"O peso do mundo
é o amor.
Sob o fardo
da solidão,
sob o fardo
da insatisfação..."
(Allen Ginsberg – “Uivo e outros poemas”)
14:16 - Esbarraram-se num dia de chuva. Olhos seguindo o olhar do outro, um inconsciente passar de língua no canto dos lábios; ela lendo um Ginsberg, ele ouvindo a última do Paul McCartney... Ela segurava um sorvete verde em uma das mãos, ele não soube identificar o sabor... Usava uma camisa do Chapolin e mascava um já insosso chiclete, ela rangia os dentes ao dormir e já tinha uma criança de seis. O guarda-chuva dele era esverdeado, tal qual o sorvete dela, ela se abrigava na marquise do ponto de ônibus. 14:10 - Ele a viu primeiro, pensou em algo sacana... Ela percebeu, quis imaginar sons de violinos – uma cartomante havia dito que ela escutaria tal som quando encontrasse o homem de sua vida – mas acabou pensando em algo sacana também... Ela estampava uma frase do Matanza no punho canhoto e uma capa do Pink Floyd numa velha blusa desbotada de sol... 14:13 - Ele aproximou-se, fechou o guarda-chuva e perguntou se podia sentar. Não esquivou-se e ele sentou-se no banco... Ele esboçou assoviar algo, olhou o teto da marquise, leu rapidamente uma propaganda de quiromancia que se encontrava colada na estrutura, puxou assunto: “você acredita nestas bobagens?!”. Pensou em responder que sim, mas limitou-se a dar um sorriso de canto. Nisto salientou mais uma pinta no canto da boca, ele achou bonito... “você sabe as horas?!”, “duas e dezesseis...”, ele pensou em fumar, mas respeitou o momento... “você tem cigarros?!” – e aquilo o surpreendeu. Pegou o maço, nele só dois e um isqueiro. Ele pensou que não se nega um cigarro a um fumante e a ofereceu... “num friozinho destes... um cigarrinho cai bem, né?! obrigada...”, ele também acende um, lê mentalmente a capa do livro dela: “‘Uivo e outro poemas’”, “hãn?!”, “o livro... ‘Uivo e outros poemas’...”, “ah, é... Ginsberg. você gosta?!”. Não conhecia. “ele é beatnik...”, ela disse, como se percebendo a ignorância dele. “Índio...”, “como?! não, não, eu disse que é da geração beatnik, saca, Kerouac...”, “não, não... meu nome... me chamo Índio...”. Ela sorri – não sabe se do apelido ou da sua confusão... “Isla...”, e estende a mão... “mas seu nome não é Índio, claro...”, ele sorri, “não, é Tássio...”, “ah, Tássio é mais bonito que Índio...”, ele sorri mais uma vez, “Índio é apelido de infância... vc sabe né, sou meio pardo e tal...” 14:22 – “o tempo parece que não passa né...”, “e nem ônibus por aqui também...”, ele achou que ela iria ri da piada, talvez não tenha entendido... “é, tem horas que não passa um único buzão por aqui...” e trocaram um “pois é” amarelado... 14:25 – “esta chuva não passa...”, ele concorda, “e eu tenho um compromisso urgente...”, ele arqueia as sobrancelhas, como se espantado... “e a tonta aqui não trouxe um guarda-chuva...”, quase automático: “pegue o meu...”, “hãn?! ah, não, não... você vai se molhar...”, “sem problemas, eu pego um ônibus...”, “não, é sério: precisa não...”, “pegue, por favor... assim tenho um motivo pra pegar seu número de celular e pedi-lo de volta...”. Ela olha pra ele, pensa... Ele olha pra ela, pensa que cometeu uma mancada qualquer... “tá, eu aceito...”, logo pegando uma caneta e anotando algo numa página do livro... “toma...”, cedendo-lhe o exemplar, “assim você também uma razão para me telefonar...”, e antes de sair, diz: “página 135...”.
ele folheia o livro, repetindo a dita numeração... lê: “pra você conhecer Ginsberg e me conhecer também...”, vê uma seta apontada prum poema e uma sequência de números abaixo dos escritos... começa a dizer pra si os versos “‘O peso do mundo/ é o amor./ Sob o fardo da solidão,/ sob o fardo da insatisfação...’” 14: 29
15:02 – Já do ônibus, “alô? Isla?”.
“sim, é ela...”, não reconhecendo o estranho número no visor...
“eu, Índio
ela ri, logo dizendo: “certo... achei estranho você falar assim... prum índio seria mais coerente você dizer ‘mim, Índio...’”, rindo novamente.
ele não acha muito engraçado, mas emite barulhos de riso. “pois é, sou eu...”
“você já quer o guarda-chuva, é?!”
ele ri com franqueza, “não, não... só liguei por ligar...”
ela faz um “ah” bem longo... “ainda tá na marquise?!”
“não, não mais... já tou no 547, só foi passar agora e...”
interropendo-o: “não brinca?!”
“é sério: só foi passar quase três horas...”
“não, não é isto: você também pega o 547?!”
estranhando o questionamento, diz: “sim, linha Epitácio Pessoa-Conjunto Lima...”
“eu moro no Conjunto Lima...”
“quadra 25?”
“quase: quadra 27...”
“o 27 é bacana também...”, pigarreia, “eu moro nele...”
“você já gripou... viu que não era uma boa me emprestar o guarda-chuva?!”
pigarreou novamente, “não, sem problema...”
ela faz um novo “ah”, desta vez pausado, meio que indicando falta de assunto...
ele pensou em saltar um Jorge Vercilo: “eu tive a grande idéia:/ você na minha teia...”, era o máximo de romantismo que conhecia...
“tá lendo o Ginsberg?!”
“ah, inda não... lerei lá em casa...”
“ó: é pra ler mesmo...”
ele diz um duplo “ok”.
21:09 – Ele lê todo o Ginsberg, acha meio confuso, mas curte... Vai até a janela, olha as estrelas, acende um cigarro e pensa nela. Liga, marca de se encontrarem no ponto dela. Grava mentalmente as coordenadas, demora um pouco, chega...
21: 36 – “oi?!”, “oi...”, “cá tá seu livro... gostei muito...”, “jura?! que legal...”, “o poema que você me indicou também é bom...”, “é, é sim... ah, seu guarda-chuva...”. Ele o pega, segue-se aquele silêncio de quem mal se conhece, o silêncio do não saber o que falar... “pensei que fosse chover a noite toda...”, “cara, seu guarda-chuva me quebrou um galho...”, “jura?! ai, que bom...”, “pois é... meu patrão ia me esfolar vivo se eu deixasse a loja fechada por tanto tempo...”, “hum, fico feliz por isto...”, “acredita que eu sai do trampo só pra ir num sebo comprar este livro?!”, “então cê não leu ainda?!”, “ah, já sim... emprestado, que nem o seu caso...”, uma breve pausa, “aí me encantei e decidi comprá-lo...”, mais uma pausa. Ele puxa uma carteira de cigarros, “quer um?! Agora estou mais prevenido...”. e sorri amarelo. Ela também dá um sorriso de canto e faz negativo com as mãos, “não posso... tou próxima de casa, minha mãe pode saber...”, “e você fuma escondido de sua mãe?!”, “escondido não: tento não fumar na frente dela...”, ele torce a boca, como se aceitando o argumento, ela conclui, mesmo sem ser muito necessário: “questão de respeito, você saca né...”. Ele acende um, bafora a fumaça, “um dia abandono esta porra...”, “ah, por quê?! acho tão sexy homem que fuma...”. Achou que era uma deixa para beijá-la, mas preferiu ser cauteloso... “gostei do poema, de verdade...”, “hum, legal...”, “me peguei neste lance de ‘peso do mundo’”, “hãn?!”, recitando: “‘O peso do mundo é o amor...’”, “ah tá... é, é sim...”, seguindo-se de alguns “pois é”... ela olha o relógio: “caraça, quase dez... tenho que entrar”, “hum, entendo...”, ponderou um pouco e perguntou: “agora que cada um já devolveu aquilo que pegou emprestado do outro, eu ainda posso te ligar?!”, ela o olhou, “sei lá, se você quiser...meu número você já têm...”, achando aquilo talvez uma forma de dispensá-lo, ele sai cabisbaixo. Ela abre a porta, observa-o se distanciar, olha pro chão, alisa o chaveiro... grita: “ei”. Ele se vira pra direção dela... “liga sim, por favor... vou sentir saudades da sua voz...”. Ele acena a cabeça, num sinal positivo e se vira pro caminho oposto... Saiu esmiuçando um sorriso, sabendo talvez que toda história tenha a sua continuação...
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