quinta-feira, 18 de outubro de 2012

NÁDYAH




Lixo, lixo... Um depósito de bostas fedidas. Naquele pútrido lugar encontravam-se a galera do basy. Alguns estavam envoluindo para o pó, outros já se picavam. Nádyah só tinha 13 anos.
    “E aí, puta ?!”, era Roxanne, sua melhor amiga e um ano mais velha.
    “Oi...”, diz Nádyah.
    “Vai vender este diskman ?!”
    “Vou tentar fazer rolo...”
    “O Truta tá aí. Tenta lá...”
     Roxanne segurava já um toco final de  baseado. Ainda não parecia doidona. Nádyah segue o caminho, procurando a rodinha onde encontraria o avião.
    “Oi, Truta !”, diz.
    “E aí, mina...”
    “Ói, toma aí. Vamo fazer rolo...”
    Truta segura o diskman, analisa-o.
    “Tá meio velhinho, né...”
    “Tem uns dois anos só. Deve valer uns quase 200 paus...”
    “200 reais ?! Por isto ?!”
    “Poxa, tem MP3...”
    “Sei não...”
    “Pô, libera aí...Vá, não seja mal...”
    “Tu é uma gracinha, viu ?! Teu nome é como mesmo ?!”
    “Nádyah...”
    “O verdadeiro ?!”
    “É. Só adicionei um Y e coloquei um H no final...”
    “Tu é virgem ?!”
    “Pra que tu quer saber ?!”
    “Sei lá... Quantos anos você tem ?!”
    “14...”, mente.
    “Parece menos...”. Nádyah quase não tinha peito, apesar do bom formato de sua bunda.
    “Sim, vai rolar ?!”
    “O quê ?!”
    “O rolo...”
    “Depende. Tu quer o quê ?!”
    “Cocaína.”
    “Coca, já ?! Tu começou cedo...”
    “Tô começando... Vai Truta, troca aí...”
    “Vamo analisar bem. Esta merda aqui não vale 200 conto não...”
    “Mas vai dar prum pouco de pó ?!”
    “Quase nada. Só pra ficar de bode, querendo mais e mais...”
    Nádyah coça a nuca. Era bonita, tinha um grande olhos azuis. Naturais, sempre realçava. Desde pequena tinha em seus olhos a sua marca personalizada. Usava o cabelo ao estilo joãozinho, desses curtinho e picotados na franja. Nascera morena, virara castanho e agora usava uma tintura verde. Tinha piercing nos lábios e no umbigo. Carregava sempre consigo uma mochila, e dentro da mochila um urso de pelúcia, tão velho de suas infâncias.
    “Poxa, Truta, não dá pra rolar nada mesmo ?!”, conversa. Estava ainda na fase do aparelho dentário.
    “Na real é o seguinte: Mina, eu te libero o quanto de pó tu quiser. Mas vai ter que ter a compensação...”
    “Compensação ?!”
    “Tu é muito gatinha, sabia ?!”
    Nádyah dá um passo pra trás. Olha-o fixamente, masca um interminável chiclete. Prestou atenção na cintura do camarada. Um três-oitão, cromado, reluzente feito estrela.
    “Então, tu não me respondeu...”, diz Truta.
    “Responder o quê ?!”
    “Se tu é virgem ou não...”
    “Se eu for, ganho o quê ?!”, disse isto num misto de insinuação e medo.
    Truta ri. A garota percebe o amarelado daqueles dentes. Eram repugnantes, haviam cáries claramente visíveis. Ele alisa a barba, parece ter um milhão de olhares para aquele dorso tão frágil, um bibelô parnasiano. Não pensou desta maneira, a definiria com um meigo palavrão, um dito qualquer que envolvesse sacanagem com lirismo.
    “Sempre sonhei com uma mina feito tu...”, disse.
    Nádyah o pega pelo braço.
    “Não vai ser aqui, né ?!”, diz.
    “Óbvio...”, adorava dizer esta palavra, “...Tenho um bangalô aqui próximo. Vem...”
    “Tu não disse o que ganho se eu for cabaço...”
    “O dobro do que você ganhará se não for...”
    Deixou-se conduzir por aqueles braços. Percebeu que havia neles tatuagens envelhecidas, cor de alga, um esqueleto com uma espada cravada, típica de presidiário. Sentiu pavor. Entrou num Vectra do ano, perderia ali a sua virgindade.
   
    Nádyah não tinha mãe. Ou não considerava ter: a sua havia abandonado o lar quando a menina tinha uns 10 anos. Três dias depois, o pai é encontrado morto. Suicídio, uma overdose de cocaína e vodka. A menina foi então morar com uns tios. Aos 12, cansada dos abusos que recebia do tio, resolveu fugir. Morou uns dias na rua, conheceu Roxanne e a maconha. Por determinação da justiça, voltou para a casa de seus parentes. Continua morando lá, mas agora sabia se defender. Tinha comprado um canivete suíço, jurou um dia matar toda aquela família. Descobriu que a mãe vivia com vários homens. O pai fora um fracassado escritor, que no começo escrevia poesia marginal, mas por necessidade econômica, se dedicava aos folhetins românticos que tinham no título nomenclatura de mulher. Abandonou a escola, acordava pela tarde e vivia como um vampiro que absorve a noite.
    “Um dia também mato minha mãe...”, jurava Nádyah, brincando com seu canivete.
    “Matar mãe é pecado...”, argumenta Roxanne.
    “Aquela vadia matou meu pai...”
    “Teu pai não se matou ?!”
    “Foi, mas foi por causa dela...”
    Roxanne ficou quieta. Sabia que seu lar não era um exemplo de candura.
    “Ontem eu dei pro Truta...”, diz Nádyah.
    “Foi ?!”
    “Foi. E foi a minha primeira vez...”
    “Jura ?! E o que tu achou ?!”
    “Doeu, não gostei.”
    “A minha primeira vez também doeu...”
    “Com quantos anos foi ?!”
    “Sei lá, acho que com 11. Foi com um namoradinho da época...”
    “Tu gostava dele ?!”
    “Tipo amor ?!”
    “Tipo qualquer coisa. Tu gostava dele ?!”
    “Mais ou menos. Acho que amar não, mas eu gostava dele um pouco...”
    As duas estavam sentadas num ponto isolado da enseada. O sol já estava se pondo, era uma bonita visão.
    “Tu ama o Truta ?!”, diz Roxanne enquanto enrola um baseado.
    “Sei não. Quer dizer, não, não...”
    Roxanne põe o fumo no papel, amassa bem e passa saliva na sua extremidade. Logo o fecha e acende. Solta a primeira fumaça e diz:
    “E o que rolou ?! Por que tu deu assim pro Truta ?!”, passando o baseado.
    “Pó.”, devolvendo a bomba pra Roxanne.
    “Hã ?!”
    “Tô começando no pó. Dei pro Truta pra conseguir cocaína...”
    “E o diskman ?!”
    “Vendi por 110 conto...”
    “Quanto de pó ele te deu ?!”
    “Uns vinte papelotes.”
    Ficaram ali, vendo o pôr-do-sol e fumando maconha. O local era uma enorme pedra, um ponto de drogas e prostituição.
    “Tá vendo esta minha camisa do Judas Priest ?!”, começa Roxanne.
    “Tou...”
    “Foi ele que me deu ?!”
    “O da primeira vez ?!”
    “É. Ele sabia que eu curto a banda e a gente já tava de rolo há uns tempos...”
    “Quantos anos ele tinha ?!”
    “Uns 30...”
    “E cadê ele agora ?!”
    “Tá morto ! Ele era da boca, foi morto num tiroteio com a polícia...”
    Nádyah põe a já pequena bagana na boca. Seus dedos viviam pretos, talvez por isso usava luvas ás vezes.
    “Como tu imagina que é Deus ?!”, indaga.
    “Ai, já tá doidona é ?!”, Roxanne ri de seu comentário.
    “Tu nunca se imaginou como é Deus não ?!”
    “Ah, sei lá... Acho que nunca.”
    “Pois quando eu era pequena, na aula de catecismo, eu vivia perguntando como era Deus...”
    “E o que te respondiam ?!”
    “Aquelas patavinas de criança: Um senhor gordo, de longa cabeleira e barba de nuvem...”
    “Que viagem...”
    “Eu acho que Deus é um daqueles nerds, deste de filme, que estão sempre de calculadora na mão e nunca é chamado pra dançar com as meninas...”
    “Eu tenho um tesão imenso pela imagem de Jesus...”
    Nádyah ensaia uma risada. Logo pergunta:
    “O do crucifixo ?!”
    “É. Ele tá quase nu, é uma delícia...”
    “E tu ainda me fala de pecado...”
    “Tesão é pecado ?!”
    “Sei não. Mas acho que você deveria respeitar os ícones religiosos...”
    “E tu respeita Deus ao criar aquela imagem dele ?!”
    “É, tu tem razão.”
    “Mudando de assunto: Nádyah, tu devia ter cuidado com esses papelotes. Se a polícia te pega...”
    “Tu tá certa.Vou dar um jeito de guardar lá em casa...”
    Fumaram e cheiraram até o mediar da noite. Naquela despedida, Roxanne quis beijá-la, ela não estava disposta. Tinha mania de beijá-la na boca. Gostava, mas preferia os garotos. Voltou para casa, mas o clima lá estava bravo: mas uma vez o tio chegara bêbado, agredira a mulher e xingou os filhos. Quis mexer com Nádyah; esta, porém, esquivou-se. Foi para o seu quarto e guardou os sacolés de coca numa caixa de sapatos, pondo-a depois acima do armário. Saiu novamente, não havia clima ou paz naquele lugar. Tinha um dinheiro, encontrou amigos e comprou duas garrafas de Montilla. Beberam no centro da cidade, numa praça habitada, noturnamente, por moradores de rua e cheiradores de cola. Logo Roxanne chega, trazia consigo um amigo:
    “Oi, Nády ! Este aqui é o Marinho, um brother meu...”
    Não se levantou nem ofertou o rosto para cumprimentos. Apenas estendeu a mão e ofereceu um gole da garrafa.
    “Aqui só se bebe, é ?!”, pergunta. Logo tira uma espécie de maço dos bolsos. “Das boas, querem ?!”
    Nádyah prepara um baseado e ambos trocam olhares. Marinho aparentava ter uns 22, mas tinha somente 18. Era alto e bastante forte, tinha cabelo comprido e barba por fazer. Olhos bastante azuis, destacavam em seu rosto.
    “Temos algo em comum...”, diz Nádyah.
    Marinho entende:
    “É !... Nossos filhos iam ser bonitos, concorda ?!”
    Ela concorda com um sorriso. Falaram sobre Mutantes e malabares. Discutiram política e um pouco de cinema. Deram beijos lascivos durante a noite, cheiraram muito, Marinho propôs e eles quebraram orelhões e vidraças. Nádyah acordou na cama dele, numa pequena quitinete, usando uma blusa xadrez que não era dela. Deu sorrisos bobos e acendeu um Malboro que encontrou numa escrivaninha. Olhou o metrô que passava pela janela, viu também jovens e velhos trabalhadores, ele dormia de boca aberta, parecendo ter asma. Roncava baixinho, quase discretamente. Ouvia-se, ao longe, senhoras cantarolando canções de rádio. Novamente olhou pela janela e concentrou-se num urubu que sobrevivia de carniças urbanas. O cigarro terminou, Nádyah jogava as cinzas num criado-mudo vizinho. Pensou em acordar seu amante, contudo foi à geladeira e lá só encontrou um talo de brócolis já murcho e um vaso com pouca água. Bebeu um pouco e procurou mais cigarros. Vestiu-se, pôs sua mochila e saiu.
    Pegou um ônibus até o apartamento de Roxanne. Esta morava junto com a mãe e uma avó meio esclerosada. O pai a muito não se sabia notícias. Nádyah toca a campainha. Quem atende é a própria Roxanne.
    “Ué, cadê a tua mãe ?!”, pergunta Nádyah, logo entrando no recinto.
    “Sei lá. Acordei agora...”
    “Tá fazendo o quê ?!”
    “Tou bebendo leite. Quer ?!”, e oferece a caixinha.
    Nádyah pega e dá uma golada forte. Diz:
    “Fiquei com o Marinho ontem...”
    “É, eu vi...”
    “A gente foi pro ap dele...”
    “Foi é ?!”
    “Foi...”, devolve a caixa pra Roxanne.
    “E como foi lá ?!”
    “Ah, sei lá... Tava muito doidona. Mas eu gostei...”
    Roxanne põe a caixa numa mesa. Abre a geladeira.
    “Vou fazer um sanduba...”, propõe, “...Tá afim ?!”
    Nádyah afirma com a cabeça e senta numa cadeira.
    “O Marinho é tão gato. Você já reparou naqueles olhos ?! O quê que é aquilo ?!”
    “Tu usou camisinha, né ?!”
    “Moça, sei não...”
    “Nády, nem brinca com isto. O Marinho não é um parceiro tão confiável assim...”
   A menina fica quieta, concentrada no preparar dos sanduíches. Brinca com um anel de seu dedo, põe a mochila no colo de suas pernas, então fala:
    “Ai, não bota pepino no meu não...”
    “Tu tá apaixonada ?!”
    “Como ?!”
    “Perguntei se tu tá apaixonada.”
    “Não sei. O que é estar apaixonada ?!”
    Roxanne olhou para o vazio. Respirou fundo e começou:
    “Amoroso palor meu rosto inunda,
     Mórbida languidez me banha os olhos,
     Ardem sem sono as pálpebras doridas,
     Convulsivo tremor meu corpo vibra:
     Quanto sofro por ti ! nas longas noites
     Adoeço de amor e de desejos
     E nos meus sonhos desmaiando passa
     A imagem voluptuosa da ventura...
     Eu sinto-a de paixão encher a brisa,
     Embalsamar a noite e o céu sem nuvens,
     E ela mesma suave descorando
     Os alvacentos véus soltar do colo,
     Cheirosas flores desparzir sorrindo
                  Da mágica cintura
     Sinto na fronte pétalas de flores,
     Sinto-as nos lábios e de amor suspiro
     Mas flores e perfumes embriagam,
     E no fogo da febre, e em meu delírio
     Embebem na minh’alma enamora
                Delicioso veneno. (...)”
    “Nossa, que bonito !”
    “É Álvares de Azevedo. Adoro ele. Sabe como é, né... Minha mãe é professora de Literatura e aí fica fácil gostar de poesia. Posso pôr mostarda ?!”
    Nádyah sai do seu estado torpe e responde:
    “Não, não...”
    “Eu só recitei uma parte do poema.”
    “Tu sabe ela toda ?!”
    “Sei.”
    “Então recita ela pra mim...”
    Roxanne continua o poema, preparou o lanche, comeram e saíram.

    Os meses passaram. Muito rápido para cabeça de todos. Primaveras e verões costumam ter um longo sol. Mas pra quem vivia da noite, o dia encurtara mais do que o costume. Os papelotes terminaram, Nádyah ficou outras vezes com Marinho. Queriam casar. O vício crescia, a garota achava que aquele moço era muito pobre para saciar-lhe as vontades de cheirar unzinho... Fumavam maconha no apartamento dele. Nádyah completou 14 anos vomitando misturas intragáveis.
    “Ei, Nády!”, grita de longe Roxanne.
    Nádyah estava com Marinho. Faz um aceno com as mãos.
    “Oi casal !”
    “Olá !”, ambos dizem.
    “Não agüentei mais: fugi de casa...”
    “Queria eu ter a sua sorte...”, diz Nádyah.
    “E por que tu não vem morar comigo ?!”, propõe Marinho, “Meu ap tem espaço...”
    “Tu não tem dinheiro pra se manter, imagina com mais uma boca pra comer... Além disto meus tios nunca deixariam...”
    “E por quê ?!”
    “Já fugi uma vez. Eles botaram a polícia na mira. Daí não deu... Tive até que visitar uma assistente social.”
    “Comigo não vai ter nada disto...”, Roxanne rodopia em torno de si mesma, “... Minha mãe tá dando é graças a Deus por eu ter abandonado aquela pocilga !”
    “Roxanne, posso conversa contigo num canto ?!”
    “Já entendi. Vou deixá-las em paz...”, diz Marinho, se afastando.
    Então Nádyah puxa a outra garota pelo braço. Sentam-se num banco distante do rapaz.
    “Tô encafifada com um negócio aí...”, começa.
    “Com o quê ?!”
    “Minha menstruação... tá atrasada...”
    “Não brinca, Nády...”
    “Eu não tou brincando ! Olha pra minhas mãos...”, e mostra-as, “Tremendo...”
    “Tu fez exame ?”
    “Ainda não...”
    “Pode de ser nervosismo...”
    “Será ?! Tomara...”
    “Olha, eu já ouvi dizer que Regulador Xavier resolve problema de atraso...”
    Nádyah fica quieta. Então mexe na sua mochila e pega uma carteira de cigarros. Oferece um para Roxanne, que aceita. Não falam mais nada, apenas observam que Marinho conversa com um cara.
    “Nády, tu pode contar comigo pra qualquer coisa, viu ?!”
    As duas se abraçam. Os rapazes aproximam-se.
    “Este aqui é o D2...”, diz Marinho, “...um chapa meu...”
    D2 dá beijinhos nas duas e cumprimenta-as.
    “A mais pequena é minha...”
    “Pequena, eu ?!”, pergunta Nádyah, “Vai te fuder !”
    “Calma, gatinha ! Olha vai rolar um show maneiro lá no Casebre...”
    “No Casebre ?! Já fui lá, é sinistro...”, diz Roxanne,já trocando olhares com D2.    
    “Pois é...”, interfere Marinho, “...O D2 tem como descolar as entradas. Vamos ?!”
    “Quem vai tocar lá ?!”, pergunta Roxanne.
    “Vai ter Pin-Up de Puta, Garrafão Dom Bosco, SKA & Blues...”
    “Caramba, vai ter Pin-Up de Puta ?! Conheço esta banda. Eles fazem um som parecido com o Velvet Underground, né ?!”, admira-se Roxanne.
    “É. E tou vendo que você curte Judas Priest, né ?!”, diz D2 olhando para a blusa da menina.
    “Sim, galerinha, vamos ?!”, pergunta Nádyah.
    Dirigiram-se para um Fusca estacionado por perto.
    “Garotas, apresento a vocês o meu possante...”, grita D2.
    “Muito gracinha !”, dizem as meninas, entre risos, ao mesmo tempo.
    Entram no carro. Há um desconfortável aperto oriundo de um emaranhado de disco amontoados no passageiro.
    “Nossa, quanto vinil !”, diz Nádyah.
    “Ossos do ofício... Eu sou DJ.”, responde D2.
    “DJ D2...Muito cacofônico.”, fala Roxanne.
    Ele não diz nada. Apenas sorri. A garota percebe seu sorriso pelo retrovisor. E observa o piercing que há entre seus dentes. Finge então vasculhar o montante de discos.
    “Caraca, você tem o Never Mind the Bollocks, dos Pistols !”, diz Roxanne.
    “Pois é. Rarão, né ?!”, responde D2.
    “O D2 tem de tudo...”, argumenta Marinho, “...alguém quer cigarro ?!”
    “Tu tem o melhor do rock´n´roll. Olha só, Nády: The Stooges, Led Zeppelin, The Who... até o Pet Sounds do Beach Boys tá aqui !”
    Nádyah não entendia nada daquilo. Estava com enxaqueca e um pouco preocupada com o seu atraso menstrual. Mas concordou com a cabeça, como se afirmasse ter encontrado uma verdadeira mina de ouro.
    “Você parece muito especial, Roxanne. Uma guria na sua idade conhecer tanto assim de música é difícil de conhecer...”, e D2 dá um novo sorriso que novamente foi notado pela garota através do retrovisor.
    “E ainda conhece poesia...”, adicionou Nádyah.
    “Não brinca ?!”
    “Mas é verdade. Um dia destes mesmo ela me recitou um lindo ! De quem era mesmo, hein ?!”, pergunta direcionando-se para Roxanne.
    Logo D2 interrompe o que seria a resposta :
    “Eu também curto poesia. Até decorei um daqueles que eu mais gosto: Poema dos olhos da amada, de Vinicius...”
    Sem pedidos, D2 começa a recitá-lo:
    “Oh, minha amada, que olhos os teus !
      São cais noturnos cheios de adeus.
      São docas mansas trilhando luzes,
      Que brilham longe, longe nos breus !

      Oh, minha amada, que olhos os teus !
      Quantos mistérios nos olhos teus !
      Quantos saveiros, quantos navios !
      Quantos naufrágios nos olhos teus !

      Oh, minha amada de olhos ateus !
      Cria a esperança
      Nos olhos meus
      Quem dera um dia quisesse Deus...
      De verem  um dia, o olhar mendigo
      Da poesia nos olhos teus !

      Oh, minha amada, que olhos os teus !
    Os olhares se cruzavam pelo retrovisor. Dos olhos de Roxanne rolavam lágrimas.

    A festa bombou e ainda não teve fim: assim como era o concebível, claro  que Roxanne e D2 iriam ficar. Compraram algumas garrafas de vodkas e foram para o apartamento dele. Marinho e Nádyah também os acompanhavam. Enquanto o primeiro casal foram para o quarto principal, o outro se estabeleciam num sofá rasgado.
    Bem que Marinho tentou:
    “O que você tem, Nády ?!”
    “Nada, tenho nada não...”
    “E então ?!”
    “Então o quê ?!”
    “Tu parece nervosa...”
    “Tou não...”
    “Pode ser franca comigo...”
    “Ai, Marinho, me deixa !”, e tenta se afastar dele.
    “Tu tá estranha mesmo...”, cometa o rapaz. 
    “É que eu to com uns medo aí...”
    “Medo ?! Do quê ?!”
    “Marinho, tu não vai me abandonar por nada neste mundo, né ?!”
    “Como ?!”
    “Promete que tu nunca vai me deixar.”
    “Pra quê isto agora ?!”
    Havia dengo na voz de Nádyah, apenas uma criança pedindo um abrigo de braços:
    “Vai, caralho, promete !”
    “Tá, eu prometo. Mas pra quê tudo isto agora ?!”
    “Pra nada. Me abraça ?!”
    E se abraçaram.

    “Bosta, caguei ! Tou fudida, ai meu Deus...”, bradava Nádyah segurando um pedaço amassado de papel. Nem precisava Roxanne perguntar pelo resultado. Esta apenas a abraçou, querendo consolá-la:
    “Calma, Nády !”, não sabia o que mais dizer.
    Continuava no abraço, sentia úmido os ombros coberto pela jaqueta jeans. Segurou o rosto de Nádyah.
    “Pare de chorar, puta !”, disse, “Tudo vai se resolver...”
    “Se resolver ?! Como ?!”
    “Sei lá. Minha vó sempre diz que pra tudo há solução. Fica calma que tudo vai dar certo...”
    “Roxanne, eu só tenho 14 anos !”
    “Eu sei...”
    “E tô grávida !”
    “Também sei disto.”
    “Ai, como eu vou contar pro Marinho ?!”, e escondeu o rosto sob os ombros da amiga.
    Foi preciso dois sucos do Mc’Donalds para acalmá-la. Já mais tranqüila, Nádyah pensava no que fazer.
    “Caramba, eu não tenho família, não tenho casa...”, disse.
    “Tu tem casa sim !”, corta Roxanne.
    “Não tenho ! Pra aquela casa imunda eu não volto nunca mais...”
    “E por quê tu não mora com o Marinho ?!”
    “Eu ainda não contei pra ele...”
    “Vocês praticamente moram juntos, caraca !”
    “É. Mas como ele vai agir quando souber ?!”
    “Tu só vai saber se contar...”
    Nádyah então observa um casal de passarinhos que pousam na janela da grande multinacional. Lembrou-se do quanto o pai gostava de pássaros, principalmente os urbanos. Achava-os graciosos justamente por sobreviver na grande cidade, cantar mediante os barulhos de fábricas e fumaças de automóveis. O divago pensamento é guilhotinado pela voz de Roxanne:
    “Ou então tu pode tirar...”
    “Aborto ?!”
    “Conheço umas clínicas que...”
    “Não !”, saiu como grito a negação, “Não vou matar alguém que nem pediu pra nascer. Não é justo deixá-la morrer assim. Aborto não !”
    “Tu é que sabe...”
    Emudeceram por instantes. Roxanne então quebra o silêncio:
    “E tu vai fazer o quê ?!”
    “Ainda não sei. Pombas, é tudo muito complicado...”
    “E você vai contar quando pro Marinho ?”
    “Sei não, Roxanne, sei não...”
    “Mas tu vai ter que contar. Ou quer segurar a barra sozinha ?!”
    “Não, não quero. Olha, vamos sair... Tô a fim de fumar unzinho...”
    “Tu já vai aplicar maconha nesta criança ? Não vai ser prejudicial ?!”
    “Que se foda esta criança !”
    Pagaram e saíram.

    “Marinho, tô precisando bater um lero contigo...”, Nádyah parecia nervosa.
    “Que foi, gata ?!”
    “É que tá acontecendo umas coisas aí comigo...”
    “E o que é ?!”
    “É algo que diz respeito a nós dois...”
    “Ah, eu também tô envolvido nisto ?!”
    “Inteiramente...”
    “Tu tá me assustando, Nády...”
    “Tu nem imagina como eu tô...”
    Marinho aproximou-se de Nádyah. Esta se encontrava sentada num velho sofá. Estavam na casa do rapaz.
    “Tu tá tão linda, gatinha...”, disse-lhe afagando seus cabelos, “...Tá deixando o cabelo crescer ?!”
    “É ! Cansei de cabelo curto.”
    “Teus olhos são lindos, tão azuis...”
    “Tô grávida...”
    “Como ?!”
    “Eu tô esperando um neném...”, expressou infantilmente.
    Marinho calou-se.
    “Tu tá bravo ?!”, pergunta Nádyah.
    “Hein ?!”
    “Perguntei se tu tá bravo...”
    “Bravo ?! Não, não... Só tô estranho. Faz quanto tempo ?!”
    “Umas semanas. Três, acho...”
    “Já dá pra ver barriga ?!”
    “Ainda não, tá cedo. Tu não tá com raiva ?!”
    “Já lhe disse que não...”
    “Tu não vai pedir pra tirar ?!”
    “Não...”, e pega no queixo dela, “...Nunca pediria isto.”
    “Eu tô tontinha ! Parece um louco sonho, destes que você acorda e agarra seu ursinho de pelúcia e aí cochila melhor...”
    “Tu precisa descansar, tirar repouso, dá uns tempos no pó...”
    “O que tu vai fazer ?!”
    “Fazer ?!”
    “Sim. A gente precisa alimentar a criança, né ?!”
    “Vou arranjar um emprego, sei lá...”
    “Ai, por que isto agora ?!”, disse lacrimejando.
    “Nády, eu te adoro. Se você quiser, a gente casa...”
    “Não precisa. Só te quero perto... Vai ser barra tomar conta de um bacuri...”
    “Bacuri ?!”
    “É como meu pai me chamava quando muito pequena. Ele era gaúcho...”
    “Pois eu vou ter muito orgulho de ter um bacuri...”
    “Ai, quanto alívio sinto por te ouvir falar assim...”
    “Ele vai ser lindo. Com esses nossos olhos azulados, não tem como fugir...”

    Passaram alguns meses. Nádyah vivia na casa de Marinho. Sua barriga ganhava contornos da gravidez. De vez em quando a alisava. Fumava uns bagulhos enquanto Marinho não estava perto. Da cocaína deu um tempo. Nestas épocas deu-se a recordar sonhos de infância. Era dia de chuva, ralinha e calma. Ligou a TV para não se sentir só. Desejou a presença de Roxanne. Esta não demorou em chegar. Bateu forte na porta, entrou aflita. Nádyah estranhou:
    “O que foi, puta ?!”
    “Ai, Nády !”, e abraçou-a.
    “Roxanne, que tu tem ?! Parece nervosa...”
    “A barriga tá enorme...”
    “É, né ?! Nem parece que só tem cinco meses...”
    “O tempo voou mesmo...”. Roxanne caminhava de um lado a outro, acendeu um cigarro.
    “Roxanne, que tu tem ?! Foi o D2 ?!”
    “Que D2 ! A gente já não tá faz um tempo...”
    “Então o que é ?!”
    “Ah, não adianta esconder ! Tu vai saber de qualquer jeito...”
    “Tu tá me deixando enervada. Que é que eu tenho que saber ?!”
    “Nády, tu tem que ter forças...”
    “Forças ?!”
    “Temo pelo bebê...”
    “Me conta, Roxanne ! Que foi ?!”
    Roxanne dá uma longa tragada e logo joga a guimba num cinzeiro.
    “Vai, me conta logo !”, pede Nádyah em clamor.
    “O Marinho...”
    “Que houve com o Marinho ?!”
    “Ele,ele...”
    “Diz ! O que houve com o Marinho ?!”
    “Ele... Ele caiu do viaduto...”
    “Como é ?!”
    “Sabe aquele viaduto perto da praça da bagana ?!”
    “Sei, sei...”
    “Pois então. Eu tava lá com uma galera, fumando... Aí o Marinho apareceu, dizendo uns papos estranhos...”
    “Papos estranhos ?!”
    “Não dizia coisa com coisa. Parecia chapadão...”
    “Ele tá procurando emprego...”
    “Foi o que ele disse. Falou que tava difícil de achar e aí... Ai, meu Deus, nem gosto de lembrar !”
    “Cadê ele ?! Onde é que ele tá ?! Ele tá bem ?!”
    “Fica calma. Ele, ele...”
    “Me diz...”
    “O Marinho se matou !”
    “Não, não pode ser ! Ele disse que não ia me deixar nesta barra sozinha, não pode ser...”
    “Ele foi até o viaduto, subiu nele e se jogou... Foi tão rápido, não deu pra fazer nada...”
    Nádyah abraçou Roxanne em seguida.

    Foi com dor que Nádyah segurou a gravidez. Por diversas vezes pensou em fazer o mesmo que o Marinho. Como segurar sozinha fardo tão grande como este ?! Mas a expectativa de um bebê, a vida que tanto lhe afagara no fundo de seu ventre, era motriz de sua atual sobrevivência. E nestas horas Roxanne mostrava-se a grande irmã que era. Segurava a barra, sentia-se unida ao útero em flor, devia manter aquela criança em vida. E nasceu um rebento lindo, com os olhos tão azulados da profecia de Marinho.
    “Tu tá certa do que vai fazer mesmo ?!”, pergunta Roxanne.
    “Nunca estive. Vai ser o melhor para mim e para o bebê...”, responde Nádyah.
    “Então é o que lhe desejo é boa sorte, minha amiga...”
    Seria a última vez que se viam.

    Nádyah chega ao pútrido prédio. Conferiu o papel, era mesmo o lugar.
    Subiu as escadas, terceiro andar. Respirou fundo, olhou para o filho e bateu na porta. Um grito de “já vai”. Aberta a porta, as duas se olham. Pareciam estrangeiras uma da outra.
    “Fátima ?!”
    “Nádyah, mãe ! Meu novo nome é Nádyah !”, disse, frisando uma terceira vez o nome.
    Convite para entrar. Nádyah observa com desdém o lugar, tão pobre quanto a fachada do prédio. Várias garrafas vazias numa mesa, guimbas recentes de cigarro, um nauseante ar, mister de vários vapores.
    “A criança ?! É tua ?!”, pergunta a mãe.
    “É...”
    “Tão linda...”, aproximando-se do pequeno, “...Posso segurar ?!”
    Nádyah entrega a criança aos colos da mãe. Achava irônico estar de volta ao lado de uma pessoa em que só criou ódio. Seus laços eram tão distantes, achava não reconhecer nela a figura materna. Mas fora dela que herdara os olhos azuis que agora iluminavam o rosto de sua filha.
    “Qual o nome ?!”, pergunta a mãe.
    “Hã ?!”
    “Perguntei pelo nome da menina...”
    “Não sei...”
    “Como não sabe ?! Você nunca a registrou ?!”
    “Foi pra isto mesmo que eu a trouxe aqui...”
    “Peraí, segura ela...”
    A criança volta aos braços de Nádyah. A mãe, então, senta num sofá e acende um cigarro. Logo diz:
    “Não entendi. Você disse o quê mesmo ?!”
    Nádyah caminha em círculos, parecendo querer ninar para o bebê. Esta, aliás, alvo de seus olhares. Respira e responde:
    “Mãe, tu sabe que nossa relação não é das melhores desde a morte do papai...”
    “Isso é porque você quer. Oh, Fátima, tu não sabe o quanto me dói...”
    “Olha, te considero como minha geradora, mas eu ainda te sinto extremo...extremo...”
    “Ódio...”
    “Não, ódio não...”
    “Ódio sim !”, grita, “Tu me odeia, assuma !”
    “Talvez...”
    “Tu não se conforma com a morte de seu pai...”
    Nádyah nada diz.
    “Tu ainda acha que eu fui culpada, né ?!”
    Nádyah continua calada. Olha para sua cria por diversas vezes, como se quisesse comunicação só com ela. A mãe continua:
    “Fátima...”
    “Meu nome é Nádyah, por favor !”
    “Tá ! Então tu veio aqui só pra me ofender, foi ?!”
    “Na verdade, não. Tu não sabe o quanto está sendo doído vir aqui... Eu quero um favor teu.”
    “Favor ?!”, pergunta baforando fumaça, “Se for dinheiro, vou logo te dizendo que eu tô dura e...”
    “Não é dinheiro...”, faz pausa. Então olha pela enésima vez para o ser de seu colo. Lágrimas brotam feito rosas. Brinca um pouco com a criança, chamando-a de dinda, danda ou coisa assim.
    “Sim, e o quê é ?!”, pergunta a mãe, levantando impacientemente.
    “Vou tentar lhe falar com calma. Eu me envolvi com um carinha aí e engravidei. Ele parecia bastante feliz com a chegada do bebê e tudo parecia bem. Ele tava desempregado e ralava pra buscar um trocado para nosso sustento. Eu tava até vivendo no ap dele. Aí um dia, sei lá o que deu nele, mas ele se matou...”
    “Se matou ?!”, e acende um novo cigarro.
    “Foi ! E tá barra segurar isto tudo sozinha...”
    “Tu tá querendo vir morar aqui ?!”
    “Eu tô querendo seguir meus sonhos !”
    “Sonhos ?!”
    “Sonhos ! É o sonho que carrega o homem, assim dizia meu pai. Vou buscar a felicidade seguindo meus sonhos mais guardados. Faz tempo que me vejo enquanto criança de cinco ou seis anos e fascino-me com o que sonhava e nunca tive coragem de buscá-los...”
    “E o que eu tenho haver com isto ?!”
    “Esta criança vai ser um eterno engodo pra mim. Principalmente sem a figura do pai. Não tenho-lhe o menor amor. As vezes acho que ela é mais uma boneca que ganhei na vida...”
    “E tu quer que eu...”
    “Eu quero que você crie ela...”
    “Mas, mas...”
    Nádyah olha para criança novamente. Arrependeu-se, espontaneamente, de ter dito não ter-lhe amor. Sentia amor sim por aquela pequena criatura, um amor nublado, escondido em raivas e nas tragédias da vida. Amou-a como se a destruísse dentro dela, amor canibalesco, comer para morrer. Sabia que seus sonhos dependiam do desagrego mãe-filho. Divido mãe e espírito, sua moral era a concretização de seus desejos. Nunca havia lido um Nietzsche, mas com certeza o seguia naquela fase. A mãe se levanta, termina um cigarro. Caminha até a janela, abaixa a cabeça e xinga uma oração qualquer. Diz algo cheio de sublimação, um sussurro vil, uma palavra que engasga, uma decisão...
    “Eu não te pediria se não fosse importante...”, diz Nádyah.
    “Tu vai fazer o quê da vida ?!”
    “A felicidade, minha mãe... Será que não posso ser feliz ?! Não tenho este direito mais que humano ?!”
    “E tua felicidade depende da separação de sua filha ?!”
    “Esta menina está carregada de Marinho. Não quero lembrar do Marinho ! Pensar nele é atravancar-me !”
    “E se tu se arrepender ?!”
    “Arrependimentos fazem partes da vida. Não amo esta criança...”, mentiu novamente, “Quero livrar-me dela !”, começo de um choro agonizante.
    “Pensa bem no seu ato, filha ! Uma mãe em arrependimentos é o maior dos desvarios...”
    “Te peço este favor, minha mãe. É o último. Pense nela como se eu fosse. Dê uma nova chance a ti mesma: redima-se dos erros cometidos comigo e crie esta menina como se eu nunca tivesse existido...”
    Uma nova pausa. Nádyah respira como se um fantasma lhe fosse arrancado das vísceras.
    “Eu não vivo com parceiro fixo...”, comenta a mãe.
    “Não me importo como que você faz...”
    “Alguns me pagam para fazer sexo com eles...”
    “Já disse que não me importo !”
    “Eu uso drogas. Me pico as vezes...”
    “Tô te pedindo um favor do coração !”, berra, “Eu poderia ter deixado com a Roxanne. Ela até quis, mas acho que a criança neste momento atrapalharia demais a vida dela. Se tu não pegar ela, vou ter que fazer besteiras...”
    “Não, não ! Tá, eu dou um jeito. Como você disse, esta menina pode ser meu consolo quanto à você...”
    Nádyah entrega-lhe o bebê. Diz tudo com olhares, dois azuis que se completam. A criança dorme, tão inocente dos tramites havidos ali. Nádyah despede-se dela em silêncio, diz tudo somente em afagos.
    “Posso botar o seu nome nela ?!”, pergunta a mãe.
    “Qual ?!”
    “Nádyah. Talvez renasça uma nova Nádyah. Ou aquela Fátima que um dia carreguei cantarolando meiguices de dormir...”
    E Nádyah despediu-se, saiu e não olhou para trás.

    Nádyah pensou em trapezistas. Era o seu sonho: voar, equilibrar-se no ar, bailarina dádiva, olhares concentrados na figura que borboletiza a lona tão ausente de cores... Sentada na estação, espera um trem que ao longe se aproxima. Começa ali um sonho, seus olhos azuis que buscavam apenas a brecha para a felicidade mais sorridente. 

(2007)

Um comentário:

Jôse disse...

lágrimas molharam meus olhos,uma grande tristeza é o abandono.
texto bem criado.
Prendeu minha atenção.