quinta-feira, 6 de dezembro de 2007

URBANIDADES II

“O conhecimento da alma humana passa por um campo de futebol” (Albert Camus)

Foi num destes agostos de calor. Seguro o canudo com força, recebo os abraços de meus familiares. Só faltava o dos grandes amigos. Foi com dificuldades que me formei doutor. E agora era mais uma nova decolada em minha vida... E assim como desejei, compareciam todos aqueles que estimava, inclusive “Os Tartarugas”, o grande time do bairro de minhas lembranças
Um deles já morreu. Outros estavam presos, alguns moravam em lugares distantes ou mesmo fora do país. Contudo os mais chegados estavam na cerimônia de minha diplomação. Eu de beca, o Biscoito com uma pólo cor de manga. Foi meu primeiro abraço, como ele engordara !
- Dicó !!!! - grita - ...quer dizer, Doutor Alberto...
Dei uma gargalhada e exclamei:
- Ah, seu puto ! Pode me chamar do que quiser...
Biscoito compartilha da risada e logo fui em direção a mesa em que os outros se encontravam. Enquanto abraçava os restantes, ele tirou uma fotografia do seu bolso: “Os Tartarugas” daquele verão de 82: Maloca, Ivinho, Mesma-roupa, Nariz e Boca de cisterna; Biscoito, Guilherminho e Metido-a-Zico; Borra-shorts, Pomba e eu. Que timão ! Quantos hematomas contavam aquelas histórias... Tinha uma cicatriz na testa de uma dividida com o Come-lama, um marrento beque do “Brasilzinho”...
- O Come-lama ?! Puta que pariu ! Nem lembrava mais dele. – disse Metido-a-Zico, hoje chamado por seu nome de batismo, Cristóvão.
- Pois é. Morreu... – comentou Boca de cisterna, hoje Aderbal.
- Morreu ?! – disse – Puxa vida... E de quê ?!
- Tiro. Mexia com tóxico...
- Ele tinha talento pra bola... - puxou Guilherminho, ainda Guilherminho. Não mudara nada, nem o tamanho.
- O Come-lama era melhor que muitos zagueiros de hoje... – esboçou Biscoito. Hoje era Assis, tinha uma pequena empresa e estava casado. E calvo...
- Ele ainda fez teste pra jogar no Bahia, né Biscoito ?! – digo.
- Fez sim. Mas acabou reprovado. Sei que ele jogou ainda no juniores do Galícia...
- Mas aquele ali não se remendava... – exclama Guilherminho.
- É... Preferiu mexer com tráfico. Taí: morreu com menos de 24 anos. – conclui Biscoito.
- Pois é, pois é... Mas vocês lembram quando ganhamos do “Becão Futebol Club” ?!
Não sei quem mencionou isto, mas foi como se transportasse todos aqueles ainda remanescentes dos “Tartarugas” para um dos grandes jogos de nossa vida. Eu ia completar nove anos quando nosso time venceu o primeiro jogo de sua breve existência. E justamente contra o “Becão Futebol Club”, invicto até então. Devo lembrar que os “Tartarugas” era o time mais popular do bairro. Nunca soube o porquê, mas as meninas sempre torciam por nós. Inclusive a Madalena, meu primeiro namorinho platônico. Talvez fosse pelo fato de nunca termos ganhado nada. E ganhar nada num Brasil em processo de redemocratização significava ser o próprio espelho do país... Logicamente havia também o fato de termos perdido a Copa daquele ano do jeito que foi. Lembro que chorei pacas quando o Paolo Rossi fez aquele terceiro gol e tirou-nos o grito entalado de doze anos sem ganhar um tento mundial....
De repente nos vimos numa mesa rodeada de cervejas e outros porres. Os cinco últimos restantes dos “Tartarugas”. Jogávamos sem uniforme, portanto era exigido que cada um usasse uma camisa de mesma cor. Como o Mesma-Roupa só usava uma surrada camisa verde, foi então estabelecido que todos jogariam de verde. E descalços, vale salientar.
- Ah, o jogo contra o “Becão”...
Não lembro quem puxou esta nova conversa, mas eu repeti a tal exclamação. Como era saudoso aquele clássico, tarde de domingo numa pós-chuva de sábado. O campinho era um lamaçal que só !
- Teda, David, Bufa de véi, Plínio e Cobra... – puxou o antigo Boca de cisterna, ainda com o hálito que o caracterizava.
- Damião, Fusca, Medroso e Catarro, Altamiro Canalha e Todo-Duro ! – terminou Biscoito a escalação do “Becão F.C”.
Imediatamente brindamos e logo me lembrei do último nome citado. Todo-Duro era um gigante de uns 14 anos que batia em menininhos e ainda era louquinho pela minha Madalena ! Meu maior algoz de infância... Na época éramos pirralhos de nove, dez anos e os garotos mais velhos e mais fortes sempre causavam frisson nas meninas. Não sei se a Madá (como a chamavam-na carinhosamente) tinha ou não interesse no Todo-Duro, mas o simples fato de vê-los conversando em intimidades já me causava uma vontade de socá-lo...
- Jogão, né ?! – puxa Biscoito.
- Ô se foi... – lembro – dois a um...
- E de virada !!! – exalta Metido-a-Zico.
- E o último gol de quem foi ?! Hein, hein ?! – interroga Guilherminho.
Todos gritam em uníssono: “Nariz !!!!”
- Poxa... Finado Nariz... – indago.
- Ele morreu de quê mesmo ?! – pergunta Biscoito.
- Infarto. Faz pouco tempo... creio q uns três meses. – responde Boca de cisterna.
- Poxa, e eu nem fui ao velório... – digo.
- Nem tu e nem ninguém ! O cara ainda morava no Sussuarana...
- Jura Aderbal ?! – espanta-se Guilherminho.
- Pois é. Só fui saber da morte dele acho que um mês depois...
- Então vamos fazer um minuto de silêncio em homenagem ao grande Nariz...
E todos calaram. Mas o minuto converteu-se em apenas alguns segundos.
- E foi de cabeça né ?! – lembra Biscoito.
- Foi. Logo do Nariz, o maior perna-de-pau do Sussuarana... – digo.
- Bons tempos do Sussuarana...
- É mesmo Biscoito...
Damos uma suspirada que parecia mais um alívio. Alguns bicam da cerveja quente num copo plástico, outros petiscam uns restos de salgadinhos ainda existentes numa bandeja estacionada ali na mesa. Biscoito roça a foto com os dedos, como se querendo afagar nossas lembranças. É ele quem recomeça a conversa:
- O jogo contra o “Becão”... Cês lembram bem do jogo ?! Confesso que esqueci alguns detalhes...
- Ah, eu lembro que o campo tava uma lama que só... – diz Boca de cisterna.
- E eu lembro que fui eu quem cruzou a bola na área pro gol do Nariz... – fala Guilherminho.
- Epa ! Não foi o senhor não !!!! Foi eu quem cruzou... – digo.
- Claro que não. Foi eu sim ! Me lembro como se estivesse vendo o jogo aqui na minha frente... Pomba recupera a bola no nosso campo, avança um pouco e toca pra você. Aí você faz tabelinha com Metido-a-Zico, que passou pra mim. Aí eu cruzei pro Nariz e pimba !
- Claro que não foi assim, Guilherminho... – indago – Primeiro que o gol foi no segundo tempo e o Pomba saiu logo no começo do jogo...
- É, o Dicó tá certo... – diz Boca de cisterna. - ...O Pomba se machucou ! Foi numa dividida com o Fusca, filho do finado Zacarias sapateiro...
- Há controvérsias aí... Cê tá duvidando da minha memória ?! Me lembro sim: foi o Pomba que passou pro Dicó...
- O Boca tá certo sim... – lembra Biscoito - ...tou recordando agora. O Pomba saiu com o joelho inchado. Aí a gente colocou o Barbie...
- Barbie, o viadinho !!! Claro que eu me lembro... – grito – Poxa vida... Por onde anda esta criatura ?!
- Moço, a última que eu soube dele é que ele se tornou artista plástico de grande destaque no cenário internacional. Inclusive namora com uma modelo que é um avião !!!
- Não brinca, Biscoito ?!
- Juro...
- Deve ser fachada. Ali era a maior bichona...
- Peraí ! Vocês tão é doido !!! O jogo que o Barbie entrou foi contra o “Flamenguinho de Pau da Lima”... – insiste Guilherminho.
- Nunca !!!! – exclamo – O jogo contra o “Flamenguinho” foi bem depois...
- Verdade... E neste jogo o Barbie nem jogou...
- Cê tá certo Biscoito... E o Barbie só jogou contra o “Becão” porque o Pomba machucou. Ele era outro perna-de-pau, todo fresquinho...
Neste momento aparece a turma de formados e pede minha presença para tirar fotografias de praxe. Peço licença pra turma e retruco que mais tarde eu apareceria para concluirmos as lembranças do clássico “Os Tartarugas versus Becão”...
- Então tá bom... Foi o Dicó que cruzou pro Nariz... – aceita, meio na birra, Guilherminho.
- Pois é, logo o Nariz...
- É, cara... O Nariz... Zagueiro... – gagueja Biscoito.
- Zagueiro só porque era PDB...
- Qualé, Guilherminho ?! Eu era zagueiro e não era pior do baba coisíssima nenhuma !!!! Aliás, eu era um baita zagueiraço, um Luís Pereira...
- Cê, um Luís Pereira ?! Bosta, Boca de Cisterna...
- É... Tu não dava nem pro chulé... Cá entre nós: tu jogava mal pacas... Nossa sorte era que o Maloca era bom pra caralho...
- O Biscoito tá certo. Cara, o Maloca... Tu lembra que ele era apaixonado pela Simony do Balão Mágico ?!
Todos riem. Biscoito então fala:
- Era mesmo... Cês lembram que ele chorou quando a gente inventou que a Simony tinha morrido num acidente de avião ?!
- Putz grila... Foi mesmo ! Mas ele era o mais novo da galera, né ?!
- É. Ele tinha uns dois anos a menos... Mas pulava na bola que mais parecia um gato...
- Muito melhor que o Waldir Peres !!!!
Novamente todos riem. Chego perto da mesa novamente.
- Pronto, “Tartarugas”... Já tou livre pra resenharmos até raiar o dia...
- Ai,ai... Tamos aqui lembrando do Maloca... – comenta Guilherminho.
- Maloca ?! – cantarolo – “Canta também, Pimpão... Pelo salão...”
Todos gargalham e brindam.
- Moço, o cara chorava ouvindo a Simony cantando esta música...
- Puta que pariu !!! Era mesmo... – lembra Cristóvão.
- Grande Maloca... Foi o único que engrenou mesmo no futebol, né ?!
- E não foi ?! Falei com ele há pouco tempo. Tá treinando um time de Minas, da segunda divisão...
- E ainda jogou nuns times do interior paulista...
- Chegou a ser reserva do Sidmar na Portuguesa !!!!
- Caralho, Boca... Mais fundo do baú que lembrar o Maloca é lembrar-se deste Sidmar...
- Porra, Biscoito ! O Sidmar era um puto como goleiro. Pegava barbaridade !!! Jogou até no “Baêa”. Tenho o autográfo dele e tudo...
Depois deste comentário foi um jogo de “ai,ai” prum lado, um prolongado silêncio do outro... Cada um se concentrou em seu copo de plástico de cerveja, que, aliás, já enchia de garrafas a mesa em questão. Peço pro garçom servir mais salgadinhos, no que sou brevemente atendido. Olho minha esposa, mas penso em Madá, minha Madá... Lembro, como em taipe, da Sussuarana onde nasci, do bairro de pouca iluminação onde se criava até bodes ! Revejo então o campo de lama, as Tubaínas que seu Ezeclias patrocinava depois de cada partida (mesmo naquelas que perdíamos), do gol do Nariz no jogo contra o “Becão”, no vento que um dia levantou a saia e eu pude ver a calcinha rendada da Madá...
- Cês ainda lembram da Madá ?!
- Claro, da Madá... Como esquecê-la, né ?! – indaga Biscoito.
- Morena bonita... Eu era louco por ela...
- E quem não era louco por ela, né Boca ?!
- E destaco que era nossa grande torcedora... – destaco.
- E não era ?! Poxa... Ela criou até torcida organizada e tudo. Como era o nome mesmo da torcida ?!
- “As Tartarugas dos Tartarugas” !!! – digo rapidamente, já com o dedo em haste.
- Era mesmo... Tinha até faixa, grito de guerra e as porra tudo.. – ri Metido-a-Zico, o mais lacônico da galera. -... Mas o que me deixava mais intrigado é que ela tinha uns doze na época e ainda sim tinha uma paixão pelo time...
- Uma paixão por mim, você quer dizer... – gaba-se Guilherminho.
- Aonde, aonde ?! – remenda Boca – Ela gostava era de mim !!!!
Antes que começasse um bate-boca por ali, Biscoito interfere:
- Calma, gente... Eu sinceramente acho que ela curtia era o Dicó...
Estranho saber que eu ruborizei no instante que ele falou nisto. Fora se como a mais de vinte anos atrás...
- Do Dicó ?! Porra nenhuma !!! O Dicó era magrela demais. Ela era doidinha por mim isto sim...
- Por tu, Guilherminho ?! Tu tinha pança de barriga d’água, lembra não ?! – completa Cristóvão, o eterno Metido-a-Zico.
Todos riem. Então pergunto:
- Ai,ai... Mas que fim ela levou?!
- A Madá ?! Tá casada com o George...
- George ?! Que merda é George ?!
- O Todo-Duro, do “Becão”... Tu não lembra mais não ?!
E foi como um soco de supetão, muito pior que aquele dado por ele próprio quando eu dei um beijo à força na Madá... Aquela revelação agridoce do Biscoito me causou espanto e um abismar: quão irônico pode ser o destino... A Madalena, nossa musa Madá, meu primeiro amor, a “Winnie Cooper” de todos nós dos “Tartarugas”... Madá e Todo-Duro, caraca... É, quando a coisa tem quer ser, ninguém pode impedir né ?! Lembro que por causa dela eu aprendi a dedilhar no violão “As canções que você fez pra mim”, que pela Madá eu nem dormia direito, escrevia poemas tolos, cantarolava as músicas de corno que rolava na Sociedade, olhava pras estrelas, até chorei... Fiquei uns dois anos nesta nóia, pensei que ia morrer sem gostar de outra garota. Claro que assim não aconteceu, muita água rolou por debaixo desta ponte... Acreditam que a prostituta com quem perdi a virgindade também se chamava Madalena ?! E não foi mero acaso: um puteiro na Baixa de Quintas, com meus 16, eu e uma galerinha do Central fomos lá... Escolhi a dedo. Esta Madalena em questão tinha uns 50, poucos dentes e ainda era estrábica. Mas quando eu soube do seu nome, foi nela que fui... Ah Madá... Imaginava-a com qualquer tipo de vida, com qualquer homem, menos com meu algoz de infância...
- Pois é... Irônico destino né... – concluo.
“Os Tartarugas” ali restantes nada falaram. Cada um ficou com sua lembrança, cada um com sua maquininha projetando imagens, cheiros, gostos, gols... A grande graça de chegar a uma formatura, a graduar-se médico, especializar-se em algo, é você olhar pra trás e perceber que houve um passado. E saber que tudo na vida é uma etapa e que é necessário galgar cada degrau dela. Reunir aqueles cinco fazia-me um bem quase que ególatra. Mas eu sabia que não era um bem só meu: no fundo cada um deles sente-se feliz em saber um do outro, de ver sucessos e chorar fracassos, estar de mãos estendidas pra qualquer ajuda e lágrimas no rosto por todas as glórias... Biscoito guarda a foto no bolso da camisa e dá uma batidinha, como se confirmando que nossa infância estivesse em seu coração. E quando aquele símbolo é escondido do atual instante, aí sabemos que é a hora de cada um se levantar, o amanhã será mais um hoje e o hoje não podia parar... Todos se levantam, alguns tontos de recordação e cerveja, e cumprimentam-se. Unânime também são os parabéns dados ao Dicó, o Doutor Alberto... Recebo-os com carinho e prometo ligação o mais breve possível. E então fico só.
É quando minha esposa se aproxima. Dá-me um beijo na testa e logo outro na boca, bem de leve...
- Então aquele é o famoso “Os Tartarugas”...
- Já lhe disse que te amo hoje, Rita Madalena ?!
Lembro-me então duma frase de Camus que ouvi um dia: “O conhecimento da alma humana passa por um campo de futebol”. Acho que ele estava com toda a razão

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