sábado, 22 de dezembro de 2007

FELIZ DIA DOS NAMORADOS

Desejar amar, desejar ser querida. Ela era velha, tinha mais de setenta certamente. Nem ela mesma sabia sua real idade, às vezes dizia ter menos, noutras mentia que tinha mais de cem.Desejava amar, desejava ser querida: em rugas e nunca um beijo dado ou recebido, nenhuma cartinha de amor, nem uma simples piscadela! Talvez já fosse bela na juventude, nunca se vai saber. Ainda maquilava-se. Carregadamente: mantinha muito rimel nos olhos, o batom num vermelho vulgar, quilos e quilos de pó-de-arroz nas bochechas cheia de traços... Usava os mesmo vestidos estampados com frutas tropicais. Os cabelos amarrados, unhas carcomidas, lavanda barata nos suores. Ia ao baile, mesma rotina de tantos anos. Casais envelheciam seus relacionamentos e ela ainda freqüentava o mesmo clube, sentava-se na mesa já cativa e pedia o sempre dry martini. Alguns velhinhos a chamavam para dançar, ela discretamente recusava. Queria rapazes, “brotos” como dizia.
Não percebia, todavia, que seus contemporâneos também envelheciam e que muitos amores do passado também estava grisalhos ou capengavam em suas bengalas. Orgulhava-se do pivô de ouro colocado às custas dos míseros centavos de sua aposentadoria. Naquele dia era um baile especial: era um sábado 12 de junho, dia dos namorados. Quantos dias como aquele já comemorara... Ou nunca comemorara, não tinha idéia de como dizer. Enfim, naquele dia tantos pares enchiam a quadra. E ela não gostava de lugares cheios: vai que o homem de sua vida esteja lá e ela não o encontrasse? Mas, como comecei a narrativa deste parágrafo: ela não percebia que o tempo passava para todos, inclusive para ela e para seus próximos.
Sentou-se na cadeira e todos a olhavam. Muitas vezes sentia-se como atração de um circo, tamanho era a curiosidade sobre sua figura. O garçom, um velho amigo, já trazia o pedido pueril numa travessa. “Será que nunca trocam os copos?”, pensou. Sorveu pouco e caçou quem deveria paquerar a principio. Era brincadeira entre os rapazes apostar quem a velha paqueraria primeiro. Encontrou um homem, faixa de quarenta e camisa listrada de botão. Mas reparara que em sua mesa havia uma bolsa feminina. Casado, confirmou-se logo quando alguém se aproximou dele. Uma mulher.“Lambisgóia!”, falou baixo.
O crooner anunciou que hoje só cantaria Nelson Gonçalves. E começou: “Boneca de pano/ Pedaço de vida/ Que vive perdida no mundo a rolar...”. O cantor parecia bêbado, a banda idem. Casais começam a lotar o palco em danças. A velha bebeu toda a bebida num só gole, olha e procura alguém solitário. Apesar de católica fervorosa, permitiu-se dizer um palavrão. Pegou um pequeno espelho de sua bolsa e viu-se como deveria se olhar: velha. Percebeu que alguns riam de sua desgraça, a todos quis amaldiçoar. Levantou a mão pediu uma segunda dose. Sentiu calor e tirou da mesma bolsa um leque exalante da mais oculta naftalina. Leu a faixa escrito acima do palco: um FELIZ DIA DOS NAMORADOS em vermelho, uma mensagem em aspas e vários balões formavam um coração ao lado do pano estendido. Alguns já murchos, percebeu.
Um senhor aproxima-se. Usava cachecol, apesar da alta temperatura. Tinha bigodes brancos, um chapéu-do-panamá já em desuso, mascava um nervoso chiclete. Pediu para sentar ao lado da velha, tinha elegância nos modos. Perguntou se ela não lembrava dele. Disse-lhe um confirmador não. Então o velho renovou a pergunta num “Tem certeza que não ?”. E ela, “Definitivamente não...”, embora não tivesse certeza da resposta: aquele castanho no olhar pareciam-lhe familiar... Ele então se revelou um antigo colega, dos tempos de ginásio. A velha disse “Mas é você mesmo !”. Aí percebeu que estava velha mesmo. O senhor ajustou seu óculos e disse que o tempo não passara para ela. “Até parece uma boneca de porcelana...”, mentiu sinceramente. A velha sorriu e exibiu o seu pivô de ouro. Logo de cara o velho declarou-se viúvo.“Há cinco anos !”, ressaltou com entusiasmo. A velha tentou não gostar da conversa, mas no fundo achou-o atraente. Talvez fosse este seu amor platônico de normalista. “Nem queiras gostar de mim/ Sem que eu te peça/ Nem me dê nada que ao fim/ Eu não mereça...”, a voz do crooner era visceral. O velho disse que esta era do seu tempo. Ela não queria lembrar o quanto estava velha. Então o senhor proclamou que Nélson Gonçalves que era cantor de verdade, o resto tudo era balela. Ela concordou balançando a cabeça, não sabia se dizendo sim ou não. “Tem um cantorzinho metido a bosta de hoje que canta requebrando...”, disse o senhor. Logo completou que requebrar era coisa de maricas. A velha achou-o vulgar no comentário. Ele perguntou se ela não queria algo. Disse não mas logo depois pediu outro dry martini. Veio-lhe a cabeça que só tinha dinheiro para dois copos e que era sempre bom abusar de que oferece um a mais. O garçom trouxe a bebida pedida e uma xícara de café. O café fora pedido dele. Então o velho tirou um cantil cromado, destes de uísque, e depositou o conteúdo dele na xícara. “Uísque só bebo dos meus !”, disse. Não entendeu a alquímica mistura, mas concordou que cada um com sua mania.
O senhor exclamou ao ar “Dia dos namorados, não é ?!”. A velha nada disse. “Antigamente eu costumava dar uma rosa para minha finada esposa nestes dias...”, continuou. Não parecia nostálgico. A velha olhou para o homem de quarenta para quem havia olhado antes. Pensou o quanto ele era bonito. Depois relutou e concluiu que ele era simples. “A juventude nos torna belo !”, findou em pensamentos. O senhor pigarreou, pegou um pano e limpou a face. Disse o quanto ela era graciosa nos seus tempos de colégio. “E ainda continua...”, malandro desta vez. A velha corou-se, mas não se percebeu pela quantidade de pó me seu rosto. Resolveu abanar-se novamente. O velho aproximava-se cada vez mais, estavam quase ombro a ombro. “Nunca fui beijada !”, disse em instinto.
O senhor, então, franziu a testa. Parecia ter escutado revelações de uma Nossa Senhora. “Não creio...”, falou. Ela procurava algo em vergonha. “Mas quer, certo ?!”, insistiu o velho. A velha não sabia o quê responder. Quis a boca do homem de quarenta, não o daquele que agora estava ao seu lado. Coçou a nuca, olhou os poucos casais que ainda haviam, o homem de quarenta já fora embora. “Tenho um bangalô aqui próximo. Você quer ir comigo ?!”, perguntou o senhor. Engasgou um pouco, alisou a medalhinha de Santo Antônio que mantinha no pescoço desde criança. Lembrou-se que era mais de meia-noite, já estavam no dia 13, dia do santo. No mesmo instante o senhor disse que estava disposto a casar novamente. Então passou os dedos pelos ombros nus da velha. Ela ficou arrepiada, mas não esboçou recusa alguma.
O mesmo garçom dissera que tinham que fechar o clube. Os músicos desmontavam seus instrumentos, o local recebia as primeiras faxinas. “Tomou alguma decisão ?!”, o velho parecia impaciente. A velha que desejava amar, que desejava ser querida, a velha que tanto recusara outros convites idênticos a este, a velha que cansara de chegar sozinha em casa e deitar-se após tomar um analgésico para relaxar seu intestino, a velha que se viu velha, a velha que agora andava de mãos dadas com o senhor viúvo. Enamorada, entregou sua velha virgindade no bangalô e agora não mais teria companhia para os últimos bailes que a vida lhe ofertaria.

Um comentário:

Anônimo disse...

Grande mestre, que final é esse? Simplesmente surpreendente. Que conto, viu! Fenomenal... Repito: o mundo precisa conhecer seus escritos, Mateus. Parabéns... Continue... Abraços, Germano.