sorte de ter uma posição propícia, as abelhas sempre fartas, as colméias bem formadas. Em tempo a fábrica já era um sucesso e o mel vendia como ouro. Para surpresa até de Flor Branca, que não contava com tamanha cena.
Morena prometia ser uma funcionária de ascenção declarada. Todos admiravam a competência da moça, inclusive Flor, que já mantinha uma grande amizade com ela. Ela administrava a linha de produção com a serenidade ímpar de quem tinha uma gama de experiência. E ela era uma garota de um pouco mais de vinte anos, não sabia de taxas ou regras administrativas. Tudo era instintivo, inato. Tinha pulso para lidar com problemas que eventualmente ocorreriam, coordenava maturamente as finanças e sabia, como que por encanto, entregar fichários e listas de como a produção lucrava ou não.
Morena sentia que nascera para aquilo, assim como sentia os primeiros enjôos...

12.

Todo aquele clima de morbidez, uma escuridão digna de cavernas, Sísifo não permitia abrir cortinas ou colocar flores em vasos. Pelo menos no escritório, seu habitat atual. Negra Nhá controlava aquela casa com todo o amor que sentia no seu frágil coração quase centenário. Não tinha família consangüínea, era viúva de tempos e o único filho era morto desde os tempos da guerra. Andava arrastado, sabia de cor todas as receitas, faxinava com disposição mor, contudo débil na agilidade de seus braços e pernas. Sentia que não demoraria em morrer, advertia Sísifo:
“Meu filho, você é ainda novo. E bonito, como você é bonito...”
“Sim ?!”
“Tu devia de procurar uma esposa, ter filhos. Não é nada bom te ver assim, todo sozinho...”
“Ora, Negra Nhá, me deixe !”
“Enquanto tua negra estiver cá, tu pode contar com tudo. Mas eu não sou eterna, morrerei. E logo...”
A profecia de Negra Nhá doía-lhe no pensar futuros. E aquele anel ?! Ainda se achasse o anel, se tivesse certezas... Teria Roxanne já o esquecido ?!
“Por quê que tu não dá uma saída ?! Deve de ter umas meninas felícitas em lhe ver...”, retorna ao assunto Negra Nhá.
“Não me interesso por garota alguma. Quero apenas ficar recluso no meu canto, dá pra entender ?!”, responde.
Então Negra Nhá saia. E Sísifo pensava cada vez mais no anel e no pedido do falecido avô...

Mané das Marvadas e Jurubeba discutiam numa mesa de bar.
“Eu não sei mais o que fazer, Mané...”
“Ora, vamos beber !”
“Eu falo sério. Poxa, eu constituir matrimônio com Morena...”
“Tu fala umas coisas bonitas. Constituir matrimônio...”
“É hipérbole...”
“É o quê ?!”
“Deixa pra lá.... Agora, como é que eu vou vencer a bicuinha da Dona Neiva ?! Logo a mais solteirona da cidade, quiçá do mundo... Num tem homem nenhum que vai querer aquela velha bigoduda...”
“Olha como tu fala da tua sogrinha...”
“E eu tô mentindo ?!”
“Pior que não. È mais fácil o mar virar sertão que esta velha desencrunhar...”

Dona Neiva está no oratório de sua casa. Dentre todos os santos, o mais enfeitado é com certeza o Santo Antônio. Aos seus pés, lírios e flores amarelas, fitas coloridas, velas de sete dias, lâmpadas de variadas cores. Umas três ou quatro vezes por dia ela interrompia seus afazeres para começar suas ladainhas e pedidos. Quando era novena do santo, este ritual se multiplicava. Recebia a imagem da igreja, que percorria as casas dos fiéis todos os anos, com festa e comilança gratuita. Era uma estátua enorme, ficava quinze dias na sua residência. E durante isto, era reza e cânticos pelo dia a fora...
“Ai, meu santo glorioso...”, começa, “...Por quê que tu não me atende ?! Há quantos anos eu tô aqui, sempre mantendo a fé, lhe sendo fiel ?! Por acaso erro em algo ?! Sim, me diga: erro nalguma coisa ?! Cadê o meu amado, meu doce homem que virá num cavalo branco e me tirará desta cidadezinha de merda ?!... Ai, perdão, meu santinho !... Que dia meu dia chegará ?! Até quando sofrerei por não ser possuída por uma voz qualquer, um roçar de barba no meu rosto, um toque viril em minhas coxas... Perdão novamente ! Terei que morrer sozinha, encruada e no imenso caritó ?! Será este ano ?! Oh, meu Antônio santo, prometo que, se eu arranjar um marido pra logo, darei pão para todos os mendigos da cidade, prometo mandar pintar a capela e acenderei uma vela do tamanho de minha Antônia em seu louvor...”
Aí ela pára, senão a massa do bolo desanda...

“Não pode ser...”
“Não pode ser o quê, Morena ?!”
“Ai, Flor Branca, nem vi que você estava aí...”
“Sim, mas o quê é que te aflige ?!”
“É que eu tô com umas suspeitas...”
“Isto é um teste de gravidez, não é ?!”
Mudez por parte de Morena. Flor insiste:
“É um deste teste de farmácia, estou certa ?!”
Ela confirma com a cabeça :
“Estou perdida, Flor...”
“O quê deu o teste ?!”
“Tá marcando rosa. E rosa é positivo...”
“Positivo, tem certeza ?!”
“Absolutamente. Fiz o que foi pedido: urina, mergulhar papelzinho, esperar uma hora, comparar com as cores da caixa e o treco deu rosa...”
“E rosa é positivo...”
“È. Eu tô perdida...”
“Mas você não pode só confiar em teste de farmácia. Tem que marcar exame no posto de saúde. Aí sim é que é confiável...”
“Ai, eu não sei mais o que fazer. Só o fato deu ter a possibilidade de estar grávida, já me dá uns troços no estômago...”
“Você tem mantido relações com seu parceiro ?”
“Só uma vez. No dia do velório do Coronel, quando caiu aquele toró...”
“Bom, fica calma. Vá lá pro posto e marque o exame. Aí depois vamos pensar no que fazer...”

13.

Foi durante o sono que o Coronel revelou-se para Sísifo, assim como um dantesco fantasma macbethiano. Uma estranha noite de calor, um zéfiro tão outonal e tão frio, os galhos arranhavam os vitrais, as folhas desfaleciam. A lua revelara-se gris, cinzenta quão fumaça, não havia nuvens. Algumas estrelas, poucas, insuficientes para formar constelações. Nem era preciso contá-las. Sísifo dormia de short, encoberto, tinha uma jarra de água na cabeceira. Ouviu uma voz a chamá-lo. Pensando ser Negra Nhá o incomodando, não chegou a abrir os olhos. Houve insistência, precisou despertar:
“Quem é ?! Quem está aí ?!”
Não houve resposta. Pegou a jarra e pôs água num copo. Bebeu-a de vez. A velha cadeira de balanço rangeu...
“Meu Deus, o que é isto ?!”, perguntou-se alto.
E foi naquele instante que o viu. Estava trajando um velho fardão de guerra cheio de medalhas. Sua voz resoava trovões:
“Sísifo, meu neto...”
“Vô ?! É o senhor ?!”
O fantasma não respondeu.
“É o senhor ?!”, insistiu.
“Digo-lhe que a busca do anel é vã...”
“Como assim ?! Foi o senhor mesmo que...”
“Mas não será trancafiado em casa que o achará !”
“Então o anel está no lado de fora da casa ?!”
“Isto eu já não posso lhe dizer. Ou melhor, eu já lhe indiquei onde ele está...”
“Não compreendo. Fui o último a falar com o senhor e não me lembro do senhor ter... Vô, Coronel ?!”
O espectro havia sumido no meio de seu diálogo. Negra Nhá aparece no quarto:
“Menino, falava com quem ?!”
“Negra Nhá ?! Ah, falava com o meu... Deixa pra lá, deixa pra lá...”
“Tu quer um chá de erva-cidreira pra dormir ?!”
“Ah, seria ótimo...”
Acompanha, com os olhos, a negra sair. Sentou-se na cama e passou a mão pela testa suada. Indagou-se pela afirmação do Coronel: lembrava da última conversa com o avô. Não lhe vinha na cabeça nada que pudesse ser indício do esconderijo do anel. E por que ser vão a procura na casa ?!

Morena chegou desanimadamente à fábrica e posicionou-se na cadeira de seu ofício. Flor Branca percebeu tamanha apatia:
“Fez o exame ?!”
Ela afirma com a cabeça.
“E ?! Deu o quê ?!”, continua Flor.
“Ai, me abraça...”
Morena se levanta e as duas se abraçam.
“Você está grávida ?!”, pergunta Flor.
“Tô...”
“E o pai sabe ?!”
“Ainda não...”
“Mas você pensa em contar, né ?!”
“Sim. O Jurubeba vai adorar, ele tá louco pra casar comigo...”
“E então ?!”
“È a madrinha. Não sei como ela vai reagir quando souber. Aliás, eu sei sim...”
“A Dona Neiva ?! O que ela tem a ver com isto ?!”
“Não lembra que eu te disse que ela só quer que eu case depois dela ?! Pois então... Agora ela vai achar que eu fui incrédula à suas ordens...”
“Bem, a única opção que você tem é torcer para ela se casar logo...”
“Não me faça rir. Não queria falar assim da madrinha, mas é difícil ela arranjar marido ao logo do campeonato... Ela tá velha demais, ninguém irá querê-la mais...”
“Então você vai ter que assumir tudo o que fez e...”
“Não, isto não ! Nunca !”
Morena senta e Flor vai pegar um calmante em sua bolsa.
“Toma. Isto vai lhe fazer bem...”, dando-lhe um copo de água junto ao comprimido.
“Hoje eu vou ter que passar na farmácia e contar pro Jurubeba. Vamos ver o que iremos fazer...”, diz tomando o calmante.
“Espera aí, Morena... Estou tendo uma idéia...”
“Idéia ?!”
“É meio doida, mas quem sabe...”
“Topo tudo ! Me diz o que é...”
“Tua madrinha só aceita um casamento teu depois do dela, certo ?!”
“É, isto eu já lhe havia dito...”
“Pois eu acho que conheço o par ideal para ela...”
“Quem é ?! Eu conheço ?! É solteiro ?!”
“Viúvo, viúvo...”, repetia Flor Branca.

Naquele dia Sísifo pediu para Negra Nhá passar sua melhor camisa. Resolveu dar uma volta pela pracinha. Fez a barba, perfumou-se. Saiu e logo sentiu o ar puro, o vento, a poeira a entrar-lhe nas vistas... Passou na mercearia e comprou cigarros e a gazeta municipal. Parou num banco e sentou. Quando estava começando a ler, apareceu-lhe uma menina. Não devia ter oito anos, loirinha de cachinhos, vestido vermelho de estampas, segurava um vestido. Disse-lhe um oi cabisbaixo. Ele respondeu ao cumprimento e perguntou por seu nome...
“O senhor procura algo ?!”, ela perguntou.
“Como ?!”
“O senhor tá com uma cara de que tá procurando alguma coisa...”
“Ah, estou ?!”
“É, está !”
“Você me lembra alguém...”
“Alguém ?!”
“É, uma pessoa que nunca devia esquecer. E eu não a esqueci, só não a vejo claramente em minhas lembranças...”
“É alguém que você devia lembrar ?!”
“Creio que sim...”
“E é pra esta pessoa que você devia dar o que você procura ?!”
“Como você sabe que estou procurando algo ?!”
“Eu não sei ! Só lhe disse que você tá com cara de quem procura algo...”
Ele calou-se. Parecia querer decifrar os olhos da garotinha.
“O senhor sabe qual é o meu nome ?!”, perguntou a menina.
“Eu havia lhe perguntado isto...”
“É Ofélia.”
“Ofélia... Bonito nome...”
“Minha mãe pegou o nome duma tragédia de Shakespeare...”
“Nossa, você já conhece Shakespeare ?!”
“Hamlet !”
“É, você está certa ! Ofélia é um personagem de Hamlet...”
“Um amiguinho meu está lendo a obra para mim...”
“Um amiguinho ?!”
“O melhor. Ele me mostra um montão de coisas que eu não conheço...”
“É ?!”
“É ! E eu mostro umas coisa pra ele também...”
“Tipo o quê ?!”
“Como subir em árvores, roubar manga do vizinho, matar lagartixa... O garoto não sabia nem como uma aranha construía uma teia, pode ?!”
“Não pode mesmo...”
“Ele me prometeu me dar uma coisa...”
“É ?! E o quê ?!”
“Um anel...”
“Um anel ?!”
“Ele faz uma cara tipo a tua...”
“Que tipo ?!”
“Esta de quem está procurando alguma coisa...”
Sísifo fica quieto mais uma vez. Não entende nada daquilo. Logo diz:
“Eu estou procurando algo...”
“Sabia. E o que é ?!”
“Curiosamente é um anel...”
“E o senhor vai dá-lo a alguém ?!”
“Não sei...”
“Se o senhor não quiser o anel ou não dá-lo a alguém, o senhor me dá ?!”
“Dou, prometo...”
“O senhor gosta de olhar pro céu ?!”
“Gostava mais quando era criança...”
“E o senhor não é mais criança não ?!”
“Infelizmente não...”
“E a pessoa que parece comigo e o senhor não se lembra mais, é criança ?!”
“Creio que é.”
“O senhor gosta de olhar o sol ?!”
“É difícil olhar o sol...”
“É mesmo. Não consigo olhar pra ele. E quando olho fica umas luzinhas redondas no meu olho... É gozado !”
“Realmente é...”
“Onde é que tá o anel que o senhor procura ?!”
“Eu não sei. Ainda o procuro...”
“Será que não está no céu ?! Ou no sol ?!”
“Acho que não...”
“Como sabe ?! O senhor disse que não olha mais pro céu e que é difícil olhar pro sol... Quem sabe esteja lá em cima...”, e aponta para o céu.
Quando a menina apontou, deu-lhe um estalo. Lembrou-se que o avô fazia um esforço para apontar algo no quarto. Seria isto ?! Enquanto se indagava, a menina lhe diz:
“Agora tenho que ir...”
“Ah, tchau Ofélia !”
“Não vá esquecer a sua promessa...”
“Certo. O anel será seu...”
“Sei não, mas acho que este anel já tem uma dona, em algum canto...”
A garotinha sai correndo, logo sumindo. O sol brilhou mais forte naquele momento, como se quisesse esconder alguma coisa... Então Sísifo, sem qualquer medo, levantou-se e sorrindo já sabia que o enigma estava tendo um breve desfecho.

Foi com ironia e espanto que Morena escutou aquele nome. Pensou num surto repentino que a amiga pudesse estar tendo, só poderia ser um delírio aquela sugestão...
“O Seu Zenóbio ?!”, repetia.
“E por que não ?!”, respondeu Flor Branca.
“Bem, ele é um... Você sabe o que dizem dele ?!”
“Já ouvi...”
“Então ?!”
“Ora, Morena, ele é o único solteiro em idade de casar com sua madrinha...”
“Pois eu já sei qual vai ser a resposta dela: “O zumbi ?! Nunca !!!!”...”
“Mas foi você mesma que disse que topava tudo...”
“Sim, mas eu não sabia que fosse uma idéia tão loucamente absurda...”
“Mas dizem que o Seu Zenóbio já foi um homem bastante atraente...”
“Eu sei. Minha madrinha já me disse que ele...”
“Taí ! Quem sabe não haja chances ?! Além disso, você não perde nada em tentar...”
Morena apenas aceitou a conclusão de Flor com um mínimo sorriso de esperanças. No mesmo dia foi conversar com Jurubeba. Nem é preciso dizer que o coitado fico cinza com as notícias. E mais azucrinado ainda quando soube do transloucado plano de Flor.
“Mas, meu pitelzinho, será que vai dar certo ?!”, pergunta.
“Não sei, meu dengo... Só sei que é a única alternativa que temos neste instante.”
“Oxi, diacho, ai, danado...”, e Jurubeba dava voltas em torno de si mesmo, “Oh, bicho do cabrungo, raiva da moléstia, pé de pato mangalô três vezes !!!”
“Ô, Jurubeba, pára de me deixar azoada !!! Tu acha que pra mim tá sendo fácil ?! Eu tô aqui que não me agüento mais...”
“Me desculpe, coisa escultural ! È que tá me dando uns treco aqui no centro das lombrigas,ai...”
“Nós tem que ter calma nesta hora. O negócio é agir. Vamos ajuntar minha madrinha com o Seu Zenóbio, temo que ajuntar...”

E o plano não era dos mais complicado. Primeiro era preciso trazer o farmacêutico à realidade. Isto seria possível resgatando uma das grandes paixões de Seu Zenóbio: a música. Então foi feito uma busca e foram conectados alguns dos membros do antigo “Os Serenos da Lua”. Casca de Ferida já era falecido, Miltinho também. Contudo Jotapê ainda estava lúcido e disposto a participar do plano.
Naquele dia Jotapê chegou na farmácia, era tarde e ele usava uma boina verde. Trouxera o antigo pandeiro numa mochila, Jurubeba conduziu-o até o escritório de seu patrão:
“Doutor Zenóbio, tem alguém querendo falar com o senhor...”
“Não estou pra ninguém !”, esbravejou Seu Zenóbio, a mesma voz de trovão.
“Ele disse que é amigo seu das antigas...”
“Jurubeba, tu é surdo ?! Eu não lhe disse que eu...”, virou-se e viu o velho amigo. Ficou estático. Jurubeba deixou-os a sós.
As lágrimas caiam dos rostos de ambos. Jotapê ofereceu o corpo num abraço, o outro recusou a principio. Não que não o quisesse, mas é que estava com as pernas paralisadas, tamanha emoção de revêr o amigo após tantos anos. Jotapê olhou-o e comentou:
“Os anos parecem não ter passado pra você...”
Zenóbio consegue, finalmente, levantar-se. Retribui o elogio:
“Que nada. Meu rosto parece uma ameixa, isto sim...”
Riram. Há tempos Seu Zenóbio não ria.
“Por quê vieste ?!”, pergunta.
“Sei não...”, mente, “...Saudades ?!”
“Saudades ?!”
“Que música triste é esta ?!”. O minueto ainda rolava na vitrola do local.
“È a síntese de minha vida...”
“Eu trouxe o meu pandeiro...”
“Desculpa, mas eu não toco...”
“Tu tem ainda o cavaquinho ?!”
“O cavaco ?!”
“Sim. Ou tu já esqueceu os tempos do Serenos ?!”
Não havia esquecido. Jamais se esquece felicidade, por mais que você a abomine atualmente. Achava que não tinha mais habilidades para tocar, nem sabia onde guardara o instrumento...
“Bom Jotapê, foi ótimo revê-lo... Mas , por favor, eu tenho coisa pra fazer aqui. Se você me der licença...”
O velho Jotapê fechou a porta lentamente, logo fazendo uma cara de desânimo para Jurubeba. Este contou a Morena:
“E agora, o que vamos fazer ?!”
“Bem, temos que partir pro plano B...”
“Plano B ?!”
Nem a moça sabia ao certo que plano era este. Contudo estava crente na sapiência de Flor Branca, ao qual recorreu o mais rápido possível...
“Realmente eu tenho sim uma outra idéia...”, argumentou.

Noutro dia, Seu Zenóbio já começou a reclamar:
“Jurubeba, não estou pra ninguém hoje e... O que é isto ?!”
“Isto ?! Ah, é um violão...”
“Não me diga... Eu achava que era um elefante... È lógico que eu sei que é um violão. Dos vagabundos, possamos dizer. O que eu queria sabre o que ele faz aqui...”
“Sabe, Seu Zenóbio, é que eu tenho uma grande paixão por tocar violão. Queria por demais tocar. Só que ainda não sei. Aí eu pensei se o senhor poderia...”
“Eu, logo eu ?! Não, Jurubeba, vá trabalhar...”
“Por favor, Seu Zenóbio ! Já ouvi maravilhas do senhor. Dizem que o teu apelido era “O Cavaco de Ouro”... Pela minha falecida mãezinha, por favor...”
“Ai, ai,ai... Me dá aqui este violão...”
Jurubeba lhe entrega o instrumento. Zenóbio observa, analisa, toca-o. Quantos anos não triscava numa corda, dava um acorde, sentia o peso da madeira, o cheiro que qualquer violão emana...
“Bem vagabundinho este violão, viu...”, disse.
“Então o senhor vai me ensinar ?!”
“Posso lhe dar umas dicas...”
Então, por magia enfim, Zenóbio posiciona o violão por entre sua perna e toca "Odeon". Sua alma quis clamar, há tempos não sentia tal euforia. Cada toque era acompanhado das lembranças daqueles anos de glória e juventude. Quis chorar e sorrir ao mesmo tempo. De repente, a farmácia encheu-se de gente, todas curiosas em saber que estranho tom saíra dali. Já outros embarcaram na nostalgia que o choro trazia, a desbotada memória jazia, tudo parecia uma docilidade de retorno. Zenóbio terminou, como se inebriado, e não havia percebido a multidão que se aglomerava ali. Recebeu as palmas momentaneamente como elogio, outrora achou desrespeito a memória de sua Anja Maria, o luto não se fechara.
“Pra fora todos! Isto aqui é uma farmácia e não um bordel...”, exagerou.
Para Jurubeba aquilo era uma prova cabal de que o artista não havia morrido dentro daquele corpo entristecido. A felicidade encontrava-se deitada e exibiu-se naquele espetáculo. Seu Zenóbio entregou o violão e subiu para o escritório, pondo em seguida o maldito minueto de Bach. Mas a partir daquele dia, sempre após o expediente, Jurubeba recebia lições básicas com o antigo “Cavaco de Ouro”...

“Então, madrinha, você soube que o Seu Zenóbio tocou violão lá na farmácia hoje pela manhã ?!”, diz Morena, pretensiosamente.
“È, eu ouvi falar...”
“È incrível acreditar que ele foi um tipão no passado...”
“Pois é, pra tu ver... Eu era muito menina ainda quando ele tinha o grupo de chorinho. Fazia umas serenatas lindas...”
“E a senhora já fui afim dele ?!”
“E quem não era afim do Zenóbio naquela época ?! Devia ter uns 12 anos, creio. Todas as meninas babavam por ele...”
“Inclusive a senhora ?!”
“Talvez... Por quê ?!”
“Ah, sei lá... Eu imaginei que, de repente, a senhora e ele poderiam...”
“Poderiam o quê ?!”, já com ares de irritação.
“É que a senhora está sempre reclamando que não casou, e o Seu Zenóbio...”
“Tu não tá querendo sugerir que eu me case com o...o... com o zumbi ?!”
“Ah, madrinha, ele é viúvo... e a senhora já foi apaixonada por ele...”
“Epa ! Eu não disse que fui apaixonada por ele...”
“Não disse ou não é ?!”
“Eu,eu... Ah, pare Morena ! Não coloque intenções em minhas falas !”
“Veja bem, madrinha: ele tá melhorando. Já tocou violão hoje e tudo...”
“Nem que fosse o último partido da Terra. Prefiro morrer sozinha...”
Morena levanta-se e chorosa, conclama:
“Pois do jeito que a senhora pensa, vai é continuar encruada pra vida toda !!!”, e sai correndo.
“Morena, Morena... Que diacho deu nesta menina ?!”

Zenóbio sentia-se jovem lecionando a arte do tocar para Jurubeba. Entusiasmou-se tanto que até encontrou o seu enterrado cavaco, perdido nos baús duma casa que nunca mais havia freqüentado. Que tamanho sofrimento foi reaparecer naquele abandonado lar, os móveis, prateleiras com cristais, sofá, a velha cama, lembranças de sua Anja Maria... Encarou tudo com obstinação, a paixão pela música transcendia qualquer dor... Jurubeba mostrava-se um relapso aluno, contudo aquilo não desanimava o animado professor, tanto lumiar era em sua plena felicidade naquilo que fazia. As mãos recebiam com louvor a cada ordem de sua memória musical, vinha-lhe antigas canções e baladas que tanto animavam uma Rebento em preto e branco. Jotapê voltou a aparecer e havia a possibilidade dos Serenos voltarem, nem que fosse por simples hobby. Para completar a trupe chamou-se Milton Filho, o primogênito de Miltinho, que tocava flauta com tanto lirismo quanto o pai e Regino, amigo e tão jovem quanto Milton Filho, uma nova virtuose na viola. Aos poucos Zenóbio foi perdendo o seu casmurro jeito, personalizando-se numa figura colorida por viver. Anja Maria lhe era agora uma recordação distante, algo que doía mas que tinha uma cura instantânea. Uma parte do plano de Flor Branca estava completo...

E enquanto Sísifo buscava armar um enigmático quebra cabeça... Sabia que a presença daquela garotinha não havia sido mero acaso do destino. Era um evidente sinal, o Coronel tinha se comunicado com ele novamente. Aquele gesto, uma mão a apontar infinitos... Posicionou-se, então, na cama do quarto onde o avô morrera. Tão logo percebera que a mão do Coronel só poderia apontar para a estante de livros. Indo a direção, dentre vários títulos, apenas um deveria ser a chave.
“Ofélia... Hamlet !”, diz pra si mesmo.
Pegou o velho exemplar de capa dura, um avermelhado já sem colorido, com letras doiradas e um cheiro de mofo ao abri-lo. Percebeu que havia um papel dentro dele, um estranho papel, um mapa...
“Que curioso... O papel estava justamente na página em que Ofélia morre afogada...”
O mapa do desfecho, o anel haveria de ser encontrado. Mas qual destino ele terá ?! Pra quê encontrá-lo, se não sabia ainda para quem entregar ?! Pensou em Roxanne, mas ela estava longe. Havia a aparência da garota, uma estranha visão que o incomodava. Quem seria aquela garotinha que pousava em suas reinações ?! O mapa indicava um lugar não muito desconhecido, realmente um comum local, árvores e abelhas. Pensou tudo como num desenho já decalcado em sua mente divaga.
E naquele momento ele rever o espectro de seu avô. Segura, misteriosamente, uma garota pela mão...
“Ofélia ?!”, diz, quase em gaguejo.
“Achaste o mapa...”, a voz de trovão do Coronel.
“É.”
“Olha a promessa que você me fez...”, diz Ofélia.
“Espera um pouco: quem é você ?! Como pode você estar segurando a mão de meu falecido avô ?! A não ser que você seja...”
“Ofélia representa a criança morta dentro de você. É o fantasma de sua infância, a mais singela representação daquilo que você fará...”, responde o avô.
Ofélia lhe sorri como alguém já sorrira a ele. Sísifo sentiu uma emanação de recordações, um surto qualquer de medo e basbaquice, queria correr. Suas pernas estavam pressas, contudo.
“Eu não sei o que farei...”, disse.
“Ah, sabes ! Ou no mínimo saberá...”
Não sabia se era um delírio, uma mediunidade ou devaneio. A imagem daqueles dois sumia lentamente, ainda deu tempo de Ofélia exclamar:
“Boa sorte, Sísifo ! Tu já sabes para quem entregar o anel, tenho certeza. É só seguir as ordens do teu coração...”
Deu-se, então, um vapor e daí uma flor. Uma flor branca...

Zenóbio abandonou o surrado terno, começou a banhar-se e perfumar-se constantemente, não ia mais diariamente ao cemitério à noite. Quem sentia falta desta rotina era Seu Tico, tão acostumado à quebra do silêncio das covas com aqueles papos e ladainhas do viúvo.
Agora o farmacêutico freqüentava os bares e tocava nas praças, faziam as mocinhas e as eternas moçoilas suspirarem com aquelas cancionetas de amor e ternura. Os agora Serenos da Noite iluminavam o breu da lua, a luz do poste e o clarão da vida. Atendiam aos pedidos musicais, estendiam os chapéus e recebiam moedas. Bebiam pinga com elas, sempre regados à modinhas de Nelson Gonçalves e Herivelto Martins . Madrugavam, viviam da boêmia, como se mais de trinta anos não fizessem peso à fadiga das idades.
Então, era o ataque de Jurubeba:
“O senhor não sente falta duma mulher não ?!”
“Mulher ?!”
“É. Tu vive sozinho o tempo todo, deve de sentir falta duma mulher...”
“Eu me acostumei à solidão. Além disto, quem é que poderia me interessar ?! Estou velho, feio, enrugado...”
“Que que é isto, Seu Zenóbio ?! Tu tá um coroa muito do aprumado. Sabe quem anda comentando sobre tu ?!”
Não queria saber, porém indagou:
“Não, quem ?!”
“A Dona Neiva.”, mente.
“A bigoduda ?!”
“Oras, não fale assim dela. Ela bem que dá um caldo...”
“Bem que tu tem razão. Ela tem umas ancas...”
“Então quer dizer que o senhor...”
“Não quer dizer nada ! Eu apenas elogiei a Dona Neiva em uma característica, não significando que eu e ela...”
“Mas por que não ?! Ela tá doidinha pra arranjar marido e o senhor está a tanto tempo só...”
“Tu acha que daria certo ?!”
Jurubeba diz exaltado, tamanho foi seu espanto com tal pergunta:
“Certeza absoluta ! Faz o seguinte: aparece hoje na casa dela, faz uma visitinha, leva umas flores...”
“Sei não...”
“Oras, cadê o Zenóbio que encantava as garotinhas no passado ?!”
“Você já disse: no passado...”
“Pelo amor de Deus...”, Jurubeba ajoelha aos pés de Zenóbio, “...Tu tem que namorar com a Dona Neiva e...”
“Ué, e por quê tenho ?!”
“Ai, meu Cristo ! Eu disse isto ?! Eu quis dizer que o senhor tá em tempo de ainda encontrar a felicidade no amor...”
“Felicidade no amor eu já encontrei e a perdi...”, pigarreia, “...Licença que eu vou ver umas contas que estão por vencer...”, diz, saindo do ambiente.
“Oxi, diacho, ai, danado ! Oh, bicho do cabrungo, raiva da moléstia, pé de pato mangalô três vezes !!!”, em agonias Jurubeba tenta acender o seu fumo.

Mas tantos foram às insistências que Zenóbio acabou por dar uma chance. Era uma bela tarde de sábado e Morena já havia preparado um chá com pétalas de rosas. Uma antiga receita da família de Flor Branca, diziam ser afrodisíaco. Também foram feitos bolachas com sementes de girassol e um bolo cozido com cálice de catuaba. Era necessário reacender todo o furor romântico do casal.
Foi difícil convencer, mas Dona Neiva pôs seu melhor vestido e acabou por embelezar-se com maquilagem e perfumes. Estavam ambas à espera quando, pontualmente as três e meia, o farmacêutico chega. Trazia um belo arranjo de orquídeas.
“Boa tarde, senhoritas !”, disse meio acanhado.
“Boa tarde...”, responderam. O de Dona Neiva foi mais seco.
Convidaram-no para sentar. Já recostado na poltrona, Zenóbio tira o chapéu e o põe no joelho dobrado. As mãos suavam, esfregava-as em sinal de preocupação. Dona Neiva bufava ao ar, como se chateada fosse conveniente. Morena tentava puxar diversos assuntos, inclusive elogiando o gosto por flores do homem.
“Ora, não são nada...”, responde Zenóbio, bastante sem graça.
“Bem, vamos experimentar o lanche, né ?!”, tenta Morena contorna a embaraçosa situação.
Serviram-se. A cada gole ou nas mordidas sentiram um calor e passaram a se olhar como atraentes. Dona Neiva gostou do cheiro da colônia dele e Zenóbio percebera que os buços da senhora à frente eram o tanto quanto erótico...
“Soube que o senhor voltou a tocar...”, disse Dona Neiva.
“Por favor: senhor não...Pode me chamar de você...”
Morena então se levanta lentamente. Nenhum deles perceberam que a moça já não estava em cena. Lancharam e conversaram como namorados. Nas despedidas, promessas de se verem. Depois daquilo, uma vela acendeu-se sozinha em frente à imagem de Santo Antônio, mas Dona Neiva nem percebera... Os tempos foram passando, árvores desnudando, crianças ganhando contornos de adultas, e os encontros entre ambos tornavam-se corriqueiros e gratos. Não sabiam se ainda eram namorados, noivos, companheiros... Ainda não imaginavam ser amor, paixão, meros flertes. Tocavam as mãos, juravam palavrinhas românticas, ruborizavam-se com cada qualificação dada um ao outro. Mas Zenóbio estava decidido a ir aos últimos limites:
“Dona Neiva...”
“Oras, o senhor está cansado de saber que pode me chamar apenas de Neiva...”
“Certo, certo. Neiva, quero lhe pedir algo...”
“Bolachinhas ?!”
“Hã ?!”
“O senhor quer provar estas bolachinhas. Estão quentinhas, recém saídas do forno...”
“Ah, sim, quero...”
E Neiva estende o pote de bolachas. Zenóbio pega uma e prova.
“Estão gostosos, saborosos...”, diz.
Ela apenas ri. E ele pega um lencinho do bolso, logo o passando na testa. Estava visivelmente nervoso.
“O senhor disse que me queria pedir algo...”, Neiva quebra o gelo.
“Ah, sim, sim...”
“E o que é ?!”
“Bem, é que eu pensei... pensei...”, diz isto mexendo várias vezes no sofrido lenço.
“Pensou...”
“Como ?!”
“O senhor disse que estava pensando...”
“Agora sou eu que peço: por favor, não me chame de senhor...”
“Ah, desculpe ! Mas que devo ter respeito, afinal não somos nada...”
“Nada ?!”
“Não é isso... Digo nada de íntimo...”
“Ainda bem que a senhorita mencionou isto...”
“Não entendo...”
“Bem, Dona... digo, Neiva, venho aqui pedir a sua...”
“A minha ?!”, parece querer antecipar os pensamentos dele.
“A sua mão !”
“Como é que é ?!”
“A senhora pode até achar que é ousadia minha. Refleti muito antes de fazer tal pedido. Aí eu pensei que poderia ser uma boa para nós...”
“Você está me pedindo em casamento ?!”
“Mais ou menos... digo, sim, é !”
Neiva pega um leque e começar a abanar-se. Zenóbio não abandona o lenço e disfarça um olhar lânguido para os lados. Então pergunta:
“O que a senhorita me diz ?!”
“Bem, o senhor... digo, você me pegou de bastante surpresa...”
“Mas o que me diz ?! Aceita ?!”
Fez-se um breve silêncio. Havia apenas o agitar do leque e o umedecer do lenço. Eram duas almas tão velhas, dois solitários fadigados pelo tempo e pela falta de oportunidades. Queriam amar, terminar suas vidas amando um alguém, vencendo a solidão e a falta física dum alguém...
“A senhorita quer um tempo para pensar ?!”, pergunta Zenóbio.
Sentia que a demora da resposta poderia representar seu definhamento na masmorra da vida a só. Queria saber como era um homem e via naquela proposta a oportunidade ideal.
“Sim, quero !”, responde feliz.
“É sério ?!”
“Sim, eu quero ser a sua esposa...”
Mas do que animado, Zenóbio puxa-lhe pelo braço e, como um mocinho de cinema preto e branco, dá-lhe um ardoroso beijo. Como era bom e sensação de ser beijada pela primeira vez, a força dum braço másculo, um roçar da barba por fazer, o hálito de homem... Neiva teve um breve sentimento de flutuação, como se o chão e as coisas não mais existissem. E casaram-se no dia de Santo Antônio, sem pompas e num complicado dia de chuva. Todos quiseram ver o casamento da antiga encruada. Todos estavam lá, menos Flor Branca e Sísifo.

Flor estava inquieta naquele dia de festa. Já travava seu melhor vestido, não perderia o casamento da madrinha de sua melhor funcionária e amiga por nada. Mas havia uma agonia inexplicável, ouvia um chamado estranho, espiritual ou mais interno, não sabia ao certo. O tempo fechava-se em nuvens escuras, densas. Trovões não tardariam. A chuva era sua amiga, adorava climas tempestuosos. Abriu a janela, queria absorver o ar e a aproximação das gotas, deseja sugar as primeiras lágrimas e sentir as folhas batendo sobre sua aura. Mas ainda assim havia um pavor nos seus poros...
“Vamos, Florzinha. Você não quer chegar atrasada, quer ?!”, diz Do Céu.
“Oh, Do Céu... Vá na frente, ainda tenho que passar um pouco de rimel...”
Ao afugentar a irmã, Flor Branca previu que assim era preciso. Devia estar só para fazer o que era para ser feito. Por mais que não soubesse ainda o que era, tinha em si uma sensação de missão, como se esperasse uma luz guiá-la pra qualquer lugar. Os pingos engrossavam, observou uma pedra molhar, uma obsoleta pedra levando águas de vida, carregar pedras, a vida...
“Ai, Sísifo...”, exclamava sem querer, como um canto hipnótico.
Revirou seus sentimentos, seus passados, a infância e o fôlego de criança substituíam sua respiração. E uma abelha invadiu o recinto, fez um vôo rasante e pousou em cima da bailarina duma caixinha de música. Ela aproximou-se da cena. Uma ventania foi mais forte e derrubou um antigo caixote de cima do velho armário. Ao abri-lo, desenhos num papel e a assinatura...
“Sísifo...”, disse com os olhos em brando frágil.
E como se impulsionada por uma força extra sensorial, Flor Branca partiu não se importando com a torrencial chuva, dirigindo-se para um lugar ao qual não compreendia o porquê do destino. Veio-lhe um mapa mental e disto a segurança de fazer o certo, os sapatos de salto doíam-lhe, tirou-os então. Havia uma extrema vontade de rir, uma ânsia de chorar, via-se tão paradoxa que duvidava da sua racionalidade momentânea. Flutuava pelos paralelepípedos, desviava de ruas, os poucos que a viam talvez questionasse sua sanidade. Era um intenso amor que movia suas pernas, que criava o motriz daquilo tudo, queria uma saciação antes faltante, deseja lábios distantes, sentia-se um poeta do século XVIII. Pensava no Sísifo terno, no menino que tanto lhe conduziu para sua atual personalidade, para aquele ser que agora percebia ser tudo vão sem o acarinhamento daquela imagem que o passado brincava em não revelar antes...

Sísifo não temia os trovões que soavam naqueles céus tão azuis de negros. Tudo o que queria naquele momento era encontrar o anel e esperar o que viria depois disto. Sabia que haveria algo, por mais que ainda não decifrasse o quê. O papel do mapa já desbotara, contudo o havia decorado com precisão. Não lhe era segredo a localização da árvore onde seu avô guardara a preciosa jóia. A tamareira continuava imponente, assim como dantes na sua infância. Parecia tão centenária. Não havia fruto, mas sim um surto de envelhecimento. “Todos envelhecemos...”, pensou. Então contou os passos pedido no mapa e logo sentiu estar no exato lugar. Cavou com as mãos, a terra molhada facilitava a ação. Jogava longe o excesso, fez um buraco médio quando tocou finalmente numa caixa. Retirou-a e num movimento brusco, abriu. Lá estava o reluzente anel, uma safira vermelha, rara, a mais linda já vista...

Flor Branca recordava de cada canto mesmo com a visão embaçada pela chuva. Nada mudara desde a infância. Haviam cercas que demarcavam localidades, arbusto com suas frutas daninhas, o cantar das cigarras... Caminhou até a tamareira, observou a sua bela velhice, o casco morto, a ausência do florescer, quis ressuscitar aquela árvore só para poder aprisionar novamente aquelas lembranças que retornavam. Via-se tão pequena, no mesmo vestido de chita e fitas que lhe prendiam as tranças. Reluzia a cor violeta daquelas fitas.
Foi então que viu um vulto. Parecia uma imagem familiar, mesmo naquele breu sentiu a confiança que seu coração transmitia. Foi segura em direção ao espectro negro. Ouviu seu nome no meio daquilo tudo.

“Flor, minha flor...”, dizia Sísifo, fantasmagórico diante aquele anel. Era a única coisa que balbuciava, era tudo o que lhe via na mente. Um nome, uma lembrança, uma garotinha que andava com joelhos ralados e um cheiro de vida.
“Flor Branca... Minha amiga, meu amor...”, disse baixinho, logo gritando o nome.
Não sentiu o corpo aproximando-se.
“Sísifo...”
Virou-se e não tinha crenças nos seus olhos. Pensou ser mais uma aparição do avô. Flor Branca repetiu novamente. Sentia o calor dela. Brilhos nos olhos de ambos. Viu-a como uma espécie de Janus, dois rosto num só. O lado mulher de hoje e a criança de ontem.
Flor também o via desta maneiro, minotauro místico, duas criaturas de mesmo dorso. Estavam frente a frente, ele segurando o anel. Se abraçaram sem porquê. Teve-se a leve impressão que suas almas infantis se desprenderam e finalmente estava num elo.
“Eu te procurava sempre...”, disse Sísifo.
“Também, de alguma maneira...”
“Perdão por estar tão longe...”
“Perdoa-me também...”
Olharam para o lado. A chuva já cessara, duas crianças também se olhavam abraçadas.
“Somos nós ?!”, pergunta Flor.
“É. Estávamos eternamente juntos, ligado por nossas almas de criança. Por mais que nossos corpos e lembranças não estivessem em conexão, tudo era pura sintonia...”
“Isto um dia ia acontecer...”
Se olhavam, assim maduros, assim crianças. Desejavam aquele velho fim de filmes dos anos 40, o beijo como o começo de tudo aquilo que nunca findara. Pareciam um casal tão íntimo, a distância física em nada danificaria todo o sentimento. E se entregaram aos bruscos anseios, colaram-se para toda a eternidade dos corações. A partir daquele dia seriam um só, Sísifo e Flor Branca, e não temeriam mais nada, o amor os completaria. Do céu, aromas de rosa e o ar tão púrpuro como a alguns anos atrás, num tempo em que ambos nasceram.

Da capela de uma cidade, recém-casados sonhavam que tal fenômeno era para a ocasião, uma celebração dos deuses para a insólita união de Dona Neiva e seu amado Zenóbio...
Não é preciso dizer que depois daquilo ainda houve outros casamentos, e que filhos nasceram e todo o ciclo do mundo continuou como nos tempos de Noé. Porém saliento que o casal dos tais escritos viveram como no marasmo final dos contos de fada: se amaram até os últimos respirares, viram netos e alguns bisnetos, se divertiam ao lembrar do quanto sofreram para finalmente juntos ficarem... E fim !

(Ah ! Morena teve um meninão, que chamou-se Benvindo, apesar do protesto da mãe que nada pode fazer em relação a um pai que vai ao cartório e, num ímpeto beberrão, batiza o filho com o primeiro nome sugerido nas mesas de bares...)

(2006)