“Me diz o que é o sufoco que eu te mostro alguém a fim de te
acompanhar...” (Último Romance, Los Hermanos)
Chovia
e ela imaginava que algo novo aconteceria. Acabara de sair de uma cartomante e
esta garantira: de hoje não lhe escapava o amor ! Fazia tempos que acreditava
nisto. Há pouco deixou de crê-lo... Contudo, levou fé no que dizia aquela
cigana de sotaque romeno. Pensou no destino de Macabéa, personagem do último
livro que lera. Temeu acreditar em tarô e acabar se estrepando. Preferiu,
então, aumentar o som de seu diskman: Último
Romance, música de um grupo pop que o
sobrinho escutava no momento. Não sabia o porquê, mas simpatizara com a faixa.
A cartomante também disse que o amor apareceria vestido de preto.
Ele trajava uma camisa amarela. Estava
perto dos 40, via-se no grisalhar de suas sobrancelhas. Nenhuma mulher havia
lhe despertado o senso de querer morrer acompanhado. Cultuava uma barba,
igualmente grisalha, e raspava o cabelo com máquina um. Mascava chiclete
enquanto esperava o próximo metrô. Tirou de sua mochila uma revista sobre
discos voadores. Era um ótimo argumento para puxar conversa.
Um homem de paletó negro aproxima-se dela.
Estão sentados num banco. Ela tira o fone dos ouvidos e pergunta:
“Por favor, quantas horas são ?!”
“Dez e meia...”, responde secamente o
homem.
Ela não percebera a gafe que acabara de
fazer: em seu pulso havia um relógio. Olhou para as mãos dele, nenhum sinal de
aliança.
“Está quente, não ?!”, diz para iniciar
assunto.
“Imagina para mim que tenho que trabalhar
de paletó...”
“O senhor...”
“Você. Pode me chamar de você...”
“Ai, desculpe ! Mas eu ia perguntar onde...”
“Advogado. Trabalho num fórum aqui
próximo...”
“Advogado e anda de metrô ?!”
“Que mal há ?! Acredita que tenho 36 e
ainda não sei dirigir ?!”
Ela sorriu. Também tinha 36. A cartomante
estava certa...
Ele folheou algumas páginas. Detestava
discos voadores e alienígenas. Guardou a revista e pegou sua carteira de
cigarros. Só haviam dois. Prometera parar de fumar, mas ainda restavam dois no
maço. Botou um na boca.
“Aí, tem mais um cigarro ?!”, perguntou-lhe
uma garota.
Ele deu o último.
“É o seu último ?! Desculpa, tá ?! Se o
senhor quiser, eu...”
“Pode me chamar de você. Fica com o
cigarro. Prometi parar de fumar...”
A garota sorriu. Ele percebeu um brilho
entre seus dentes.
“Paloma...”, disse estendendo a mão.
“Pomba...”, ele aperta sua mão.
“Como ?!”
“Paloma. É pomba em espanhol...”
“Aaaaahhhhhh...”, bem prolongado mesmo.
Ele disse o nome dele. A garota bocejou.
“Estou sendo chato ?!”, perguntou.
Paloma baforou a cinza fumaça e respondeu
que não.
“Tu me paga um café ?!”, disse audaciosa.
Ele só tinha uns trocados para pagar o
metrô. Resolveu aceitar o “convite”, voltaria a pé.
“Você acredita em destino ?!”
Ela já conhecia aquela cantada. O homem de
paletó batia os dedos numa pasta, também negra.
“De vez em quando...”
“Como de vez em quando ?!”
“Tem fases em que acredito menos, tem
outras que acredito mais...”
“Mas você precisa ter uma decisão: ou crê
ou não !”
“Ué, depende da época ! Você acha errado
ter várias opiniões sobre a mesma coisa ?!”
O homem ficou calado.
“Mas por que você me perguntou isto ?!”,
ela.
“Não... por nada... quer dizer...”
“Pode dizer !”
“Promete não rir ?!”
Fez que sim com a cabeça. O homem então
disse:
“É que eu... ai, fico tão constrangido de
dizer isto !”
“Diz logo !”
“Sabe, hoje o meu horóscopo dizia que eu ia
encontrar o amor de minha vida...”
“Não brinca ?!”, num misto de desdém e
ilusão.
“É sério ! Você deve estar achando que isto
é uma arma de paquera, não é ?!”
Ela não respondeu. O homem continuou:
“Pois é verdade ! Eu acredito em destino,
em horóscopo. Pode achar meio fresco...”
“Não, eu não acho !”
Pensou em contar a historia da cartomante.
Mas censurou-se. Não era bom mencionar tais “teias do destino”...
“E o quê dizia o horóscopo ?!”
“Dizia que o dia estava favorável para se
encontrar o real amor de sua vida e que era preciso notar as pessoas com
bastante perspicácia...”
“Disse favorável ou que era certo este
encontro ?!”
“Favorável, creio. Qual é a diferença ?!”
“Ora, favorável não é certeza exata. Você
consulta ciganos ?!”
“Não. Por quê ?!”
“Por nada. Digo porque cigano diz termos na
lata: “vai acontecer”, “é certo isto...” Compreendeu ?!”
O homem fez que sim com a cabeça.
“E você acha que sou eu o amor de sua vida
?!”, ela perguntou.
“Sei não... vai depender de você...”
Ela sorriu laconicamente.
“Aceita tomar um café comigo ?!”
Ela aceitou.
“No duro ?! Tu curte Los Hermanos também
?!”
Ele puxou este assunto porque notara seu
vestido hippie. Paloma parece um pouco mais solta, cabelos loiros jogados aos
céus. Passava os dedos na borda da xícara.
“Curto. Pra caramba...”
“E qual música você gosta mais ?!”
Então lembrou da única música do grupo que conhecia.
“Aquela que diz do sufoco e de mostrar
alguém pra acompanhar...”
“Ah, Último
Romance !”
Salvo pelo sobrinho, foi o que ele pensou.
“Esta é linda mesmo...”
“Esta o quê ?!”
“A música,Último Romance. Tá distraído, é ?!”
“É mesmo, desculpe !”
“Dá pra pagar um outro café ?!”
Teria que desistir do metrô.
“Dá. Tá tão frio, né ?!”
Já na cama, ela olha para o homem dormindo.
Parecia arrependida. Levantou-se, ainda nua, e olhou sua carteira de
identidade.
“Otacílio...”, leu.
Percebera que o homem mentiu na idade.
Vestiu sua calcinha e foi ao banheiro. Olhou-se num espelho esfumaçado e
indagou a veracidade da profecia da cigana.
“Não pode ser ele...”, disse mentalmente.
“Será ele ?!”, perguntou baixinho.
“Ele...”, comentou calada.
Na cama, ele velava pelo sono da garota. O
cigarro acabara. Um pouco dos seios brotavam no surrado colchão. Paloma dormia
de bruços. Mamilo rosa, a coisa mais linda... Levantou-se e a idade pesou. Não
era a primeira ninfeta com que dormia. Seu apartamento ficava próximo do metrô
e ele havia deixado compromissos profissionais só para ter tal deleite. Foi até
a geladeira a partiu um pão ao meio. A garota ainda dormia.
“Cansei disto...”, pensou.
Passou mostarda e levou o pedaço à boca.
“Amor realmente existe ?!”, indagou em voz
baixa.
A idade pesou:
“Já tenho 39. Morrerei sozinho ?! Mas eu
nunca me preocupei com isto...”
Voltou para o quarto. Paloma aparentava
felicidade em seu sono.
“Será ela ?!”
Sentou-se na beirada da cama e afagou-lhe
os cabelos.
“Ela...”
Num radinho de pilhas no alto de sua casa
tocava uma balada antiga: When A Man Loves A Woman, do Percy Sledge. Ele
sentiu frio, ela também. Seus parceiros dormiam. Moravam no mesmo prédio, ele
um andar a cima. A dona do rádio aumenta o volume e exclama algo como “Que
música porreta !”. Ambos escutam e sorriem. Cada um olha para aqueles que
dormem em suas intimas camas. A canção finda, logo aparece uma voz de narrador
dedicando a canção de fulano para beltrano...
Ela escreve um recado para o homem do
paletó. Pede para o mesmo trancar a porta e colocar a chave embaixo do carpete.
Diz que o amou naquele momento, mas não pede retornos. E acrescenta em P.S que
prometia nunca mais acreditar em oráculo algum...
Ele deixa um bilhete embaixo de um maço
inteiro de cigarros. Pede para Paloma trancar a porta e deixar as chaves no
vizinho do lado. Diz que há café de agora na garrafa térmica e que podia
devorar o queijo minas a vontade. Acrescenta em P.S que não o procure mais.
Havia cansado de ninfetas.
Ela põe os fones nos ouvidos. Vai escutando
Último Romance. Caminha passos
vagarosos, como se querendo nutrir-se de cada uma de suas pisadas. Volta para a
estação de metrô. Senta e abre uma revista sobre discos voadores. É um ótimo
argumento para iniciar conversas...
Ele sai assobiando uma canção que aprendera
com os sobrinhos adolescentes. Não sabia seu nome, mas decorara que na letra
dizia algo sobre mostrar sufoco para receber alguém em troca como companhia. Ou
algo parecido, não lembrava ao certo... Trocou a camisa amarela por um moletom
preto. Carregava a mochila e algumas moedas para a condução. Dirigiu-se para a
estação de metrô. Sentou e notou a mulher que lia uma revista...
“Licença, o que lê ?!”
“Eu ?! Ah, é um artigo sobre OVNI’s...”
“Sou fascinado por discos voadores...”
“No duro ?!”
“Pode acreditar !”
“E em destino ?! Você acredita ?!”
“Sinceramente não...”
Ela sorriu. Ele também.
“Prazer, Paloma...”
Ele riu da ironia.
“Otacílio...”
Ela também achou engraçado.
(2006)
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