quarta-feira, 28 de novembro de 2007

O POETA É A CIDADE

"Pois enquanto existir Deus no céu, urubu não come folha" (Jorge Ben)

Na cidade subdesenvolvida desenvolvia-se micróbios e pessoas tão micros que se achavam macros. Coisa tão anti, antes e depois da invenção da roda, da roca e da rocha. Gente mesquinha, de mil corações e algo no peito tão sólido que parecia sol e aerólito. Na cidade que nada cedia, tão cedo madrugava noites e missões. Cidade caótica, católica na ótica de focalizar deuses e erês. Havia o mar, o amargo e o trago-não trago, um trigo e o pão-circense nosso de cada dia - carne de não se comer, a carne de trepar, a carne do palavrão, palavrinha, larvinha, borboleta vinda dum pós-baseado... E baseado nisto tudo, a cidade (talvez vila, talvez vale, valesse um campo, um conto, caatinga, cantiga, chuvas... Lapinha, Lampião, pião de rodar na mão, na mão, na mão... Um nome, um homem, um salvador, dor e ardor da procura. Talvez uma tez, um triz e traz, atrás de qualquer negação feroz, a cidade era tão pequena, tão ínfima, um ponto negro no mapa, escondida de tudo, dos astrolábios, dos astros e dos lábios, cidade tão a mostra, ostra que gera pérola, divagações...), a cidade expelisse desgraças e "graças a Deus", cidade puta e disputas, sem batismos ou ismos, sem pontes ou pintas, sem negros e brancos, cidade da idade da criação !

Pois nesta cidade, dali onde tudo parecia uísque barato, ressaca no tardar, soco nas veias, naquela cidade inventou de nascer o poeta.

Nasceu numa casa onde o céu era seu telhado, uma casa de paredes rachadas e caiada de verde, na casa onde seus avôs vomitaram suas descendências, residência dos demônios e anjos que lhe diziam o quê fazer, tecer, ser , agir... O poeta nasceu nú, como todos nós. Mas sua máscaras, más caras ou não, lá já estavam, manchadas de placenta, sangue e destino traçado: ser gauche na vida, ser triste, taciturno, noturno-diurno-paradoxos, um amalgama de qualidades e qual-quer-me-bemal. E na cidade que é sua própria síntese, no local que é simplesmente um lugar, seu lugar, lugar de afagos e afãs, cidade que é sua face, sua fuça, seu fuçar, a cidade que transborda seu insensato dizer, seu nada por dizer, seu dizer por coisas tolas e tortas, mancas e azuis, uma chaga que chega, chega, chega !!!!!
Na cidade, o poeta descobriu-se tão cidade, tão poeta, descobriu-se descoberto e sem proteções, com taquicardias e sudoreses, sintomas e exegese banal... O poeta disseca-se e declara que o amor não tem rosto ou bucetas, que o amor não tem forma ou fôrma, a mor não... O poeta é a cidade escondida de entre a neblina do crescer e a fogueira do fugir; o poeta é amorfo, um mofo, a coisa mofada, morfologias que dizem e traduzem pecados e vexames. O poeta é a cidade boa de água cristalina e cristais prismáticos, isto tudo num desenho de criança do prézinho ou nos borrões de Monet. O poeta é a inocência desta cidade, que é também uma fortaleza guardada em suas casas e nos egos cegos de inconsciência.
Redundante é dizer que o poeta e a cidade nunca se encontravam, serpente que se devoram, o poeta é a cidade, a cidade e o canto do mundo.

sábado, 24 de novembro de 2007

EXCLUSIVO

Exclusivo para um coração:
o amor é para os doentes...
Códigos que dizem, que digo
sério, sério
de pé-a-pé...
Um bocado de sonífero.
Bálsamo de sua boca,
rícino que me devora,

sem mensagem ou decifrações...

O amor é patético,
mítico, pantomima ridícula
mimetismo de força,

corrente, aguardente, coisa sufocante...

O amor é belo
tão belo quanto imagens tolas,
criança de riso indolente,
pausa quando não se tem nada o que dizer....
Assim invejo os que amam,
aqueles que em torpe
exclamam felicidades pelos poros,
pelos porões sorumbáticos,
pelas sombras tentando prismar sóis,
só que parece dois,
dois que parecem um só...

terça-feira, 20 de novembro de 2007

UM PARECER FILOSÓFICO

Não há projétil
que fure,
nem projeto
que perdure,
minha vida toda
um caos,
um cais
onde atraco
e atravaco,
traçando meu vácuo...

Onde poema não enche barriga,
quando o poema só enche a mente,
enchente de bálsamo
e do deleite intangível...
Mas poema não enche meus bolsos,
e aí os pais enchem a paciência:
"vá ser doutor, coisa que preste
preste atenção, cresça, aparece !!!"

Um parecer filosófico,
só pra não parecer
que sou menos filósofo:
Um (a)parecer para o grupo,
mostrar o que fiz, o que li, do que gostei
ter que mostrar, ser o ser
exigência do desvelar, do desvelo
vê-lo agir,
balbuciar, gritar...

Nesta vida árida,
ávida de mudanças
quero viver, alçar minhas andanças
alcançar e poder ser feliz
nem que seja por um triz
nem que seja como todos...

sexta-feira, 9 de novembro de 2007

O PRIMEIRO NAMORADO

Levemente inspirado em “Menina da Lua” (Maria Rita)

Foi aos onze. Era acaboclada e tinha uma perna maior que a outra. Salomé era chamada pelos outros de manca, “A manca”. Pois tinha ela onze anos e era primavera. Ainda não passara pela menarca, contudo passaria em breve. Estava mais mulher, brotava-lhe a beleza e os pequeninos seios. Seu pai era um metalúrgico, branco e cheio de preconceitos e bizarrices. A mãe, negra, fazia bicos de diarista e costureira em horas noturnas. Com enormes sacrifícios mudaram para um bairro melhor. Uma casa que traria custos maiores ao já escasso orçamento familiar. Salomé não seria filha única se uma virose não tivesse levado seu irmão mais velho ainda recém-nascido. Esta passagem causaria um trauma irreversível a seu pai. E desde então ele tem lutado para dar uma vida melhor para sua família. O aluguel lhe tiraria confortos como, por exemplo, o Fusca 69 e o plano de saúde. Mas valia a pena morar numa casa com telhados e quintal.
Salomé ainda custava a se adaptar ao novo bairro. Era bem casmurra, difícil de fazer amizade. Conversava mais com os animais de casa do que com as pessoas. E preocupada com isto é que sua mãe propôs a ela uma saída pelas vizinhanças. “Conhecer gente, conversar com garotas de sua idade. Não cai bem você ficar de tri-tri-tri com o Xano...”. Xano era o nome do gato. Numa tarde em que as amendoeiras pareciam mais cheirosas, as flores duma cor densa e hipnóticas e o fim da chuva trazia aromas e poças d’água, num momento como este é que Salomé viu Zé Sérgio pela primeira vez.
Garoto de tez ariana, loira cabeleira num corte de surfista, corpo desproporcional para seus treze anos nunca dado por ninguém, torneado como a musculatura dos dorsos de estátuas gregas, tão alto como jogador de basquete, bem bonito. Pelo menos assim foi a primeira impressão de Salomé, que na ocasião vestira um casaco verde por cima de uma blusa meio azulada com adornos de florzinhas. Blusa esta feita pela mãe, que recolhera retalhos que sobravam das costuras mais caras. Sentiu-se feia naqueles trajes e então escondeu o rosto. Contudo não era a ordem de sua alma, de seu palpitante coração ansioso pelo primeiro amor. Conhecia das telenovelas aquela sensação, aquele suor nas mãos, os sininhos metafísicos que outrora escutara. Era amor aquele singelo flerte do destino.
Zé Sérgio parou diante um grupo de outros garotos. Também havia garotas no meio. Nenhum era de cor parda ou escura. Aquilo incomodava Salomé. No outro bairro era exatamente o oposto: raros os brancos nas brincadeiras ou nas conversas. Mais uma vez sentiu vergonha, preferiu ficar distante. Resolveu contempla-lo do outro lado da calçada, sentou num banco de praça branco-descascado. Queria passar despercebida, contudo fora impossível. Lógico que uma estranha na rua seria motivo de comentários.
Resolveu não se levantar até todos saírem, principalmente o garoto que causava estes arrepios. Quis concentrar-se num ninho que havia na árvore adjacente à sua posição no local. Coçou o nariz, pigarreou um pouco, mas nada tirava de seus olhos a vontade de ver Zé Sérgio. Sentia-se sob efeito dum alucinógeno qualquer: pés fincados, paralisados por feitiço, o molhar anormal na testa, a secura da boca, formigamento na barriga, vontade de cantar, de ser anjo, comer nuvem... Ainda não sabia o nome dele, mas lembrou-se do declame shakesperiano: rosas não precisam denominar-se como tal para deixar de exalar o perfume a ela peculiar. Zé Sérgio poderia chamar-se Amor, Necessidade, Querer Bem, Bem-Querer, Xodó, Esta Agonia, Um Garoto que se Ama... Desta maneira pensava nele. Desta maneira o encarava e assim, em sonhos, o declamava. Pedia. Chorava sem lágrima.
O grupo parecia em murmurinhos. Certamente comentavam sobre Salomé. Foi o pensamento dela, pelo menos... “Será que falam de mim ?! Parecem rir. Será que é de mim ?! Droga...”. Foi no exato momento do xingamento que lhe aprece um vulto. Não exatamente um fantasma ou coisa penada. Ela era bonita, muito.
“Oi ?!”, a mocinha disse. O cabelo dela cheirava a xampu dos bons, destes de criança.
Respondeu um oi meio tímido, pra dentro, inaudível.
“Você é nova por aqui, né ?!”, insistia a outra garota.
Concordou num balançar de cabeça.
“Prazer, Eduarda...”, estendeu a mão esperando cumprimento. Salomé aperta-lhe a mão. Era manicurada, tinha um anel em ametista lindo. “...A galera me chama de Duda. E o seu, qual é ?!”, continuou.
Disse o nome numa divisão silábica medrosa.
“Salomé. Bonito... Mas o que faz aqui sozinha ?! Não quer enturmar-se com a galera ?!”
A proposta da garota fez Salomé tremer mais ainda. Poderia ser a chance de conhecer aquele que magnetizaria seus ideais momentâneos. Não sabia o que dizer, não conseguia. Temeu seu defeito físico, negou a idéia de Duda.
“Certeza ?! A galera é gente boa, você vai ver. Vamos ! Não fique acanhada não...”
Lembrou dos conselhos da mãe. Olhou Zé Sérgio, sujeito-amor sem nome, desconhecido que lhe ternava os brios daquela precisão. Quis, não quis, teve medo, criou coragem, dissipou-se no mesmo momento...
“Você não pára de olhar pra lá. Que é ?!”
Medrosa, logo voltou seu rosto para a garota próxima. Resolveu estralar os dedos, logo parou. Roeu uma unha em silêncio.
“Cê parece, sei lá, apaixonada... Tá interessada em algum dos garotos ?!”
Vermelhou a pele, a mão suou ainda mais.
“Não precisa responder. Já dá pra ver. Tu tá afim de quem ?!”
Nada disse.
“Deve ser pelo Zé Sérgio, né ?!”
Zé Sérgio ?! Seria este o nome dele ?!
“Zé Sérgio é o loirinho, o mais forte e alto. Aquele de camiseta-regata amarela...”
Confirmou. Agora sua “rosa” tinha um nome, um símbolo que gravaria eternamente em suas memórias.
Naquela tarde primaveril não falou muito. Não era costume de Salomé agir assim. Mesmo assim ganharia uma amiga e um amor, um nome para ninar quando a insônia vier de forma repentina. Não dormia se pensava nele, acordava e bebia água, um xixi, nada resolvia. Talvez fosse amor, o primeiro enamorar, o primeiro namorado...

Duda, depois de tudo, passou a ser guia, amiga, estrela, sombra, anjo de Salomé. As duas viviam juntas entre fuxicos e mexericos, segredos e risadas. A mãe da manca gostava de ver a filha neste frenesi. Quem não simpatizava muito com esta amizade era o pai de Salomé. “Desconfio de branco fazendo amizade com crioulo...”, resmungava num bufar constante. Mesmo assim concordara que a filha estava de novo ânimo, parecia feliz pela primeira vez na vida. Não sabiam do Zé Sérgio ou das sensações que ela sentia. Não confessava a ninguém, nem à melhor amiga. Esta desconfiava, acreditava por destino, sentia os rubores da outra quando o nome do menino é mencionado.
E então ia acontecer uma tradicional festa no tradicional clube da rua. Só iriam sócios. Todos da turma eram sócios, inclusive Zé Sérgio. Salomé nem condições tinha para tal.
“Ué, mas eu sou sócia. Você vai sim !”, ordenou Duda.
Ela a observava com aquele olhar de submissa. Invejava tudo nela: a brancura de sua pele, o negrume de seu cabelo longo, o hálito aromático que exalava em cada palavra, a confiança, a superioridade da amiga. Achava que se fosse um pouco parecida com ela, talvez o Zé Sérgio passa-se de um sonho insano para uma concretização tocável.
“Ouviu, Salomé ?! Cê vai sim !”
Salomé argumentou que não tinha vestido decente, que mancava duma perna, que zombariam dela com certeza.
“Vão nada. A turma é finíssima, podes crer... Além disto, o Zé Sérgio vai tá lá...”
A simples menção da existência deste nome causava tormentas no seu estômago. Lembrar dele era bálsamo e enxofre, calor e frio, calma e tempestade.
“Vou ficar decepcionada se você não for. Vai ser a chance de você de aproximar do Zé Sérgio. Você vai e tá definido ! Qualquer coisa eu te empresto um vestido, sei lá...”
Apenas escutava os argumentos de Duda. Achava tão bonito os dentes em aparelho, borrachinha verde, coisa aburguesada. Vergonhou-se da sua arcada, tão torta, tão amarelada, cariada pela ausência de tratos. E o hálito provido daquela boca ? Salomé passa a língua no céu-da-boca e sente asco do gosto de bolo alimentar que dele derivava.
Depois de mil explanações, Salomé foi convencida a ir. Para a ocasião, a mãe da menina fez questão de confeccionar a vestimenta. Retalhos das patroas, como sempre. Como mágica o vestido pareceu bonito, simples, contudo requintado. Poucos diriam que não fora comprado. Pelo menos foi o que a Duda mencionou quando foi buscá-la naquela noite de sábado. E pela primeira vez sentava num carro que não fosse o antigo Fusca 69 do pai ou os ônibus em que sempre andava quando ia com a mãe ao centro da cidade...
O pai da Duda quis disfarçar o certo estranhamento em saber da amizade da filha com uma “de cor”. Mas como fora antes avisado, nada comentou e até a cumprimentou com requinte: “Oi Salomé...”. Ela responde e, ao mesmo tempo, transparecia hipnotizada pela situação. Duda lembrava uma daquelas ninfas de quadro renascentista: tinha o cabelo encaracolado e com uma fita de seda azul. Encantou-se com o azul da fita, com sua textura, com o brilho que emanava, feito astro do céu à noite... E na boca maquilada, bochecha com pó-de-arroz, o cheiro da colônia que parecia uma flor... Sentiu vergonha de existir, pensou em pular do carro e procurar o vão mais escuro para lá dialogar com os ratos e baratas. “Não quer passar um batom, Salomé ?!”, pergunta a outra. Esta nega, escondendo humildemente sua situação.
A porta do clube estava cheia, muitos penetras tentando uma brecha para uma entrada gratuita. As duas descem e Duda ouve com respeito às ordens do pai. E então adentram o recinto. Salomé encanta-se com os balões que adornavam o grande salão, as mesas com toalhas de um branco digno de promessa de propaganda de sabão em pó da TV. Muitos jovens reunidos em pequenos grupos, alguns já na pista de dança. A manca procura inconscientemente por seu ser amado. Duda a chama, Zé Sérgio está do seu lado. Ela sua frio, solta um sopro e dar um passo, logo se lembrando da sua debilidade. Então paralisa, não saindo do lugar. “Venha Salomé...”, insiste Duda. Zé Sérgio parece sorrir, a manca nada faz e tenta disfarçar. Mumificada pelo momento, estática ficou e em nada esmiuçou. Então a prenda fez-se presença e Zé Sérgio aproximou-se das garotas com um sorriso e um longo cumprimento. “E aí, Duda, não vai me apresentar a novatinha não ?!”, pergunta. A manca ruboriza-se e Duda faz as apresentações. “Nossa, como você é encantadora...”, menciona o rapaz. Naquele instante qualquer dito de seu amado parecia-lhe poema, estrelas que saiam do céu da boca do seu declamador, a encarnação dos príncipes que via na TV... Zé Sérgio era certamente o ser mais perfeito, criatura mais bela, a calmaria de suas bonanças, raio de sol no negrume de suas incertezas, a paz... Por frações de eternos segundos sentiu-se num sonho, num crepúsculo lindo em que não era manca ou inferior, um espectro que refletisse tudo de bom, espelho em que visse apenas o sorriso de Zé Sérgio, nada mais... Foi-lhe então divino quando o mancebo carregou-a para o palco de dança e juntos dançaram uma, duas valsas. Perto dele não sentia vergonha de seus defeitos, qualificava-se espontânea, tornava-se flor. Não quis beijá-lo, contudo: sentia-o como uma porcelana frágil, pensou que o mais simples ósculo seria profanação, macular a coisa mais pura e sacra que tivera a honra de tocar... O ar do respirar de Zé Sérgio, o braço que contornava sua cintura, o mero peso do dorso amado, Salomé não racionalizou nada ali. Apenas deixou-se levar pela força do rapaz, que estendia o braço e confidenciou-lhe um lugar onde poderiam ficar a sós.
Foram para os fundos do clube, um terreno baldio e de pouca iluminação. Estavam cara a cara, um a olhar pro outro. Salomé passou levemente o olhar para o céu e nunca lhe pareceu tão brilhante os astros. Depois olhou para os olhos de Zé Sérgio e percebeu o clarear dali. Então constatou que não eram as estrelas ou a lua minguante que estavam em brilho, simplesmente era o olhar de seu amor que imperava e fazia daqueles apenas seu receptor e refletor. Foi quando recebeu o primeiro empurrão.
Era dez, onze, uma turma, a mesma turma de quem tivera medo dias antes na pracinha. Caída no chão, notou que dentre o grupo estava Duda. E começaram a insultá-la, zombaram da sua deficiência, disseram-lhe que não era decente e nem aceita por ali, que deveria pagar pelo pecado de nascer mulata, pobre e manca... Pela parte de Duda não sentiu nem rancor ou espanto. Contudo triste foi saber que Zé Sérgio ria e repetia todos aqueles argumentos. E foi ele quem ordenou o apedrejamento. Todos, um a um, uma chuva de pedra. Salomé debatia-se para desviar, mas não adiantava. O sangue já encharcava seu rosto, sentiu cada hematoma, cada ferida, buracos na testa, dentes quebrados... Os meninos ainda insistiram em chutes violentos no dorso da garota. Saciados, alguns ainda cuspiram-na e jogaram punhados de terra e cinzas de cigarros no rosto já debilitado. Em gargalhadas saíram de fininho, Duda ainda olhou para trás, mas não se compadeceu. Salomé teve dificuldades para abrir os olhos, contudo ainda num lance de consciência, lembrou-se do pai ao violão e da canção que este cantava para ela. Tinha só cinco anos na época, mas tinha decorado e guardava consigo a estrofe que mais gostava: “... Fique assim, meu amor / sem crescer / Porque o mundo é ruim, é ruim e você / vai sofrer de repente / uma desilusão / Porque a vida é somente / Teu bicho-papão...”. Mal se lembrou em riso a última sílaba e calou.

Depois da sentença, os envolvidos receberam uma pena alternativa e pode cumpri-la em liberdade. Já o local da chacina tornou-se um jardim por decisão do dono do clube, mas logo fora entregue ao abandono das ervas-daninhas e desmanches do tempo, sendo um local pouco freqüentado pelos sócios. Salomé então se tornou flores murchas num canteiro cheio de saúvas e caracóis, sem uma placa ou lápide para ser eternizada.

quinta-feira, 8 de novembro de 2007

ODE DE PAPEL E MAR

Ode
onde
a onda
descansa
e nunca alcança
a margem...

do papel,
apenas palavrinhas turvas,
curvas tortas,
sempre retas buscando o mar.
O mar
a margem
miragem
ira, irá
de lá pra cá
irá, irão
o mar, a onda, a espuma,
o barquinho...

de papel
meu amor versado
meu verso inverso
mil corações desenhados,
coisa passageira...

A hortênsia fugitiva
flor que purifica o mar
algo que não soube amar
a terra
o trovador
aquele que trova a dor,
trovoa ardor
que voa no céu pálido,
que atravessa desertos áridos,
que ara, comovido,
o jardim ávido
destes desamores seus.

quinta-feira, 1 de novembro de 2007

SILOGISMO POLARÓIDE 1.0

O amor é cego...
e interesseiro !
O amor quer enxergar,
e a melhor visão é oferecida
pelas melhores lentes ou colírios.
O que é melhor é necessariamente comprado.
Portanto, concordaremos que o amor
sempre, sempre
precisará dos vinténs
para assim vingar...