segunda-feira, 25 de março de 2013

AO REDOR DE TUDO, TUDO A RODAR




Tinjo-me romântico, mas sou vadio computador...” (Caetano Veloso)

Andavam Isla e Alê por uma feirinha hippie, quando um doidão lhe entrega um folheto amassado, com grafites feito à carvão. Meio assustadas, elas sorriram e o pegam. Lendo, Alê solta um quase faniquito: “Puta, é o F.O.D.A deste ano...”, “o o quê ?!”, “ai, Puta, cê tá muito desinformada !!! F.O.D.A. é ‘Festival Orgiástico do Desenvolver Artístico’, um movimento universitário muito massa, cheio de mil coisas, artesanato, dança, encenações, shows... cê nunca ouviu falar não ?!”, “Sinceramente não... ai, será que acho um incenso de almíscar divino que comprei uma vez por aqui ?!”, diz Isla olhando prum lado e pra outro. “ai, Isla... Tu nem prestou atenção no que eu disse, né ?!”, “hãn ?!”, “ai, Puta... Todo F.O.D.A. é bom, não teve um que eu fui que tenha sido mais ou menos... altas sativas, muita gente, um som foda demais...”. Sem prestar muita atenção novamente, Isla branda: “cara, ali é o THC né ?!”, agarrando forte o braço da amiga e a conduzindo pruma barraca, “peraí, porra... assim nem dá pra ler o folheto direito...”, diz Alê, quase deixando cair seus óculos escuros, “puta, vai ter Cavaleiro Satan !!! O gutural do vocalista deles é foda demais !!!”. Atrapalhando a leitura de um Dostoievski, Isla esbraveja: “THC, meu querido... aquele incensinho de almíscar do caralho, cê tem aí ?!”, “ôrra, só tenho...”, entre risos. THC usava uma bata branca envelhecida e calça de um anil sem igual. “tá aqui, minha linda... Incenso bão da hora... só não é do Nepal !!!”, sorri enquanto cantarola: “E me empresta o seu colar/ que um dia eu fui buscar/ na tumba de um sábio faraó...”. As duas se olham, sem entender. “qualé, gatas... É Raul...”. Após um prolongado “ah”, Alê menciona: “tu tá sabendo que vai ter um F.O.D.A. neste sábado ?!”, “ô se tou... Parece que vai ser bom...”, “todo F.O.D.A. é do caralho, meu querido... tou cá com o folheto, veja aí...”, passando-o para o rapaz. Este observa coçando seu cavanhaque. “hum, putas bandas boas...”, “sim, sim...”, “cara, Garrafão Dom Bosco é daôra. Eles tocam um industrial de prima !!!”. Isla, ainda desatenta para a festa, observa a barraquinha do amigo e se encanta com um boneco feito de crochê: “que lindo, THC... Tu que fez ?!”, pegando e analisando o boneco, “foi, foi sim...”, “ah, tá muito bom mesmo... Custa quanto ?!”, “tu se interessou mesmo ?! Então leva como brinde do incenso...” Ela agradece, “ah, o Dave vai amar...”, “quem é Dave ?! O Grohl ?!”. Isla ri, “não, não... é o meu filho...”, “eu não sabia que tu era mãe...”, “pois é, um garotão de seis... mas ele vive com a avó. Vejo-o muito pouco, mas amo o moleque mais que tudo !!!”. Alê, atrapalhando a conversa: “Têagá, esta sua tatoo do braço é nova, não ?!”, “ah, é sim...”, levantando a manga da bata. A garota lê: “’Tinjo-me romântico, mas sou vadio computador’... é bonito...”, “é do Caetano... amo este verso...”, “é, tá boa, mas ainda prefiro o da fórmula química em seu peito...”, “a do THC ?! Ah, esta é minha xodó, minha primeira...”. Admiraram outras tatuagens que o jovem tinha e tomaram um chá de sete-sangrias que ele sempre trazia numa térmica. Se despediram e enquanto caminhavam de braços dados, Alê pergunta: “hum, Puta... acho que o THC tá interessado ni tu...”, “tu achou mesmo ?! não, moça... ele só tava sendo cordial, coisas de vendedor...”, “sei não viu... o olhar dele pra tu, este boneco que ele lhe deu...”, “pára de noia, Puta !!! Além disto ele nem me interessa...”, “tu ainda não esqueceu aquele piromaníaco, né ?!”, “ah, nada a ver...”, “cara, o mano lhe chifra com Deus e o mundo e cê ainda tá no carinha ?!”, “sim, e este tal de F.O.D.A. que tu tava falando ?!”, “disfarça não, nega !!! tou sabendo até que ele tá de casinho com uma tal de Roxanne...”. A notícia titubeou Isla, deixando-a estática do nada. Indagou: “com quem ?!”, “ah, uma tal de Roxanne... conheço-a de umas paradas aí... ela é umazinha que anda com uma camisa fedorenta do Judas Priest...”, “mas o rolo é sério ?!”, “cara, parece que sim... soube que ela tá até fazendo umas performances nas apresentações, umas telas, recitas uns poemas sem nexo, dá uivos... dizem até que rola lance de pompoarismo !!!”, “pompoarismo ?!”, “é, aquela coisa de ficar contraindo a xoxota e...”, “eu sei o que é pompoarismo...”, “pois é... ouvi dizer que ela até fuma com a xereca !!!”, “credo, que horror !!!”. Pois alguns segundos de silêncio, Isla pergunta: “sim, e este F.O.D.A. ?!”, “ah, amiga, não tem mais graça estes seus disfarces não...”, “não, desta vez é sério: quero saber deste festival aí...”, “ué, mas por quê assim do nada ?!”, “ah, sei lá, me interessou... e THC vai né ?! Quem sabe aí...”. Alê levanta a mão e pede cumprimento: “é isto mesmo que se fala, Puta !!!”

Já no evento, Alê cadencia: “cara, o nível melhorou pra porra !!! Nos primeiros era bem toscão... Deve tá rolando um patrocínio do caralho desta vez...”. Isla só concorda com os ombros, logo avistando e fazendo sinal pra Índio. “e aí, cara ?!”, pergunta Alê. Ele diz estar bem e puxa alguma conversa trivial. Isla olha prum lado e pra outro, Índio tenta quebrar o gelo: “e aí, linda, como tu tá ?!”, “hãn ?! ah, tou bem...”, “quê que há ?! tu parece tão aérea...”, “não, não é nada...”, “tu nem cobrou o Ginsberg, como cê sempre faz...”. Ela meio que desdenha: “ué, mas você não já me devolveu ?!”, “sim, mas cê sempre me cobra e tal...”, “não vejo lógica nisto então...”. Índio pensou em soltar aquela manjada de não haver razão nas coisas feitas pelo coração, mas ponderou mediante à falta de romantismo de Isla naquele momento... Saíram sem se despedir e foram à procura de algo pra beber. Naquele instante a primeira banda começa a tocar: “hum, Lobotomia Forense... o nome é legal”, diz Alê. Isla concorda displicentemente, ainda caçando por Iago ou por THC, não sabia ao certo... O Lobotomia Forense fazia um blackened death metal bem ácido, abusando muito de Angel Corpse e de Behemoth. Isto agradou aos muitos cabeludos que haviam por ali, “ah, vamos lá pra frente do palco, Puta...”, clamava Alê. Isla não se animou tanto, preferindo tomar sua cerveja mesmo. A amiga então foi, deixando-a por ali, a rodopiar latinha, sem precisão do que fazer. Chutou o solo, formando uma ínfima poeira sob seu tênis. Olhou a lua, as estrelas, cegas nuvens negras, quando de repente lhe aparece THC: “Oi, querida..”, “Ah, oi, oi...”, dando-lhe beijos na face. “cara, não curto tanto esta barulheira não...” e sorri. Ela também sorri, oferecendo-lhe um gole. Ele recusou e ela solta um “inda bem , porque tá quente pra caralho...”. Ambos riem e se olham quietos. THC passa então o olho pela filipeta do evento. “Hum, Doces Deletérios... será uma banda cover do Los Hermanos ?!”. Ela sorri meio amarelo: “tu curte Los Hermanos ?!”, “ah, curto sim... e quem não curte, né ?! Quem gosta de música gosta de Los Hermanos, concorda ?!”, “hum, já me falaram isto, acredita ?!”. Sem saber o que mais falar, seus olhares passam por todos ao redor... É quando Alê quebra o gelo: “Puta, esta banda é o bicho !!! Ah, oi THC...”. Este a cumprimenta com um aceno de cabeça. “atrapalho algo ?!”, diz Alê num tom mais alto e insinuoso. Isla a cutuca de leve, “imagina...”. THC se vira pra comprar algo, é a senha para Alê puxar a amiga prum canto: “e aí, rolou ?!”, “ah, Puta, me deixa... não, não, inda não, sei lá...”, “ah, não acredito que cê tá de bode pelo Igor ?!”. A pergunta instigou Isla, que gaguejou na resposta. Nem ela sabia o que queria... “cara, o THC é uma gracinha... pega ele, de boa...”, “ah, estas coisas não são assim... ele é muito bacana, tem um gosto parecido com o meu e tals... mas sei lá, falta alguma coisa nele ou em mim, não sei...”. Sem nortear na última resposta da amiga, Alê solta “você precisa é dar, com urgência !!!”. “quem precisa dar ?!”, pergunta imediatamente THC, com um copo de bebida vermelha na mão. Sem ter onde esconder o rosto, Isla solta um “ah, nada não... liga pra esta louca não...”
A noite prossegue com variados sons: Garrafão Dom Bosco e o tal “industrial de prima”, Pin-Up de Puta, com seu som meio parecido com Velvet Underground, SKA & Blues fazendo a galera dançar geral... Durante este período o trio permanecia junto, com saídas estratégicas de Alê em certos momentos. E quando isto acontecia, Isla ora olhava pra THC, ora procurava por Iago... ou por si mesma, sabe-se lá... O tempo passando, THC parecia esperar algo, Isla talvez... É quando ele agarra seu braço com força “gata, é Los Hermanos !!! Vamos pra frente do palco !!!”. Sem esperar reação dela, o cara a carrega, derrubando transeuntes e tropeçando lânguido em pessoas e brechas entre elas. O vocalista do Doces Deletérios tinha barba e aparência de um Rodrigo Amarante, mas o restante da banda parecia adolescentes vestidos de forma indie. Quando atacam de “Sentimental” e um acompanha o ritmo do canto da boca do outro, tudo isto e um literal empurrão de Alê, um esbarrão acidental e ambos se beijam: Isla e THC se entregam ao frenesi do som, se arrepiam, parecem ouvir sininhos, se olham, se beijam novamente, se abraçam num entrelace, seguem assim durante a apresentação da banda e um restante do show do Os Carniças... Então andam um pouco de mãos dadas, a observar as barraquinhas de artesanato, ainda cantam juntos o refrão sucesso da última banda “Babar haxiiiiiiixe/ no Bar Maxiiiiiiiiixe...”, parecem sentir uma chuva imaginária. Tudo estaria perfeito até o esbarrão em Igor, o piromaníaco. De mãos dadas com Roxanne, ele pede desculpas sem reconhecer Isla. Ela percebe isto, aquilo a constrange e a revolta de alguma forma. THC também diagnóstica algo, por isso talvez tenha apertado a mão da companheira com alguma força que ora pareceu uma contração involuntária, ora uma constratação minimalista... A chuva imaginária prismou-se numa garoa chata, destas londrinas, de triste filme francês... Isla sentiu isto de alguma forma, mas sem tanta poética: só sabia dizer que era incômodo estar de mãos atadas com alguém enquanto seu coração tatua um outro tato... Mentalmente chamou Igor de traste, comparou-se com Roxanne, imaginou com náusea do show de pompoarismo que diziam que ela fazia, nem teve ciência do quão desatava o nó que a mão de THC antes formava. “tu gosta dele né...”, o rapaz pergunta. “hãn ?!”, “é, do cara que passou aqui com o violão...”, Isla engasgou, pigarreou, olhou ao redor, quis achar resposta, calou-se. THC mimetiza o processo, com exceção do pigarro. Então a olha e lhe beija de leve. “vamos ver a apresentação dele...”, diz puxando-na daquele local. Chegam de frente ao palco, Isla olha prum Iago mais barbudo, porém escanhoado. Enquanto este acopla fios em seu instrumento, Roxanne aparece ao seu lado, trazendo consigo uma sacola, conferindo rapidamente algo nela. A garoa se faz uma chuva mais intensa, alguns procuram abrigo nas barraquinhas adjacente. Poucos, como o citado casal, ainda permanecem estáticos. O olhar de THC para o palco é desafiador, filantrópico até. Isla sentiu-se niilista, não pensou em nada, quis um conhaque para aquecer do frio, olhou para THC e apertou-lhe num abraço mais forte... As roupas molhadas, a tênue nudez dos corpos pregados em suas sedas, sedução numa saliente indução... Igor começa seu show: uns Gonzaguinhas, Chico Buarque oscilando do nada com Iggy Pop, uma leve introdução de “So What”, do Mile Davis... Enquanto isto Roxanne fazia sua performance, recitando poemas com grunhidos, simulando orgasmos, mantras e ritos xamânticos. Não houve pompoarismo e a apresentação foi curta, insossa demais para se fechar um F.O.D.A. Isla não teve certezas, nem dúvidas, tampouco meandros: sabia que enfrentou um tortuoso momento com a pessoa certa ao lado. Aliviou-se, sentia que Igor era apenas um arrancar de casca de ferida, quase indolor, algo que passou... Enquanto beijava THC, Alê chega toda melada de lama, a la hipponga de Woodstock: “puta, que show cabuloso”, disse num alongado tom na terceira sílaba do último ditame. O casal riu e saíram juntos, com Alê a tiracolo e exaltando sua vontade de botar um alargador de 12 mm.

Isla acordou numa cama estranha - o que já não lhe era alguma novidade. Levantou-se ainda nua, bebeu água no gargalo, olhou THC dormindo de bruço, observou então o  braço dele, seus traços, o quarto: posters, discos, cinzeiros, a mesa de artesanar... Sentou-se numa velha poltrona, acendeu um cigarro e analisou ao redor de tudo, tudo a rodar... E então riu.



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