terça-feira, 25 de setembro de 2007

A NOITE DO POETA

“Poeta ?!”
“É, poeta...”
“Poeta-poeta ?!”
“Sim, poeta-poeta...”
“No duro ?!”
“É...”
“Então declama um poema pra mim...”
Este era o mal de declarar-se poeta: sempre te pedem declamação, parecia uma prova. Ela era amorenada, linda, jovem. Estávamos num museu, ela tomando sorvete e eu louco por um cigarro.
Respirei e então soltei:
“ “Ora (direi) ouvir estrelas ! Certo
Perdeste o sendo!” E eu vos direi, no entanto,
Que, para ouvi-las, muita vez desperto
E abro janelas, pálido de espanto... ”
Ela não pestanejou. Não percebera que os versos não eram meus, mas sim de Bilac.
“Lindo !”, disse.
Agradeci. Estávamos diante um quadro de Magritte, As boas relações.
“Nossa, que quadro complicado ! Você bem que poderia interpreta-lo pra mim, né ?!”
E o quê eu iria dizer a ela ?! “Oh, aí é um quadro onde eu vejo um olho, um balão, um nariz, uma boca, ambos em harmonia tal que nos representa um rosto e blá-blá-blá...” ?!
“Sim, mas por quê você acha que eu sou a pessoa mais indicada pra lhe explicar este quadro ?”, perguntei.
“Sei lá... Você não é poeta ?! Pois então. Poeta tem mais sensibilidade pra estas coisas...”, respondeu enquanto trançava levemente o cabelo com o mindinho.
Novamente aquela coisa da incumbência do poeta. Tinha que pensar bem no que dizer. Afinal eu queria agradar a gatinha...
“Bem, Magritte quis mostrar... Olha.... Sei lá.... Peraí...”
A garota tinha um olhar de esperança, um olhar que demonstrava a espera de uma boa resposta... Nada de mais poderia acrescentar a uma idéia comum. Via apenas um quadro com suas composições surreais, metafísicas, qualquer palavrinha complexa e eloqüente que possa explicar esta aberração de pensamento agora...
“E então ?!”, pergunta a garota – garota sim, seus primaveris 16, 17, no máximo 18 anos...
“Topas uma bebidinha ?!”, pergunto aflito.
“Eu não bebo...”, numa voz dengosa.
“Bem... Eu te pago qualquer coisa. Vamos ?!”
Ela acabou aceitando e eu dei graças aos céus por ter saído daquele museu. Entramos no primeiro barzinho que encontramos. Puxo a cadeira e ela se senta. Logo também me sento e chamo o garçom.
“Você bebe o quê ?!”, pergunto a ela.
“Hummm... Um refri, pode ser ?!”
Adorei o jeito mimoso como ela pediu. Claro que concedi e peço, além do refrigerante, uma cerveja estupidamente gelada. E um cinzeiro também...
“Cê se importa ?!”, indago delicadamente a moça.
Ela diz que não com a cabeça e logo eu tiro um cigarro do maço. Surpreendo-me porque no bar rola um Stevie Wonder das antigas.
“É raro num bar rolar um sonzinho destes, né ?!”, pergunto.
Ela concorda com a cabeça.
“Stevie Wonder...”, explico, “...Boogie On Reggae Woman”
E a gata faz um “ahhhhh” bem prolongado, parecendo não saber que patavinas eu estava falando.
“Perdão mas eu não perguntei seu nome...”
“Moai...”
“Moai ?!”
“É. Que nem aquelas estátuas da Ilha de Páscoa...”
Não sabia que aquelas estátuas da Ilha de Páscoa se chamavam moais. Achei charmoso um nome destes, bem exótico, assim como ela própria em carne.
“E o seu ?!”, ela pergunta.
“Encantado... Damasceno.”
“É bem nome de poeta mesmo...”
Lá vinha ela com este assunto e o garçom com nossos pedidos. Pergunta, depois, se queremos algo para comer, o que recuso. Estaca duro, só tinha grana pra esta e mais uma...
“Você já publicou algum poema seu ?!”, insiste a garota.
Engasgo, tento brindar com os copos, dou o primeiro gole e logo respondo:
“Bem...eu já publiquei um poema meu num pasquim dos meus tempos de faculdade...”, minto.
“Legal...”
Ela sorri e bebe um pouco do copo com refrigerante. Tinha dedos delicados, unhas bem tratadas, dentição perfeita, certamente a garota mais linda que já tive um mínimo de contato. Fazia frio e céu nublou-se duma hora para outra. Moai esfrega suas pequenas mãos uma na outra. Ela devia ser daquelas que tem piercing no umbigo. Me contive e não perguntei isto...
“Você freqüenta sempre este museu ?!”
“Eu ?! Sempre, sempre...”, minto novamente.
“Estranho nunca ter lhe visto. Eu trabalho aqui perto e sempre que posso venho ver os quadros em exposição. Adoro pinturas...”
Ela trabalha ! Uma vantagem em relação a mim: estar desempregado é foda numa hora destas...
“Já trabalha ?! E você faz o quê ?!”
Ela ri. Logo diz:
“Desculpe o riso. É que você disse um “já” assim... Poxa, tenho 22...”
“22...jura ?! Pois parece bem menos...”
Ela ri novamente. Como é bom vê-la sorrir desta maneira...
“É sério. Te daria uns 17 na lata...”
“Já ganhei o dia hoje viu...Pois é, tenho 22 e trabalho na pet shop ali da esquina...”
“Poxa...”
“Pois é... adoro animais e aí, né... dá um dinheirinho bom... e ajuda a pagar minha faculdade...”
Adorei este acanhamento para mencionar sobre seu atual ofício.
“E você, trabalha no quê ?!”
Aí ferrou ! O quê argumentar ?! Dizer que não trabalho, que vivo do que mamãe dá, que sou um preguiçoso nato, que tenho um diploma de graduação fudido e que não me garante estabilidade profissional ?! Deveria pensar no que responder... No ar um classicão do Stevie: My Cherie Amour.
“Baladinha massa, né ?!”, ela me diz.
Concordo como disfarce para a questão antes mencionada:
“Bem legal mesmo... O Stevie Wonder jovem é escroto pra caralho !!!”
Terminei o argumento e pensei no quão chulo foi ao empregar tal vocabulário. O que pensaria ?! Talvez que eu escreva poesia marginal, hip-hop ou coisa do gênero...
“Sim, perguntei onde você trabalha né...”
Moai retorna ao assunto. Gélido, pego o copo da morna cerveja.
“Que tolice a minha perguntar isto, né ?!”, diz, “Você é poeta, né ?! Deve viver de suas palavras... Aposto que você escreve nalgum jornal...”
Não quis desmentir. Então só confirmei com um balançar de ombros. O pecado de mentir deve ser menor se não as dizemos, não é ?! Pergunto se ela deseja mais alguma coisa (torcendo para que sua resposta fosse negativa). A garota diz que não e até paga a parte dela.
“Mas não precisava... Eu ia pagar...”, digo, com a lama aliviada e o bolso com uns trocados a mais pro buzão.
“Qualé, poeta ?! Direitos iguais: se eu consumi, eu pago !”
Independência feminina, vá se entender... Ela se levanta e diz que tem que ir embora.
“Poxa, mas por que assim ?!”, tento convencê-la do contrário.
“Não dá, infelizmente... Tenho uma prova cavernosa amanhã. Aproveito o curto tempo pra estudar...”
Entendi. Não se podia concorrer com uma prova de faculdade. Me levantei e dei os cumprimentos de despedida.
“Adorei te conhecer, Damasceno...”
“Eu também, Moai...”
“Toma aqui me número de telefone. Vê se me faz uma poesia e depois me entrega, tá ?!”
Peguei o papel e agradeci, prometendo fazer o poema o mais rápido possível...
“Faz um bem bonito, que nem aquele que você me recitou lá no museu...”
E saiu dando acenando. Ainda distante, lá do ponto de ônibus, deu uma duas olhadas antes de pegar sua condução e ir. Confesso que cheirei o papel, na esperança de ali ainda conservar um pouco do seu perfume. E não foi em vão: conservara um pouco daquele cheiro peculiar, um aroma agradável, uma delícia de mulher... Findei meu débito com o bar, elogiei a qualidade musical do ambiente e sai. Caminhei e observei cada paralelepípedo da rua, as rachaduras das calçadas, pequenos lixos encravados no local... Assobiei uma canção do qual nem lembrara mais, olhei mais uma vez a grafia dos números de Moai, o nublado do céu fez-se uma rala garoa. Ainda me abriguei noutro boteco encontrado e lá pedi uma dose de algo bem forte para combater o frio e animar. Bebi-o de uma só vez, olhei para uma morena vesga (que correspondeu ao olhar), olhei a noite do poeta onde boêmios e trovadores exorcizavam seus demônios cotidianos, pequenos operários que por um momento giganteavam sua ínfima existência no dorso cálido de uma puta qualquer... Percebi o quanto de mundo havia em mim e o quanto de mim correspondia ao tudo universal. Quis chorar diante de tal constatação, o precipitar terminou enquanto um senhor de arcada dentária falha cantarolava algo de Paulinho da Viola das antigas. Então esmiucei cantar o refrão e segui...

Um comentário:

Anônimo disse...

Grande Mateus, belo texto esse seu. Consegui transportar-me para dentro do enredo. Muito bom mesmo. Concordo piamente com o que escreveras e com o estereótipo do poeta criado pela imaginação de Moai. Sinto-me, por vezes, atingido por tais ogivas oriundas de algumas pessoas que se encantam pelo que escrevo. Parabéns! Abraço, Germano.