quinta-feira, 25 de outubro de 2007

URBANIDADES

“21...”
“21 ?! B...”
“Ok... 22...”
“22... C.”
“Confere... 23...”
“D...”
“D ?!”
“É. D !”
“Peraí: é D ou E ?”
“D... O “é” foi de confirmação. Saca ?! “É” de ser...”
“Tá certo, tá certo...”
“Quem tá certo ?! Eu ou você ?!”
“Não, sua anta ! Tou concordando com sua explicação do “é”...”
“Mas quê E ?! Eu marquei D !”
“Ai,ai,ai... Que coisa mais confusa ! Acho que eu tô precisando duma breja... Ô do isopor !!”
“Sim, mas me diz aí: a 23 é D ou E ?!”
“Como assim “D ou E” ?! Eu marquei C...”
“C ?!”
“É. C...”
“Caramba: você marcou C ou E ?!”
“Puta-que-pariu, Popeye !!! Eu marquei C !!!”, logo vira-se pro ambulante, “Tem cerveja aí ?!”
O ambulante nega.
“Poxa vida... E agora ?! O Hermes é daqueles que só entrega a prova no último minuto. Vá cagar viu...”
“Pois é... O cara estudou muito. Acho que ele passa desta vez...”
“Tomara. Só assim ele pagar a grade que prometeu...”
“Já eu nem peguei na apostila...”
“E eu nem tive tempo pra isso...”
“Qualé de “não tive tempo”, Silas ?! Tu é o maior vagabundo...”
“Tá bom, tá bom... Na 23 você marcou D mesmo ?!”
“Foi. Pelo menos foi a que eu achei mais certa... Sei lá, cara. Chutei total nesta...”
“Bem, eu acho que poderia ser todas, menos a D. Você calculou a porra da equação ?!”
“E tinha que calcular ?!”
“Evidentemente, Popeye !!!!”
“Bem, eu vi qual era a mais bonitinha...”
“Bonitinha ?!”
“É... Ah, sabe de uma: vamos procurar umas Brahmas pra tomar...”
“Cê tá certo ! Porra, já é quase seis. O Hermes demora pacas...”
“A Betina tá vindo aí...”
Betina se aproxima e cumprimenta os dois – Silas, o mais baixo e de barba por fazer, e Eugênio, vulgo “Popeye”, mais forte de corpo e cabelo cortado na máquina um.
“E aí, gatinha ?!”, pergunta Silas, “Como foi ?!”
“Me fudi total !!! Acho que vou zerar na prova...”
“Caralho ! E olha que você estudou...”
“Estudei bosta ! Dei umas garimpadas, brinquei muito... Dei uma olhada rápida na parte administrativa, mas não me valeu de nada. Porra, os caras parece que falam grego !!!”
“Acontece, ninha, acontece...”, tenta consolar Popeye.
“Outros concursos virão né ?! O edital do ISPP sai pra daqui um mês...”
“Foda-se este edital ! Tou afim é duma breja geladinha. E aí, vamos ?!”, convida Silas. Nunca demonstrara, mas tinha por Betina um amor platônico acima de qualquer platonismo.
“Bem... Mas não vai demorar muito não, né ?!”
“Qualé, gata ?! Só o suficiente. Tu não tá estressada desta merda de prova não ?!”, pergunta Popeye, também bastante interessado na garota.
“O problema é só o Hermes...”, diz Silas.
“O Hermes tá fazendo a prova ainda ?!”, pergunta Betina pelo seu secreto desejo.
“E não ?! Aquele só sai junto com os três últimos da sala...”, responde Popeye.
“Nem lembra, cara... Pior é que os três últimos só podem sair juntos. Porra !”
“E por que a gente não vai antes ?!”, indaga a moça.
“Porque este concurso é tão fodido que colocou a gente pra fazer a prova neste fim de mundo ! Tá vendo aí: não tem um bar decente nesta pocilga !!!!”
“Calma, Silas... O Hermes tá vindo aí...”
E realmente o Hermes estava saindo da escola pública onde o grupo fizera a prova. Vinha com cara de cansado, como um soldado retornando da guerra. Lânguido, dá um sorriso para a turma, logo se aproximando.
“Acabou, finalmente...”, diz.
“E aí, como foi ?!”, perguntam ao mesmo tempo.
“Gente, sei não...”
“Este discurso já é velho... Ele sempre fala assim e acaba passando. Só não tá num bom emprego porque naquele concurso do banco ninguém foi chamado e num outro ele ficou por um pra passar...”
“É verdade, Silas ! O cara é crânio !!!!”
“Mas a coisa não funciona assim não, Popeye... Um concurso é diferente do outro...”, diz Hermes, que não olha pra Betina, “...neste, por exemplo, a parte de Matemática e Informática tava dum horror...”
“E o que você achou da parte administrativa ?”, pergunta Betina.
“Moleza. Acho que vou fechar...”
“Então, vamos ao bar !!!”, propõe Silas.
“Bar ?! Hum, vai dar não...”
“Qualé, Hermes ?! Vai fulerar agora ?!”
“É que eu quero participar de um chat que vai discutir e corrigir as questões da prova...”
“Vai tomar no cú, cara !!!! Tu vai deixar de tá com seus manos pra ficar pendurado num computador,corrigindo prova ?!”
“Fala com ele assim não, Popeye...”, defende Betina, “... se ele não ir...”
“Pombas, Betina !!! A gente ficou este tempão todo esperando pro porra não querer ir ?! É uma filha da puta duma sacanagem, não concorda ?”, expressa com fúria Silas.
“Bem, gente... Acho que dá pra tomar uma cervejinha...”
“Assim que se fala, Hermezão !!!”, diz Popeye aproximando-se dele e o entrelaçando os ombros.
“Mas tu tá indo por pressão é ?!”, questiona Betina.
“Me deixa em paz, garota ! Tou indo porque quero, caralho !!!”
E então entram os quatro no Gol-94 de Silas. O dono na direção e, para o desgosto de Betina, Hermes na frente. No banco de trás, Popeye tenta encostar o máximo possível na garota.
“Sim...”, pergunta Silas antes de ligar o carro, “Ô Hermes... Na questão 23 tu marcou o quê ?!”
“23 ?! Hum, deixe-me ver aqui no caderno...”, e ele abre o caderno de provas.
“A 23 tava água. Letra D...”, diz enfático.
“D ?! Jura ?! E você calculou ?!”
“Claro. A formúla era bem simples...”
“Mas D ?! Justo D ?!”
“Por que o espanto ?! Você marcou qual ?!”
Nem precisou o Silas responder, pois o Popeye logo interviu no colóquio:
“Ele marcou C...”
“A C ?!”
“A letra “A” não... Ele marcou a C.”
“Foi o que eu disse, Popeye... Você marcou a C, Silas ?! Mas a C não poderia ser...”
“E posso saber por quê ?!”, pergunta Silas.
“Hum, deixa-me ver aqui... Já sei qual foi o seu erro...”
“Então diz aí...”
“Você esqueceu de elevar o número ao quadrado.”
“E tinha que elevar ?!”
“Claro ! A questão pedia a resposta em número inteiro...”
“Putz ! Que vacilo...”
“Pôxa, galera ! Vamos logo aí !!!”, diz em grito Popeye, “Minha goela tá seca aqui e o clima aqui atrás tá pegando...”
“Tá nada !”, fala em clamor Betina.
Finalmente saem.

Já no bar, Hermes folheia por várias vezes o caderno de questões do concurso. Betina o observa. Popeye palita a última azeitona do prato e olha levianamente para a garota e Silas faz as contas.
“Hum... Nove cervas, mais os aperitivos...”
“O guaraná que eu pedi eu pago...”, proclama Betina.
“Mais a do garçom... Aí vai dar... uns...”
“Se você quiser eu pago a sua parte...”, fala Popeye.
“Obrigada. Mas eu pago...”
Diante tal conclave, Hermes parecia aéreo.
“Buceta ! Errei quatro questões...”, diz, “...acho q vai dar pra passar não.”
“34 reais e 90...”, anuncia Silas.
“Você só errou quatro questões ?”, pergunta Betina a Hermes.
“Pelo meu prognóstico sim...”
“Então você vai passar...”, fala Popeye.
“Sei não... A prova é da CESPE...”
“E o Kiko ?”
“O negócio é que se você erra uma, anula uma certa...”
“E é ?!”
“Obvio ! Cê não sabia não ?!”
“Nem fazia idéia desta porra...”
“Sendo assim eu já tô fudido...”, interfere Silas.
Popeye põe a mão no bolso da calça e tira de lá sua carteira.
“Hum... Colaboro com vintinho...”, diz.
“Belezal ! Eu tenho dez pilas. O resto á pra pôr a gasosa, né ?!”, explica Silas.
“Eu só tenho quatro reais...”, fala Hermes.
“Aí vai ficar faltando noventa centavos... Pior que o dono deste bar é muquirana pra caralho...”
“Deixa que eu completo...”, e Betina bota uma nota de cinco reais no meio das outras que estão na mesa.
“Massa ! Deixa eu ir lá pagar e trago seu troco...”, diz Silas, logo levantando-se.
“Sem grilo...”
“Então eu trago a de já ir...”, brinca Silas.
Betina concorda enquanto Popeye anuncia que vai ao banheiro.
“Hermes...”, com malícia fala Betina, “...acho tão legal este seu empenho nos estudos...”
“Bem...”, ele responde sem tirar os olhos do caderno, “...quem quer algo hoje em dia tem que pensar em passar num bom concurso público...”
“Pois é...”, e ela passa sua mão na mão dele, “...muito bom saber desta sua conscientização, da sua maturidade...”
“É...”, e tira a mão do alcance da mão dela, “...meu professor de cursinho dizia que a gente não estuda pra passar num concurso. A gente, na verdade, tem que estudar até passar num concurso. Amanhã mesmo eu começo a estudar prum outro...”
“O do ISPP ?!”
“O do ISPP, o do banco Gualdin, da Secretaria governamental... O estudo não pode parar !”
“Pois é, menino... Se você quiser formar um grupo de estudo... qualquer coisa é só me chamar...”
Antes que Hermes dissesse um tímido “sei lá, pode ser...”, chega Silas com mais uma garrafa de cerveja.
“Atrapalho ?!”, pergunta.
“Não...”, fala o outro.
Não foi o pensamento de Betina, febrilmente mais encantada por aquele de óculos de grau e camisa pólo verde. Logo chega Popeye e todos terminam a bebida num silêncio interrompido por piadinhas ou comentários sem sentido. Popeye aproxima-se mais de Betina, que parece permitir a ousadia. Silas percebe, mas nada comenta ou poderia fazer para o contrário. Hermes também observa o clima do casal em potencial e não age em momento algum, a não ser para limpar as lentes dos óculos. Logo que os põe no rosto, resolve discretamente passar olhares para Silas, que não retribui a atenção. Guardava-lhe uma paixão secreta, discreta para não escandalizar, um fogo que parecia calor, um frio que carecia de afago. A noite termina com (mais uma vez) Betina trocando beijos com Popeye, Silas querendo desafogar suas mágoas no travesseiro e Hermes escondendo de todos a sua condição e seu querer pelo baixo com barba por fazer.
Assim foi, pelo menos até acontecer mais uma prova de concurso público.

Um comentário:

Anônimo disse...

Bravíssimo, muito bom o conto, um final surpreendente e uma situação bastantente comum a nós, são os ingredientes principais desta obra prima da literatura "Mateusiana", não poderiamos esperar outra coisa além de um futuro clássico das letras universais vindo deste mestre das palavras.
Da lhe Mateus!!