quinta-feira, 27 de setembro de 2012

O SILÊNCIO DAS LÍNGUAS CANSADAS



Isla tava noutra - mudou a cor do cabelo, a marca de cigarro e parte do guarda-roupa... Achando-o pequeno demais, acabou por comprar um novo móvel, pinchou escritos e ritos nas paredes do quarto, ganhou e desistiu de um cão, de uma iguana e de outros namorados... Achando tudo muito chato, planejou uma viagem de Kombi pela América Andina, provar novas marijuanas, nadar em desconhecidos rios... Pensou, cogitou, juntou grana, mas houve empecilhos e a viagem não passou de um recorte de revista espetada num mural. Diante de tantos fracassos, não descartou ir num analista: contou notas esverdeadas que mantinha há meses num pote de biscoito. Com elas acabou comprando um Joyce – pra variar, derrotou-se na página 52... Abandonou o Ulisses numa prateleira, ao lado de outros livros comprados, ganhos ou roubados, muitos jamais lidos ainda... Esboçou uma tela, esta sim concluída em tempo recorde. Deixou-a pendurada por uns dias, contudo um amigo, achando-na inovadora e muito além de quaisquer padrões, acabou levando o quadro com sua permissão. Furtou um pacote de bolachas num grande hipermercado, quebrou o cofrinho e comprou cigarros com os poucos centavos arrecadados, chorou por não ter capital suficiente, mas se imaginou beatnik e isto a contentou... Chegou a transar com dois carinhas – um por tesão, outro pra garantir a dose de vodka do momento... – antes de conhecer Iago, o piromaníaco...  

Iago merece um parágrafo de destaque da vida: nasceu prematuro de meses, foi considerado um milagre pelos médicos da pequena cidade; sobreviveu à incubadora, tomou leite especial, pensou-se que teria um certo retardo mental, veio a falar só com três anos e meio e foi diagnosticado autista. Mas logo fez amizades na escolinha tradicional, mudou a cor dos olhos com o tempo, deu seu primeiro beijo antes dos sete... Aprendeu algumas palavras em latim com o avô, impressionou-se com o velório de um tio que morreu enfartado, mudou de cidade duas vezes por causa da profissão do pai... Numa destas andanças, conheceu Jimi Hendrix...

E quando Iago conheceu Jimi Hendrix também merece um destaque especial: fora na casa de um dos colegas das várias escolas que passara ao longo de seu processo educacional. Um sábado, chovia e fazia sol ao mesmo tempo, era tarde da tarde, uma turma se preparava para experimentar a primeira droga lícita da vida deles: uma garrafa de cachaça encontrada no cesto de roupa suja da casa de um deles... Foi quando um dos cicerones pôs um VHS no 7 cabeças da residência: nele o show de Hendrix no Moterey Pop Festival de 67 e a emblemática cena – um jovem ébano ajoelhado diante de sua guitarra, sacrificando-a nos acordes de Wild Thing. A execução da música, o solo do baterista, a performance de Hendrix, num gestual misto de sexualidade e misticismo, a chama consumido vagarosamente o instrumento, tudo aquilo clareava sua antes sépia retina. Tinha onze incompletos e sentia-se multicolor daquele momento em diante...

O pai de Iago, achando-o rebelde demais, resolveu matriculá-lo numa escola de música. Por sonho e imposição paterna, começou com uma sanfona. Aprendeu com esmero nota por nota, tirou algumas canções populares com qualidade profissional, apresentou-se nas bodas de argila dos avós. E foi aí que sua piromania aflorou-se: no exato momento em que executava os tons iniciais de Triste Partida lhe veio à mente a ícone lembrança de Hendrix... Não pensou duas vezes: para espanto de todos, postou a sanfona no solo do palco, tirou uma caixa de fósforos dos bolsos e ateou fogo na Scandalli 120 baixos ainda na terceira parcela do 0+10... Após analise familiar, o ato foi considerado como revolta juvenil e deu-se um crédito pro garoto. O pai, aficionado por ter um rebento artista, custeou-o outro curso, desta vez escolhendo o burguês violão como possível aptidão do jovem. E novamente houve uma dedicação ímpar, a descoberta dum tocar limpo e raro, o professor chamava-o de “meu Baden Powell”... Animados, os pais o inscrevem num festival promovido por uma TV local. E lá se via ele, black-tie, sudorese na testa e axilas, o nervosismo, a ânsia incontida de queimar alguma coisa... Sentou-se na cadeira defronte ao microfone, observou a câmera e o sinal do diretor... Optara por uma bossa-nova qualquer, um instrumental que lhe impedisse a audição de sua voz mutante de adolescente. De repente a comichão; pára e olha austeramente o braço do violão. Sem pestanejar, faz o mesmo e mecânico processo: instrumento ao solo, fósforos, fogo alimentado por borrifos de uma pequena bisnaga com álcool. Gota d’água pra família, a atitude foi amplamente divulgado nas cercanias, constrangimento geral, a mãe quis suicídio, o pai pensou em pedir remoção... No fim decidiu-se pela internação de Iago num manicômio. Dois meses a base de remédios tarja preta – o que não lhe foi nenhum incômodo. Tomava uns e guardava vários, roubava muitos das dispensas. Tudo ia puma mochila onde planejava fuga. Por ser relativamente bonito, acabou por se envolver com algumas enfermeiras. Chegou a transar com sua própria psicanalista durante algumas sessões... Conseguiu fugir com facilidade. A família preocupou-se em primeira instância, mas diante as dificuldades em encontrá-lo nas redondezas, acabou por desistir dele. A polícia quis a priori inibir as atividades de um piromaníaco solto nas ruas, mas analisando friamente seu histórico de só queimar inocentes instrumentos musicais, acabou por arquivar o caso... Iago, de carona em carona, vagando clandestinamente por trens e ônibus interestaduais, acabou por se tornar um passageiro do mundo, transeunte sem passaporte, enchendo sua canastra de riquezas de amigos e farras... Por algum acaso do destino, ele foi caber na vida de Isla.

Nem todo aquele inferno astral sádico iria impedir Isla de participar daquele lual – quando a Alê ligou, ela sentia que deveria cancelar seu programinha “pipoca-pantufa-filmes de Wim Wenders na TV”: “vai ser bacana, Isla... vamos?”, “ah, não sei...”, “qualé, vai ser muito bom...”, “quem vai tá lá?”, “o Binho, o Inácio, a Lucy, Lico... ah, tem um carinha muitcho lôco que apareceu agora na galera... acho que ele combina contigo...”. Sabia da furada que era embarcar nas dicas de sua amiga, mas guiado sabe lá Deus pelo quê, ela questionou “carinha novo, é ?!”, “é sim... o nome dele é Iago ou Tiago, não sei ao certo...”. Ela calou-se, parecia esperar a continuidade da oferta de Alê “me falaram que o olhar dele é igual ao do Ian Curtis...”, “e é ?!”, “sim... e que toca um violão do capeta...”. Despediu-se dizendo que talvez pintaria por lá, despiu-se e desinibiu-se, só olhou as horas e desceu...

Chegou ao espaço verde do campus, vagou seu olhar a procura de algo. Logo foi encontrada por Alê “dá um tapa neste aqui, tá dos deuses...”, disse rodopiando. Isla aspira um pouco da seda, logo pergunta “cadê o povo ?!”, “cadê o povo ou cadê o carinha com olhar de Ian Curtis ?!”, diz Alê, rindo. Sem querer responder a esta retórica, Isla só pronuncia “você tá muito emaconhada, sua puta...”, pega a guimba e puxa unzinho de leve. Então Alê a leva pruma rodinha de violão logo à frente “táli seu Curtis...”. Isla procurou-a com uma fisionomia de míope, parecendo estar diante duma forte luz que a cegara momentaneamente... Apenas escutou um alguém tocando Casa no Campo e cantando os versos do querer o silêncio das línguas cansadas... Identificou-o na hora, o olhar magnético de Ian Curtis... “quer conhece ele ?!”, “hãn ?!”, “o cara... cê qué conhecer agora ?!”. Sentiu borboletas no estômago, pensou na banalidade de pensar isto, coisa mais estúpida e tola de ser dita... “qué ou não ?!”, “ah, sei lá... prefiro que role naturalmente...”. A outra apenas riu. Encostou-se entre conhecidos, cumprimentou-os, cantou algumas do Ventania, inventou um inglês pra canções dos Stones e de Dylan, cantarolou  outras MPBs, ficou no “lá-lá-lá” em várias delas, sorriu, fumou, cobrou de Índio um Ginsberg emprestado, envergonhou-se por descobrir que o referido livro não estava mais com ele, pensou em como livros acabam sendo cíclico mesmo, riram e combinaram de roubar uns na biblioteca pública do campi. Foi na saída de Índio, rodinha já desfeita pelo fim da droga vigente nela, que Iago se aproximou... Ela acanhou-se um pouco, beijou-lhe a face depois das apresentações, esfregou os ombros como se sentisse frio. “cê tá sentindo frio?!”, “frio?!”, “é, frio...”, “frio?!”, ele riu das repetições, ela achou-se panaca... Negou o frio, começaram a tecer o joguete de conhecimento um do outro... Ela curtiu o colete dele, de crochê, meio indígena. Ele a chamou para irem num canto mais reservado, se beijaram cinquenta e seis minutos e vinte e oito segundos depois dos primeiros ois... Discutiram sobre sua semelhança com Ian Curtis, livros já lidos, cinema, projetos de vida... Ele falou sobre sua história com Hendrix e sua piromania, hoje já um tanto controlada. Ela achou aquilo cômico, riram e perceberam que em certas completudes o nexo acaba sendo mero detalhe...

Nenhum comentário: