“Tinjo-me
romântico, mas sou vadio computador...” (Caetano Veloso)
Andavam Isla e Alê
por uma feirinha hippie, quando um doidão lhe entrega um folheto amassado, com
grafites feito à carvão. Meio assustadas, elas sorriram e o pegam. Lendo, Alê
solta um quase faniquito: “Puta, é o F.O.D.A deste ano...”, “o o quê ?!”, “ai,
Puta, cê tá muito desinformada !!! F.O.D.A. é ‘Festival Orgiástico do
Desenvolver Artístico’, um movimento universitário muito massa, cheio de mil
coisas, artesanato, dança, encenações, shows... cê nunca ouviu falar não ?!”,
“Sinceramente não... ai, será que acho um incenso de almíscar divino que
comprei uma vez por aqui ?!”, diz Isla olhando prum lado e pra outro. “ai,
Isla... Tu nem prestou atenção no que eu disse, né ?!”, “hãn ?!”, “ai, Puta...
Todo F.O.D.A. é bom, não teve um que eu fui que tenha sido mais ou menos...
altas sativas, muita gente, um som foda demais...”. Sem prestar muita atenção
novamente, Isla branda: “cara, ali é o THC né ?!”, agarrando forte o braço da
amiga e a conduzindo pruma barraca, “peraí, porra... assim nem dá pra ler o
folheto direito...”, diz Alê, quase deixando cair seus óculos escuros, “puta,
vai ter Cavaleiro Satan !!! O gutural do vocalista deles é foda demais !!!”.
Atrapalhando a leitura de um Dostoievski, Isla esbraveja: “THC, meu querido...
aquele incensinho de almíscar do caralho, cê tem aí ?!”, “ôrra, só tenho...”,
entre risos. THC usava uma bata branca envelhecida e calça de um anil sem
igual. “tá aqui, minha linda... Incenso bão da hora... só não é do Nepal !!!”,
sorri enquanto cantarola: “E me empresta o seu colar/ que um dia eu fui buscar/
na tumba de um sábio faraó...”. As duas se olham, sem entender. “qualé,
gatas... É Raul...”. Após um prolongado “ah”, Alê menciona: “tu tá sabendo que
vai ter um F.O.D.A. neste sábado ?!”, “ô se tou... Parece que vai ser bom...”, “todo
F.O.D.A. é do caralho, meu querido... tou cá com o folheto, veja aí...”,
passando-o para o rapaz. Este observa coçando seu cavanhaque. “hum, putas
bandas boas...”, “sim, sim...”, “cara, Garrafão Dom Bosco é daôra. Eles tocam
um industrial de prima !!!”. Isla, ainda desatenta para a festa, observa a
barraquinha do amigo e se encanta com um boneco feito de crochê: “que lindo,
THC... Tu que fez ?!”, pegando e analisando o boneco, “foi, foi sim...”, “ah,
tá muito bom mesmo... Custa quanto ?!”, “tu se interessou mesmo ?! Então leva
como brinde do incenso...” Ela agradece, “ah, o Dave vai amar...”, “quem é Dave
?! O Grohl ?!”. Isla ri, “não, não... é o meu filho...”, “eu não sabia que tu
era mãe...”, “pois é, um garotão de seis... mas ele vive com a avó. Vejo-o
muito pouco, mas amo o moleque mais que tudo !!!”. Alê, atrapalhando a
conversa: “Têagá, esta sua tatoo do braço é nova, não ?!”, “ah, é sim...”,
levantando a manga da bata. A garota lê: “’Tinjo-me romântico, mas sou vadio
computador’... é bonito...”, “é do Caetano... amo este verso...”, “é, tá boa,
mas ainda prefiro o da fórmula química em seu peito...”, “a do THC ?! Ah, esta
é minha xodó, minha primeira...”. Admiraram outras tatuagens que o jovem tinha
e tomaram um chá de sete-sangrias que ele sempre trazia numa térmica. Se
despediram e enquanto caminhavam de braços dados, Alê pergunta: “hum, Puta...
acho que o THC tá interessado ni tu...”, “tu achou mesmo ?! não, moça... ele só
tava sendo cordial, coisas de vendedor...”, “sei não viu... o olhar dele pra
tu, este boneco que ele lhe deu...”, “pára de noia, Puta !!! Além disto ele nem
me interessa...”, “tu ainda não esqueceu aquele piromaníaco, né ?!”, “ah, nada
a ver...”, “cara, o mano lhe chifra com Deus e o mundo e cê ainda tá no carinha
?!”, “sim, e este tal de F.O.D.A. que tu tava falando ?!”, “disfarça não, nega
!!! tou sabendo até que ele tá de casinho com uma tal de Roxanne...”. A notícia
titubeou Isla, deixando-a estática do nada. Indagou: “com quem ?!”, “ah, uma
tal de Roxanne... conheço-a de umas paradas aí... ela é umazinha que anda com
uma camisa fedorenta do Judas Priest...”, “mas o rolo é sério ?!”, “cara,
parece que sim... soube que ela tá até fazendo umas performances nas
apresentações, umas telas, recitas uns poemas sem nexo, dá uivos... dizem até
que rola lance de pompoarismo !!!”, “pompoarismo ?!”, “é, aquela coisa de ficar
contraindo a xoxota e...”, “eu sei o que é pompoarismo...”, “pois é... ouvi
dizer que ela até fuma com a xereca !!!”, “credo, que horror !!!”. Pois alguns
segundos de silêncio, Isla pergunta: “sim, e este F.O.D.A. ?!”, “ah, amiga, não
tem mais graça estes seus disfarces não...”, “não, desta vez é sério: quero
saber deste festival aí...”, “ué, mas por quê assim do nada ?!”, “ah, sei lá,
me interessou... e THC vai né ?! Quem sabe aí...”. Alê levanta a mão e pede
cumprimento: “é isto mesmo que se fala, Puta !!!”
Já no evento, Alê
cadencia: “cara, o nível melhorou pra porra !!! Nos primeiros era bem toscão...
Deve tá rolando um patrocínio do caralho desta vez...”. Isla só concorda com os
ombros, logo avistando e fazendo sinal pra Índio. “e aí, cara ?!”, pergunta
Alê. Ele diz estar bem e puxa alguma conversa trivial. Isla olha prum lado e
pra outro, Índio tenta quebrar o gelo: “e aí, linda, como tu tá ?!”, “hãn ?!
ah, tou bem...”, “quê que há ?! tu parece tão aérea...”, “não, não é nada...”,
“tu nem cobrou o Ginsberg, como cê sempre faz...”. Ela meio que desdenha: “ué,
mas você não já me devolveu ?!”, “sim, mas cê sempre me cobra e tal...”, “não
vejo lógica nisto então...”. Índio pensou em soltar aquela manjada de não haver
razão nas coisas feitas pelo coração, mas ponderou mediante à falta de
romantismo de Isla naquele momento... Saíram sem se despedir e foram à procura
de algo pra beber. Naquele instante a primeira banda começa a tocar: “hum,
Lobotomia Forense... o nome é legal”, diz Alê. Isla concorda displicentemente,
ainda caçando por Iago ou por THC, não sabia ao certo... O Lobotomia Forense
fazia um blackened death metal bem ácido, abusando muito de Angel Corpse e de
Behemoth. Isto agradou aos muitos cabeludos que haviam por ali, “ah, vamos lá
pra frente do palco, Puta...”, clamava Alê. Isla não se animou tanto,
preferindo tomar sua cerveja mesmo. A amiga então foi, deixando-a por ali, a
rodopiar latinha, sem precisão do que fazer. Chutou o solo, formando uma ínfima
poeira sob seu tênis. Olhou a lua, as estrelas, cegas nuvens negras, quando de
repente lhe aparece THC: “Oi, querida..”, “Ah, oi, oi...”, dando-lhe beijos na
face. “cara, não curto tanto esta barulheira não...” e sorri. Ela também sorri,
oferecendo-lhe um gole. Ele recusou e ela solta um “inda bem , porque tá quente
pra caralho...”. Ambos riem e se olham quietos. THC passa então o olho pela
filipeta do evento. “Hum, Doces Deletérios... será uma banda cover do Los Hermanos
?!”. Ela sorri meio amarelo: “tu curte Los Hermanos ?!”, “ah, curto sim... e
quem não curte, né ?! Quem gosta de música gosta de Los Hermanos, concorda ?!”,
“hum, já me falaram isto, acredita ?!”. Sem saber o que mais falar, seus
olhares passam por todos ao redor... É quando Alê quebra o gelo: “Puta, esta
banda é o bicho !!! Ah, oi THC...”. Este a cumprimenta com um aceno de cabeça.
“atrapalho algo ?!”, diz Alê num tom mais alto e insinuoso. Isla a cutuca de
leve, “imagina...”. THC se vira pra comprar algo, é a senha para Alê puxar a
amiga prum canto: “e aí, rolou ?!”, “ah, Puta, me deixa... não, não, inda não,
sei lá...”, “ah, não acredito que cê tá de bode pelo Igor ?!”. A pergunta
instigou Isla, que gaguejou na resposta. Nem ela sabia o que queria... “cara, o
THC é uma gracinha... pega ele, de boa...”, “ah, estas coisas não são assim...
ele é muito bacana, tem um gosto parecido com o meu e tals... mas sei lá, falta
alguma coisa nele ou em mim, não sei...”. Sem nortear na última resposta da
amiga, Alê solta “você precisa é dar, com urgência !!!”. “quem precisa dar ?!”,
pergunta imediatamente THC, com um copo de bebida vermelha na mão. Sem ter onde
esconder o rosto, Isla solta um “ah, nada não... liga pra esta louca não...”
A noite prossegue
com variados sons: Garrafão Dom Bosco e o tal “industrial de prima”, Pin-Up de
Puta, com seu som meio parecido com Velvet Underground, SKA & Blues fazendo
a galera dançar geral... Durante este período o trio permanecia junto, com
saídas estratégicas de Alê em certos momentos. E quando isto acontecia, Isla
ora olhava pra THC, ora procurava por Iago... ou por si mesma, sabe-se lá... O
tempo passando, THC parecia esperar algo, Isla talvez... É quando ele agarra
seu braço com força “gata, é Los Hermanos !!! Vamos pra frente do palco !!!”.
Sem esperar reação dela, o cara a carrega, derrubando transeuntes e tropeçando
lânguido em pessoas e brechas entre elas. O vocalista do Doces Deletérios tinha
barba e aparência de um Rodrigo Amarante, mas o restante da banda parecia adolescentes
vestidos de forma indie. Quando atacam de “Sentimental” e um acompanha o ritmo
do canto da boca do outro, tudo isto e um literal empurrão de Alê, um esbarrão
acidental e ambos se beijam: Isla e THC se entregam ao frenesi do som, se
arrepiam, parecem ouvir sininhos, se olham, se beijam novamente, se abraçam num
entrelace, seguem assim durante a apresentação da banda e um restante do show
do Os Carniças... Então andam um pouco de mãos dadas, a observar as
barraquinhas de artesanato, ainda cantam juntos o refrão sucesso da última
banda “Babar haxiiiiiiixe/ no Bar Maxiiiiiiiiixe...”, parecem sentir uma chuva
imaginária. Tudo estaria perfeito até o esbarrão em Igor, o piromaníaco. De
mãos dadas com Roxanne, ele pede desculpas sem reconhecer Isla. Ela percebe
isto, aquilo a constrange e a revolta de alguma forma. THC também diagnóstica
algo, por isso talvez tenha apertado a mão da companheira com alguma força que
ora pareceu uma contração involuntária, ora uma constratação minimalista... A
chuva imaginária prismou-se numa garoa chata, destas londrinas, de triste filme
francês... Isla sentiu isto de alguma forma, mas sem tanta poética: só sabia
dizer que era incômodo estar de mãos atadas com alguém enquanto seu coração
tatua um outro tato... Mentalmente chamou Igor de traste, comparou-se com
Roxanne, imaginou com náusea do show de pompoarismo que diziam que ela fazia,
nem teve ciência do quão desatava o nó que a mão de THC antes formava. “tu
gosta dele né...”, o rapaz pergunta. “hãn ?!”, “é, do cara que passou aqui com
o violão...”, Isla engasgou, pigarreou, olhou ao redor, quis achar resposta,
calou-se. THC mimetiza o processo, com exceção do pigarro. Então a olha e lhe
beija de leve. “vamos ver a apresentação dele...”, diz puxando-na daquele
local. Chegam de frente ao palco, Isla olha prum Iago mais barbudo, porém
escanhoado. Enquanto este acopla fios em seu instrumento, Roxanne aparece ao
seu lado, trazendo consigo uma sacola, conferindo rapidamente algo nela. A
garoa se faz uma chuva mais intensa, alguns procuram abrigo nas barraquinhas
adjacente. Poucos, como o citado casal, ainda permanecem estáticos. O olhar de
THC para o palco é desafiador, filantrópico até. Isla sentiu-se niilista, não
pensou em nada, quis um conhaque para aquecer do frio, olhou para THC e
apertou-lhe num abraço mais forte... As roupas molhadas, a tênue nudez dos
corpos pregados em suas sedas, sedução numa saliente indução... Igor começa seu
show: uns Gonzaguinhas, Chico Buarque oscilando do nada com Iggy Pop, uma leve
introdução de “So What”, do Mile Davis... Enquanto isto Roxanne fazia sua
performance, recitando poemas com grunhidos, simulando orgasmos, mantras e
ritos xamânticos. Não houve pompoarismo e a apresentação foi curta, insossa
demais para se fechar um F.O.D.A. Isla não teve certezas, nem dúvidas, tampouco
meandros: sabia que enfrentou um tortuoso momento com a pessoa certa ao lado.
Aliviou-se, sentia que Igor era apenas um arrancar de casca de ferida, quase
indolor, algo que passou... Enquanto beijava THC, Alê chega toda melada de
lama, a la hipponga de Woodstock: “puta, que show cabuloso”, disse num alongado
tom na terceira sílaba do último ditame. O casal riu e saíram juntos, com Alê a
tiracolo e exaltando sua vontade de botar um alargador de 12 mm.
Isla acordou numa
cama estranha - o que já não lhe era alguma novidade. Levantou-se ainda nua,
bebeu água no gargalo, olhou THC dormindo de bruço, observou então o braço dele, seus traços, o quarto: posters,
discos, cinzeiros, a mesa de artesanar... Sentou-se numa velha poltrona,
acendeu um cigarro e analisou ao redor de tudo, tudo a rodar... E então riu.
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