quinta-feira, 12 de junho de 2008

TEXTO CABOCLO

Ser tão homem, tão demasiado humano, tão húmus, tão ser... Ser tão chão, tão cão, a vida insípida, a carne frágil e a alma forte, do corte facão, reluzente lâmina, couro, juá, umburana, angico, gameleira, barriguda, aroeira... Do espinho do xiquexique, da semente do licuri, do embrião em que se nasce e embriaga, sumo da jurema... Da carcaça carcará, assobio sem fim da caetana que adentra o coração, ronco do trovão, da barriga por comer... Chuva de estrela como num reisado mítico, chuva que deveras falta, noite-lua em faísca sem igual. Ser tão Severino, Maria, Sinhá Vitória, menino Jesus, ser tão sertanejo, da raiz e da enxada, do pião ou canção de lavadeira... No tear que teça o destino, o tino, o hino no louvor das ladainhas, no som mudo da sua miudeza, a força da esperança, olhos negros pro céu sem nuvens, nem sonhos, mas cheio de invocações. Ser tão umbuzeiro, ser tão macaxeira, ser tão quixabeira, ser tão parte de uma arte chamada vida, na sua chamada lânguida, em coro, num coral, oráculo, orar... Ser tão sertão.
Apresento-me caboclo, amorenado, neguinho, sarará, galeguinho do olho azul, Hércules-Quasímodo, herói errante na sua busca pelo que viver, pelo que lutar. No canto da patativa, no encanto do Patativa: “Sertão, arguém te cantô/ Eu sempre tenho cantando/ E ainda cantando tô (...) E vejo qui os teus mistero/ Ninguém sabe decifrá./ A tua beleza é tanta,/ qui o poeta canta, canta/ E inda fica o qui cantá...”. Sertão hibrido, cheio de seus mistérios, uma fogueira que arde no céu – rei sol que adentra nosso corpo vil, dorso forte, barba por fazer... Apresento-me cicerone de sua guarda, mostro-me às carniças que devoram monstros, sou pálido, esquálido, mas ainda tenho braço e gana. Busco este sertão adormecido no meu ente, o núcleo-duro do ventre do âmago, coisa minha que me faz tão regionalista, tão areia, tão pó, tão sertão... E manifesto este ego labiríntico na expressão de meus punhos que empurram meus instantes, meus cotidianos, histórias de minha avó. Sou arte brasileira que exaspera desconhecida, sou o limbo escondido que desvela no voto pro coronel, sou aquele olho que incha d’água, o pé solado da lama incandescente e inexistente, sou a paz da cotovia que anuncia mais uma chuva, mais um oráculo, mais uma centelha chamada esperança... No caminho vermelho em que piso, restará a lágrima que sustentará meu amanhã...

(2007)

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