sexta-feira, 29 de abril de 2011

PARECIDO COM TODOS OS OUTROS

Dica: leia-o ao som de Elliot Smith...

O amor é masculino;
A paixão é feminilizar
O amor é maiuscúlo e musculoso,
A paixão é hedonista e vulgar;

O amor anda mambembe pelo cantos,
A paixão é puta querendo dar
O amor é frio e calculista,
A paixão é projétil ansiando voar...

O amor querendo se apaixonar...
A paixão querendo amar...
Amor é casamento fiel;
Paixão é traição cintilar...
O amor incendiou sem querer
A paixão, enciumada, “lançou sua flecha preta”
O amor, dolente, indagou seu próprio ser
A paixão, sabendo-se sábia, acerta em cheio sua seta

O amor é químico;
A paixão, veia que leva um rio tísico
O amor nos faz ventrílocos;
A paixão, imaterial físico...

O amor é parecido com todos os outros
A paixão, poema batido
O amor envolve-se num casular invólucro
A paixão, fluviar comedido,

Amor e Paixão, de mãos dadas
na divisão dum mesmo algodão-doce...
como se fossem amalgamados,
como se siameses fossem...

ou como se lê-se meu sentimento ouvindo jazz...

segunda-feira, 25 de abril de 2011

INCONSCIÊNCIA

“ (...) e desde então sou porque tu és,
e desde então és, sou e somos
e por amor serei, serás, seremos. ”

(Soneto de Amor, Pablo Neruda)

Eles iam se encontrar finalmente. Os destinos, o Universo conspirava como num ditame qualquer de Paulo Coelho... Estavam na mesma festa, ele ainda entrando, ela ainda por entrar... Uma noite sem nuvens, o céu bem estrelado e duma lua cheia digna dos enamorados notívagos... Ele pra ela, ela pra ele: nada poderia dar errado...

A não ser pela mambembe, ululante e imponderável Lei de Murphy nossa de cada dia...

Ele, se talvez achando um “ultra-humano etílico” – ou querendo criar coragem pra procurar o que procurava (embora não soubesse exatamente o quê), começa a beber uma, duas, três, misturar misturas, bebendo tudo e todas... No fim, veio a inconsciência, a amnésia, a... a... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... (neste meio tempo, ela entra na festa parecendo procurar alguma metade; encontra amigos, beberica um pouco, o show da banda principal ainda não começou; e tenta dar pequenos passos, pede licença aos transeuntes, não sabia o que procurava, mas sabia que procurava algo.) ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... (ele foge, sua turma tenta detê-lo; em vão, deixam-no ir.) ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... (o show finalmente começa) ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... (Alguém – não ele – a beija. Ela, sem saber se saciando aquela busca aflita, deixa-se levar pelo lascivo momento.) ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... (Fim da festa. Ela sai de mãos dadas com aquele alguém, deduzindo, ainda zonza, que este cara era aquilo mesmo que ela tanto procurava...)

Ele enfim desperta do “estado de coma”; deitado em sua cama, no quarto de sua casa, babando no travesseiro, o acre gosto de borracha na boca, azedume na alma... Constata então que perdeu a festa, que aquilo que procurava pudesse ter lhe escapado das mãos, sente-se um babaca e volta a dormir pra vida...

sexta-feira, 15 de abril de 2011

SOLILÓQUIOS

todos querem estar certo
eu quero apenas
estar nalgum conceito,
não me importo se parto prum lado ou outro...

deságuo,
como se meu rio não tivesse margem...
como se meus ditos não dessem margem,
ou eu não pudesse
passar mil vezes
pelo mesmo cio...

E se o que digo condiz?
diz, diz...
à giz ou gravado em suas árvores,
diz se suas certezas são universais,
se estão escritas numa Via-Láctea ou no diário do Criador...
diz, por favor diga !!!

São solilóquios,
movimentos ad infinitum
em torno mim mesmo,
algum estorvo a esmo,
espelho que se torna multidão
um simples "cadê você"...

Meu calor, seu calar
gritos secos, repentinos, no ar...
será que a carapuça-mordaça
um dia nos servirá ?!
Será mortalha vital,
a pedra que escolhe nosso íntimo vitral,
cacos do ego:
"eu-e-que-os-outros
se fodam !!!!"

NÃO É VOCÊ (EM VOZ DE NELSON GONÇALVES)

Não é você,
até achei que fosse...
enxerguei-a distante,
confundi o brilho:
a luz do seu farol não guiará meus navios;
meu amor será apenas neve,
meus carinhos, nada que atreve ou acenda pavios,
e meus abraços, somente braços que confortam...

Não é você,
mas queria no fim...
mas seria uma remota ousadia do poeta
tê-la como reta, como guio do seu guiar ?!

Não é você,
sinto isto em sua voz muda,
leio isto em seus lábios cegos,
desvendo isto em suas palavras ternas,
fazendo de minhas tardes plenas,
primavera corrente em meu inferno inverno...

Não é você
e nem é do seu agrado,
que nosso segredo amargo
seja agridoce ácido,
o que corroi e nutre,
feito guiar dum cavalo chucro
feito chuva dolente escorrendo pelo peito,
feito amor danoso, sem concreto ou alicerce
amor vão, amor são...

amor distante de sua boca...

meu palíndromo sinal,
não é você...

não...
é você...
ou...
é você...

consciente esquizofrenia,
esperança que devo trucidar,
adaga no coração da Julieta,
o que devo parar de sentir...
parar de sentir...
de sentir...
parar...

terça-feira, 12 de abril de 2011

AMORES DE BAR II

Chovia, ele adentra o bar. Marcara encontro, certamente iria atrasar – o trânsito, o temporal... O tempo passa, um passado atrás do outro, mais um futuro, mais um passar...
Poucos no recinto, o normal dum dia de chuva. Ele se senta numa cadeira de balcão, pede um conhaque (que esquenta o corpo em dias de frio). A junkie box toca uma de sua adolescência, INXS, The Smiths, Tears for Fears, não sabia ao certo... Então se lembra de Martha Rocha, de Nice, de Leandra... Parecia ainda sentir os calafrios duma mão boba heróica, as Grapettes quentes da mercearia de Seu Osmar, o mar de Paquetá enquanto empinava pipa com o avô... No ar aquela música de Karatê Kid – odiava o filme, mas a canção ficara gravada em seu âmago como tatuagem buarquiana.
É quando ela entra...
O passar traz o passado: não sabia se era Martha Rocha, Nice, a menina do primeiro beijo (do qual o nome lhe fugira da memória...). Mesmo sendo imemorial, ele sabia que aquele rosto não fora estranho a ele em momento algum... Ela se senta ao lado dele, parece procurar algo na bolsa. “Fogo ?!”, pergunta. “Não, obrigada... são meus cigarros, sei que estão por aqui e...”, responde enquanto o outro lhe oferece um de seu maço. “Agradeço, mas não é de meu feitio aceitar coisas de homens estranhos... apesar que este seu rosto...”. Ele diz o nome dele, ela faz uma onomatopéia, meio que demonstrando incredulidade... “Você é a Martha Rocha ?!”. “A miss ?!”, diz rindo. Ele acha um pouco engraçado, esmiúça um sorriso amarelo. “Não, não sou a Martha Rocha...”. Tenta então a segunda opção: “Nice ?!”. Ela nega com a cabeça, enquanto afirma que finalmente encontrara seus cigarros. “Você tem isqueiro, não é ?!”. Ele oferece o artefato e usa a última carta de sua manga – “você tá me parecendo a Dira... ou estaria muito nova pra ser ela ?!”. Ela encara isto como cantada e sorri. “Prazer, Leandra...”. Imaginou que este seria seu próximo chute. “Leandra... Leandra Saputi, aquela de aparelho na coluna, que estudou no Duque de Caxias, colega do Danúbio ?! Ôrra, você tá enxutaça !!!”. Ela ri, reclama do garçom pela demora do seu chope, volta-se pra ele e responde: “Não, não sou esta não... meu nome é Leandra, Leandra Leal. Sou atriz... o senhor nunca viu algum trabalho meu na TV não ?!”. O futuro, o passado, aquela marca no canto da boca...
Ainda grogue com aquilo tudo, ele observa suas mãos enrugadas, alisa sua aliança – não a tirava mesmo divorciado à dois anos, hábito talvez... – olha para Leandra Leal, tenta reconhecê-la de algum lugar, o passado e o futuro... o relógio marca dez pras dez, noutra olhada já são dez e dez, uma piscadela e descobre que na verdade que ainda nem havia chegando as oito... “O senhor está passando bem ?!”, pergunta a jovem. Odiara o “senhor” daquele discurso, não sabia se estava bem ou se passara, passará ou o passarinho de Quintana... “Tem certeza que você não é a Martha Rocha ?!”. A junkie box engancha numa melodia qualquer, o passado se repetindo, uma criação do futuro ?!

A chuva começa a cessar, “bem, já vou... adorei conversar contigo. Você tem MSN ?!”, pergunta a moça. Com o fim da tempestade alguns saem do recinto, ela acompanha a multidão, dizendo que ele fora um cara super legal... “Leandra Leal...”, ele repete.
O encontro chega, pede desculpas, culpa o trânsito... ele, catatônico, nada diz. “Querido, sou eu...”. “Hãn, quem ?! Martha Rocha, Nice, Dira ?!”. “Não, seu tolo... sou eu, Leandra...”. Ele se espanta: “Leandra ?! Leandra Leal ?!”. Ela gargalha. “Leandra Leal ?! Não, seu louco... sou eu, Leandra Saputi, se esqueceu ?! Do Duque, colega do Danúbio... Você não se lembra que a gente se reencontrou ontem, aqui neste bar e marcamos de nos ver hoje ?!”. Estava confuso, não sabia qual passado, qual futuro, qual das coisas correspondiam ao real... “Bem que você me confessou que sofre alguns momentos de surtos esquizofrênicos... Cê tomou seus remédios hoje ?!”. Quis fugir, estava paranóico, não se reconhecia...

Mas resolveu aceitar o mais cômodo: pediu desculpas por aquele quiproquó, logo depois outro conhaque - e um suco de limão para ela - na junkie box toca Manhattans. “Você lembra ?!”. Fechando os olhos, diz sim...

TEMPO DE VALIDADE

eu não tenho data escrita
num exato tempo de validade;
mas o xampu
têm...

eu não tenho data escrita
num exato tempo de validade;
mas o pote de iogurte perdido na geladeira
têm...

eu não tenho data
num exato tempo de validade;
mas a água com gás, o esmalte de pintar unhas,
a vida insólita da carne morta descongelando na pia,
o carpete onde piso e passo,
o relógio que marca o tempo que passou,
tudo isto
têm...

mas morrerei também,
tal qual o xampu, o iogurte, a água com gás,
o esmalte, a carne de supermercado,
o carpete, o relógio...
tudo neste ir moribundo,
todos nesta corda bamba do viver...

DOR E ORDEM

amor, este dissabor
aquele que veste deste viés
que sacraliza-se de mil injustiças,
que não vem... que não chega...
que me faz gritar de dor e ordem...

quero um amor com gosto de amanhã,
que tenha o olor de quero-mais...
que mantenha em si este querer eterno de estar junto...

amar como o hercular serviço de Jacó por Raquel...
amar, revés constante, direção do mar,
guio sem estio, o que vitalmente preciso...

e ninguém me ouve,
não há comoção, não há pedidos ou esforço,
nem esboço no fim do poço,
sem rede na queda do trapézio...

não há ninguém...

não aparece nem miragem,
ou a imagem de alguém na borra de café...
não há...

amar, este cortante instante - não me contempla os céus,
nem o meu atuar...
nem meu ócio em não agir...

amar que não vem,
que não vê meu aflito
não ouve meu censurado grito,
meus explícitos mitos,
quando minto que nada quero...

segunda-feira, 11 de abril de 2011

É VOCÊ

É você que me ouve
É você quem quero ouvir
É você que faz florir
os campos antes gris,
É você quem me faz feliz...

É você que está distante
É você aquele instante
É você, minha alegria constante
fazendo-me gigante, sendo eu tão fraco
sendo o momento luzir em lúcidos opacos,
mantendo meu ego reluzir, meu sol, meu seduzir...

É você, melodia que quero dedilhar
É você, desenho que quero rabisco
É você quem me traz do abismo,
É você bonança em meus sismos,
É você quem escreve e me dá sorte...

É você quem me faz forte,
É você, liberdade e calabouço
É você, parte do meu esforço
metade deste arcabouço,
meu inteiro cais...

É você onde quero cair
É você minha ascenção sublime,
É você o beijo de filme, a natural ação
É você meu pulsar-coração
É você minha cor, minha embriagada insensatez
É você, insana lucidez
É você, meu crescer...

É por você, extramente e unicamente por você
é tão somente por você que sou este “nerdim”,
incrivelmente por você sou assim...

E assim, neste código só nosso
nas passadas que tornariam insossas
as desventuras deste destino colosso,
a ausência de nossas peles...

O BALCÃO (AMORES DE BAR I)

Balcão de bar, ele chega.
“O de sempre, Percival...”
O atendente (antes servindo outro cliente) vira-se.
“Oi, Danúbio... ah, um ‘El Cabrón’. É pra já...”
Mal completada a frase, ela também adentra o recinto. Senta-se à frente dele, num outro balcão.
“Por favor, me vê uma dose de uísque com o mínimo de soda e um risquinho de leve de Campari, por favor...”
Percival, assustado:
“Um ‘El Cabrón’ também ?!”
Ela também se espanta.
“Como ?!”
“O que a senhora...”
“Pode me chamar de você...”
“Perdão. O que você pediu foi um ‘El Cabrón’...”
Ela pega o menu da casa, vistorea-o rapidamente.
“Bem, não vejo nenhuma bebida com este nome aqui... o que eu pedi foi instintivo, pedi sem pensar, apenas sei lá...” (procurando pelas palavras)
“Bem, senhorita... instintivamente ou não, o fato é que esta bebida não é normalmente vendida aqui neste bar. Na verdade é uma combinação criada por aquele senhor aqui...” (e aponta para o homem de paletó cinza e gravata frouxa)
Danúbio olha pra ela (vestido trivial, uma blusa de botão que pouco realçava seus seios), diz um monótono alô.
Ela também nem presta muita atenção na história. Parecia cobrar pressa do garçom.
“Ah, as bebidas... farei-as num instante. Favor, esperem...”
Alguns curtos minutos até o drinque estar pronto, ele acende um cigarro. Oferece então um do maço pra ela, que recusa. Pensou em dizer que parara de fumar, mas travou-se na constatação de que não queria muita conversa...
“Aqui está o seu, Danúbio...”
Põe o copo acima do aparador. Vira-se para ela.
“Agora o seu, senhorita... ainda pûs uma rodelinha de limão, pra dar aquela acidez necessária...”
“Ué, como é que você adivin...”
Censurou a premissa mediante o óbvio:
“Ah, é o tal ‘El Cabrón’...”. E sorri amarelo.
Dão o primeiro gole em silêncio. Percival, limpando um copo com um guardanapo, apenas acompanha os dois com os olhos, como se fosse um cowboy a espera de um tiro.
“Então você também curte um ‘El Cabrón’ ?!”
Ela ri ironicamente.
“Não, não, camarada... não pedi este tal de ‘El Cabrón’. O que pedi foi uma dose de uísque misturado em pouco de soda e quase nada de Campari...”
“E então ?! Isto é o ‘El Cabrón’ que inventei !!!”
“Nunca, nunca !!! Isto na verdade é uma boa duma filha da puta duma coincidência...”
Danúbio espanta-se ao ouvi-la dizer “filha da puta”. Não que seus ouvidos fossem virgens em chulas denominações vindas dum timbre feminino, mas aquele linguajar de estivador acabou-lhe por despertar o mais íntimo dos sentimentos. Um sentir antes morto pela infidelidade da ex-esposa, casamento de 23 anos e três filhos, um já em tese de mestrado. Ele mesmo só terminara uma má fadada graduação em Filosofia...
“Bom, que seja então... você vem sempre aqui ?!”
“Não muito. Só quando estou chateada com algo...”
Bingo: outra coincidência.
Ela prossegue e diz, como se o homem tivesse perguntado pelo motivo de sua chateação:
“Meu casamento está esmiuçando em frangalhos... pode, 23 anos de convivência, três filhos e de repente ele me troca por uma garota de vinte e três ?!”
Espantara esta outra coisa em comum: o amante de sua esposa também tinha 23 anos.
“É, entendo como é...”
E acende outro cigarro. Ela pensou em dizer que não era legal fumar em ambientes fechados, mas novamente se censurou...
Atiçado pelo tal acaso, ele puxa assunto:
“Bangu de 85 ?!”
Mesmo achando um tanto descabida a pergunta, ela responde em automático:
“Gilmar, Márcio Nunes, Jair, Oliveira e Baby; Israel, Lulinha e Mário; Marinho, João Cláudio e...”
“Ado ! O maldito que perdeu o pênalti na final !!!”
Ela apenas sorri. Ele se espanta. Estaria diante da tal alma gêmea ?!
“Gosto de futebol. E sou Bangu por causa do meu pai... Nunca me esqueci daquele final de 85. Eu tava lá no Maracanã...”
Ele também estivera, foi o que pensou. E continuou o interrogatório:
“Música internacional predileta ?!” (e pensa: “Se ela disser A Matter Of Feeling, beijo-a na boca !!!”)
Ela diz, sem pestanejar:
A Matter Of Feeling, Duran Duran... Música do meu bailinho de oitava série, no Duque de Caxias, do meu primeiro beijo no Antonelli...”
E completa, mesmo sem perceber a basbaquice do outro:
“Antonelli é o nome do cafajeste do meu ex-marido...”
“Você estudou no Duque de Caxias ?!”
“Sim, sim. De 80 à 87..”
Sem saber porquê, de repente achou que voz dela fosse a da mezzosoprano Denyce Graves cantando a “Habanera”, de Carmen.
“Curte Bizet ?!”
“Hãn ?!”
“Perguntei se você curte Bizet...”
“E o que é Bizet ?!”
“Bem, seria muito ela curtir Bizet...”, pensou Danúbio.
“Eu leio Nietzsche desde os 14...”, ela disse, sem saber o porquê do seu dizer.
Acabaram a bebida. Ele propõe:
“Mais outra ?!”
“Hum, melhor não...”
“Eu pago...”
“A questão não é esta...”
Na verdade tinha vergonha de lhe mostrar sua condição.
“Vamos, só mais uma...”, insiste.
Ela pensou em não se levantar antes dele ir embora, embora estivesse super afim de prolongar a noite ao seu lado...
“Não é todo dia que se encontra uma linda mulher que encare um ‘El Cábron’, que saiba escalar o Bangu de 85, que curta Duran Duran e seja leitora de Nietzsche...”
Pensou que tinha exagerado no “linda mulher”. Não que não fosse na real, muito pelo contrário: ela era do exato jeito que o encanta. Contudo julgou que chama-la assim de cara poderia soar como cantada vulgar.
Ela apenas sorri e se recrimina por não poder levantar.
“Não sou tão perfeita assim... Na verdade tem um detalhezinho em mim que pode lhe causar certa repugnância.”
Espantou-se, mas não quis demonstrar isto. O que seria de tão grave assim ?! Imediatamente pensou em se tratar dum transsexualismo, mas descartou isto ao constatar a ausência de gogó.
“Tenho vergonha disto desde o dia do acidente...”
“Acidente ?!”, pensou. Quase disse isto...
Neste momento percebeu que enxergava-na apenas da cintura para cima. O balcão tampava o resto...
“Acho que você já está sacando tudo né...”, ela diz.
Não insinuou, não concebeu nada, nenhuma constatação. Pensou em algo, mas preferiu não dizê-lo:
“Sinceramente não...”, jogou em blefe.
Ela bufa, dá pancadinhas no balcão...
“Viviamos felizes, estavamos bem finaceiramente... até pintar aquele maldito acidente. Desde de então ele me desprezou, não me procurou mais, começou a me trair... e, de um dia pro nada, pede separação alegando paixão por uma qualquer !!!”
Danúbio estava cansado daquele joguete.
“Perdão, mas você falou em acidente...”
“Foi. Tem seis anos já...”
“Certo. Mas ainda não fiz co-relação com o fato de você me dispensar...”
“Eu não estou te dispensando. Você me parece ser um puta cara interessante...”
Não entendia.
“Não entendo...”
“Tem certeza que você não reparou em nada ?!”
Nem precisava responder, a confusão escancarada de seus olhos...
Ela estava nervosa, visivelmente nervosa. Brincava, indolente, com a borda do copo. Respira e diz:
“Sou amputada.”
Era a concretização de suas certezas.
“Perdi a perna direita no tal acidente. Hoje uso uma prótese...”
Estava mais bobo do que no momentos das coincidências de gostos.
“Você deve ter perdido totalmente o tesão, né ?!”
Ele responde numa estranha gagueira:
“Nã... quer dizer... não, não... mas é que é...”
“Estranho ?!”
Parecia tira-lhe a palavra da boca.
“Bem, não é que seja estranho... até pode parecer, mas não é tão estranho assim... ai, não sei como me expressar !!!!”
Ela ri.
Ele então sai do seu lugar e se aproxima dela.
“Se você acha que vou desistir de você só por causa deste detalhe, você está redondamente enganada...”
O semblante dela fica sério.
“Mas eu tenho vergonha. Desde a separação eu nunca mais me envolvi com alguém...”
“E se eu lhe disser que também sou amputado ?!”
Agora era a vez dela ficar boba...
“Hãn, como ?!”
E só então percebeu...
“Bomba caseira, época junina, tive que aprender a usar a direita desde então...”
Ela ri, meio de nervosa.
“E eu pensando que você fosse canhoto nato...”
“Pois é... mais uma filha-da-puta duma coincidência, né ?!”
Foi a senha, fagulha, ícone, sinal de que o amor não segrega, ele simplesmente une...

E sairam, se encontraram assim nos desencontros da vida, como já cantou o poeta... Dormiram juntos, trocaram telefones, ligaram dia sim, dia não... novamente dormiram juntos, apresentaram famílias, encararam rebeliões internas, moldaram aceitações, quiseram casar, negaram o padre e assinaram papel, viveram até o sempre dos últimos suspiros...

terça-feira, 5 de abril de 2011

A PELEJA DE SANTO ANTÔNIO CONTRA O DIABO PELA ALMA DO INFANTE ANTI-HERÓI QUIXOTESCO MATEUS

E assim Mateus leva seu 666º fora naquela festa. Enquanto todos seus amigos mais próximos (sem exceções) se davam bem, ele sai desolado e sabendo que a batalha está devidamente perdida. Ziguezagueando em direção ao portão de saída, ele desabafa consigo mesmo, sempre se cobrando e questionando o porquê daqueles fracassos. É quando lhe aparece a figura dum sujeito estranhamente sedutor, trajando paletó vermelho, gravata e sapatos igualmente rubros, um bigode ralo e um temeroso hálito de enxofre.
- Olá, meu caro amigo. Vejo-lhe tão convalescido... O que houve ?!
Antes que pudesse tecer qualquer resposta, o estranho sujeito indagou:
- É por causa de mulher, aposto... melhor dizendo, pela falta de mulher... ou de grande amor, acertei ?!
E muito antes do “E como você sabe ?!” chegar à sua boca, Mateus pergunta em gaguejo:
- E quem é o senhor, posso saber ?!
- Perfeitamente. Meu nome é Mefis. Mefis Obaid...
Estranhamente, ao pronunciar daquele nome, começou a soar no ar os riffs de “Paranoid”. Não precisava ser um gênio pra saber que banda alguma de pagode oscilaria tão rápido de um grande sucesso popular prum Black Sabbath da pesada...
- Bem, posso lhe arranjar a mulher que você quiser... – ele diz.
Antes que Mateus duvidasse de qualquer proposta, ele adianta:
- Tá vendo aquela mocinha ali ?!
Olha e vê uma gatinha, nível Coperil...
- Pois posso fazer com que ela te dê bola...
O outro dá uma risada de desdém.
- Duvida ?! Pois veja... – e estala o dedo ao ar.
Imediatamente a menina olha pro mancebo, olhar insinuante e insistente. Ela chega a se aproximar, vindo sinuosa, como se hipnotizada... É quando Mefis menciona qualquer coisa. E então a rosa transformou-se em espinhos, o olhar cândido tornou-se nefasto, a repulsão é imediata...
- Viu só ?! Posso lhe conseguir um grande, próspero e perpétuo amor, caso você faça o que eu lhe propor...
O cara então tenta ponderar, sua frio, aquele odor de enxofre fez-lhe começar a questionar certas coisas...
- E o que você quer de mim ?! – pergunta.
Ele dá uma sinistra risada, roça o fino buço com os dedos...
- Quero algo simples, uma coisinha a toa de pouca utilidade em seu vida...
Teme então algum assédio pederasta, mas o interlocutor logo amena:
- Certamente não é isto que você está pensando...
Mateus, a cada momento, fica mais agoniado. As suspeitas tornam-se uma certeza inevitável. O outro rapidamente fecha:
- Vou direto ao ponto: dou a mulher que você desejar em troca de sua alma !!! – e o “sua alma” soa com um trovão, algo que arrepia...
É então que suas premissas se tornam conclusão:
- Hum, bem que desconfiava... a forma repentina que você apareceu, a vestimenta vermelha, este cheiro de enxofre... peraí: eu já li Goethe, já assisti Chapolin Colorado... Este “Mefis” deve ser de Mefistófeles, certamente. E não preciso de nenhum Google ou de algum disco antigo da Xuxa em rotação anti-horária pra perceber que “Obaid” é Diabo ao contrário !!!
- Bem... Diabo é um dos meus nomes, assim como Mefistófeles, Satã, Belzebu, Tinhoso...
Logo o tremelique, o medo... Mateus não sabe o que fazer com as mãos. Se vê então no “Macário”, de Álvares de Azevedo... O Coisa-Ruim então comercializa:
- Basta assinar este contrato e você terá qualquer garota. Pode ser aquela, ou uma Anna qualquer, uma Gabriela, uma Aline, uma Élcia...
Ele então observa as garotas, mendiga um olhar que pudesse evitar uma possível venda de sua essência; nada acontece...
- E você nem precisa perder barriga ou trocar de óculos... só uma assinatura e a Barra do Mendes vai estar ao seus pés !!!
Seduzido por aqueles argumentos, ele pega a caneta oferecida pelo Diabo.
- Bicão ?! Que caneta filha-da-puta é esta ?!
- Perdoe-me, mas é que a pirataria também já chegou no inferno...
Depois deste jocosa piada irônica, ele se prepara para a assinatura. É quando aparece uma terceira figura em cena:
- Pare, Mateus !!! – grita, em voz celestial.
E entra um ser em corte franciscano, menino Jesus a tiracolo e uma pasta entre o bebê e seu braço.
- Santo Antônio ?! – diz Mateus.
- Sim, sou eu. E vim aqui para impedir que você faça esta insensatez. Como é que você cogita vender sua alma ao Diabo ?! Não era mais fácil você ouvir e executar os conselhos dos outros, não ?!
Logo o Capirocho intervem:
- Epa, sem concorrências !!!! Mateusinho aqui é meu cliente, sai pra lá...
O santo então se senta e abre uma espécie de laptop:
- Calma você, Beiçudo !!! Vou tentar salvar a alma desta pobre criatura... (para Mateus) Mateus, Mateus... você e suas pressas... Parcimônia, por favor !!!! Seu dia vai chegar, acredite, vou checar aqui no meu computador, hum... (fixo pro laptop, como se caçando algo. Cantarola em balbuciado.) Pronto, tá aqui: em março de 2048 ela aparece !!!
Mateus e o Mefis se olham.
- Março de 2048 ?! E eu vou esperar isto tudo ?! – questiona a criatura humana da história.
- Pois então, querido... Assinando este contrato você terá agora, imediato, sem este lengalenga todo... – o odor de enxofre torna-se nauseante.
- Mas não é certo. Isto é ateu, vai contra os Preceitos... – em celestial agudo, tornando-se luz em certos momentos.
- Porra, Santo Antônio... – suspiro poético de Mateus – Março de 2048 é tempo pra cacete !!! Até lá vou tá broxa !!! Por que pra Fernando foi tão adiantado e eu só depois de quase cinquenta anos ?!
- Bem, Mateus... – gagueja o canonizado – Ali é um caso especial, ele tem coragem pra chegar nas garotas, tem um certo charme, é esforçado em tudo na vida... (conclui baixinho) além de torcer pro meu Mengão !!!
O Diabo, impaciente, grita:
- Temos que resolver logo este pandemônio. Tenho muitas almas pra conquistar, muito que pentelhar por aí, meu tempo é sagrad... digo, meu tempo é valioso !!!
Mateus, em crise, expõe:
- Ai, não sei o que fazer. Sou cristão suficiente pra não assinar nada com o Capeta, contudo esperar até 2048 é dose !!!
Santo Antônio, com demasiado senso de justiça, dá sua cartada:
- Bem, Mateus... vou fazer o seguinte: posso adiantar seu nome aqui da lista e te pôr pra, deixa me ver aqui... (olhando novamente para a tela do aparelho, assobia algo) hum... 2016 tá bom pra você ?!
Num quase engasgo, o mencionado indaga:
- 2016 ?! Puta, tá muito longe ainda... não dá pra ser pra amanhã ou no mínimo ainda este ano...
O bendito, coçando sua careca:
- Meu devoto, entenda... Isto tudo é muito burocrático, não depende só de mim... Você ainda não merece o amor, ainda é imaturo pra coisa... (bufando, esmurra de leve uma imaginária mesa) Nem esta pança de cerveja você quer perder !!!
Mefis, batendo impacientemente a caneta no suporte que segura o papel:
- E então, infeliz, vai assinar ou não ?!
Mateus então se vê entre a promessa retardada de um santo e a tentadora proposta instantânea do Diabo:
- Não sei, não sei...
Santo Antônio, protocolar então, menciona:
- Meu filho, entrei em contato com meu Superior e entramos num consenso. Nossa proposta é esta: solidarizados com sua situação, decidimos que sua vez pode ser adiantada e talvez ainda este ano, no mais tardar ano que vem, pinte um esboço de amor para você. Mas isto vai depender muito de você. Melhore e as coisas melhoraram. As coisas não dependem só da gente. Nós, como orientadores e guiadores, apenas damos uma caminho, uma possibilidade, talvez apenas 40% do chamado acaso. O restante é com você, corra atrás, se espelhe nos seus amigos, siga seus conselhos, faça uma academia, melhore seus xavecos, perca a timidez, entre num curso de interpretação, tome mais banhos, varie nos perfumes, masculinize-se !!!!
Mateus engole o engasgo, o Diabo diz enfurecido:
- Qualé, camarada ?! Você vai dar ouvidos a estes blá-blá-blás de botequim, esta filosofia barata de almanaque, estas coisas de João Bidu, não é ?! Caralho, você pode ter a menina mais bonita que suas memórias pode recorrer, assim, num estalar de dedos, num piscar de olhos... E outra: quem garante que este santo não está blefando ?!
Santo Antônio se levanta de sua invisível cadeira:
- Peraí... pelo que saiba que é o pai da mentira é você, ser nefasto !!!
Mateus pede silêncio em mantra, ambos parecem obedecer:
- Ai, meu Deus...
- Deus te ouve, meu filho... – diz o santo – E certamente ele está ao meu lado. Mas você tem o livre-arbítrio para escolher por qual lado ficar...
- Pense nas beneficies que você terá neste momento... – permuta o Diabo.
- Devagar se vai ao longe, meu querido. Pense, Mateus... O amor que o Diabo promete pode ser volátil, algo sem nó. De que adianta sanar uma doença em imediato e não estancar o tumor ?! Pense no que lhe será grato, meu filho... Ela virá um dia, saiba esperar. Te garanto que virá, palavra de quem nunca te abandonou em momento algum... Ouço seu clamor todos os dias, em cada caminhada sua, segurando aquele chaveirinho seu com minha imagem... e sabendo deste seu desejo é que lhe preparo a mais belas das raparigas, mais bela que qualquer adjetivação do rei Salomão em seus Cânticos... Quem sabe não seja uma destas que responderá futuramente à um conto qualquer que você virá a escrever ?!
- Baboseiras, basbaquices vãs... Não ouça estas tolices, Mateus. O caminho mais rápido é o caminho mais certo, mais objetivo, mais concreto...
- O Diabo quer lhe persuadir, eu apenas proponho, deixando-o livre para optar pelo o que seu coração disser... Perdão é dignidade do nosso lado, mas lembre-se que o próprio Deus limitou-o à apenas setenta vezes sete... E reflita: amor, num momento destes de sua vida ?! Você mal tem um bom emprego, ainda vive às custas dos pais, recebe ordens imperiais de sua irmã, mal tem personalidade... Você ainda será grande, maior que qualquer jacarandá-rei, você ainda tá em lapidação, não queira as glórias do diamante quando você mal reluz quaisquer brilhos...
- Já Santo Antônio parece candidato em época de campanha: apenas promete com palavras bonitas, quer diagnosticar algo que virá, que poderá vir... Dou-lhe a possibilidade do agora, sem intervenções ou letrinhas miúdas. Eu mato a cobra e mostro o pau !!!
Mateus grita um “chega”. O Diabo então se pronuncia:
- Chega digo eu !!! Tou cansado deste seu cu-doce. Vem cá: você vai ou não assinar este caralho ?! (passando-o o contrato e tal caneta Bicão)
Nosso anti-herói quixotesco pega o contrato e a caneta, mas antes olha também para o semblante triste do santo. Este ainda parece acreditar num revés da situação. Sua postura cândida faz Mateus perguntar:
- Aquela história de consenso com Deus e as mudanças de plano em relação ao tempo de chegada da minha fofurex ainda tá de pé ?!
- Claro, meu filho, sempre estará...
- Assine logo, mentecapto... Tenho outras almas pra conquistar. Tem aí um tal de Tales que deve ser facinho de subornar. Ele não quer um amor, mas oferecendo qualquer níquel, certamente sai caroço daquele angu !!!
E instala-se um bafafá entre as entidades, Mateus sem saber o que fazer ou qual decisão tomar, medindo comedido as propostas, realmente tentado a inclinar-se para as labaredas do mal, contudo ainda cristão em suas dúvidas...

Então ele fecha os olhos, e ao abri-los, vê-se em sua cama, atordoado e batendo as mãos contra o peito, como que querendo conferir se sua alma ainda existia em seu abalável corpo...