sexta-feira, 29 de fevereiro de 2008

O DESTINO E O TRAJETO

Pras coisas feitas pelo coração...

Ele – Está chovendo em sua rua. No tédio de não querer sair de sua cama, solta um bocejo maçante e logo se vira pro lado. Vê as horas no rádio-relógio, quinze pras nove... Pensa no que fará pela manhã e constatando nada de tão interessante, logo aproveita pra tirar mais alguns minutos de sono. Sua mãe abre a porta do quarto e, adentrando-o, grita perguntando se o “menino” iria ou não estudar pro concurso público vindouro... Ele já tem 27, um diploma de graduação e preguiça nas células.

Ela – Também chove em sua rua, mas com menos intensidade. Já acordada desde cedo, fizera seu cooper mesmo num tempo tão implausível para tal e diante a mesa do café da manhã, pergunta pelas horas para a mãe. “O quê ?! Quinze pras nove já ?! Estou hiper atrasada !!!”, exclama levando a boca um pequeno pedaço de pão. Calcula dez minutos pro banho, mais cinco ou seis pra se arrumar e de sua casa até a faculdade onde leciona são mais vinte ou trinta minutos, a depender do trânsito. Ela tem 27 incompletos, duas graduações, uma pós e um mestrado a caminho...

Ele – Acordou perto das onze, ouviu sermão da mãe e da irmã mais velha, defecou, escovou os dentes, tomou um café morno vendo desenhos animados na TV. Riu um pouco, ouviu sem prestar muita atenção ao discurso materno de ter maturidade e coisa e tal, levantou-se do sofá, foi para seu quarto e lá rabiscou alguma coisa. Ligou o computador, mexeu nos sites de relacionamento de sua predileção, a mãe continua sua explanação: “Esta criatura não quer nada da vida ! Só pensa em vagabundear, de beber e ficar de trololó com os amigos ! Não tem um emprego, uma namorada, nada, meu Deus, nada... Você não vê o esforço que eu e seu pai fazemos por você, menino !!! Meu Deus, meu Cristo...”. Evoca os nomes santos por duas ou três vezes, logo sai. Então ele resolve dar uma volta pra espairecer...

Ela – Chega com atraso na faculdade e logo se desculpa aos alunos. Começa a dar sua aula e tudo transcorre bem, apesar do retroprojetor ter dado um problema em uma das salas. Até o almoço ela entra em duas turmas, numa delas aplicando prova. Come uma salada verde com frango grelhado, conversa com os outros professores e lembra-se de ligar pro noivo. Tenta duas vezes, mas dá sempre ocupado. Então ela resolve tomar um cafezinho enquanto revisa as pautas duma palestra que iria apresentar para logo à tarde. Então abre sua agenda e vê que teria muito tempo até a conferência. Resolve dar um passeio, já que não teria nenhum compromisso até então. Do carro finalmente consegue falar com o noivo.

Ambos na seção de disco dum sebo - Ele observa vários discos, se interessa por um Paulinho da Viola. Logo desiste ao ver o preço. Ela também passeia por muitas capas, separa alguns de seu interesse, um Dave Brubeck, Coltrane, Fritzgerald... Ele conhece patavina de jazz. Então passa a mão em outros, se fascina com um “Acabou Chorare” de capa estragada, porém com uns escritos tolos: “Para Jane, com carinho de quem te ama, Darcy... Outubro de 72”. Pechincho-o e acabou comprando o disco por dois reais. Sentiu-se feliz, pois ainda lhe sobraram três reais pro “dogão”. Seria o seu almoço. Ela leva cinco vinis, alguns raros. Paga no cartão, pergunta as horas, dá um sorriso de agradecimento e sai sem perceber o cartaz de sua palestra no mural do lugar. Mas ele repara, lê todo o aviso e decide dar uma passadinha por lá. “Estes troços sempre dá muita gatinha...”, pensa enquanto arrota...

Ele – Caminha, pois o local da conferência é distante. Ainda há poças de água no caminho, então tenta desviá-las pra evitar levar banhos casuais. Indaga-se se comprar o cachorro quente fora a melhor escolha, pois estava sem um vintém pro ônibus. Dá uma alisada no disco comprado, tira-o da sacola plástica e confere a contracapa. Fica feliz em ver que muitas das suas músicas favoritas estão naquele álbum. Cumprimenta um conhecido, pede um cigarro e traga o que sabe. Joga-o na rua ainda em fase de pré-guimba e olha para o céu. Algumas nuvens escuras talvez denunciem tempestade. Dá um chute numa latinha, assobia prum grupo de colegiais, solta mais outro arroto e constata que a molho do lanche não lhe fizera bem...

Ela – Entra no carro e dá partida. Percebe algum barulho estranho e diz pra ela mesma que levará o carro pra revisão com brevidade. Olha a agenda, sem nem saber por quê... Guarda-a na bolsa e logo pega o celular. Disca pro noivo, diz que o ama e iria comprar vinho. Pára no sinal, nega moedas prum menino que fazia malabares, aperta botões e tenta sintonizar o rádio. Pensou em voltar a fumar, rememorou alguns trechos do que iria falar na palestra, decidiu eliminar alguns chavões do discurso, soltou um bocejo e declarou-se cansada. Então prestou atenção na meteorologia do programa de rádio que anunciava chuva pra noite. Logo depois anuncia o locutor uma música de Chico Buarque das antigas. Ela cantarola junto...

Ambos numa sala de auditório - Ele chega ao local e procura um lugar vago para sentar, de preferência ao lado de alguma garota. Ainda traz no hálito de salsicha em digestão. Acaba achando lugar perto do corredor e ao lado de um rapaz meio hippie. Diz um “putz merda” mentalmente, mas acaba se acomodando. Sente então que o lanche não lhe caíra bem. Já ela chega e vê pelo relógio do som do carro que não estava tão atrasada como imaginara. Deixa o automóvel no estacionamento, anda em direção à sala da palestra, cumprimenta alguns conhecidos e antes do cicerone do evento apresentá-la ainda dá uma olhada nas folhas que lerá para a platéia. Anunciado seu nome, ela entra e logo é saudada por uma salva de palmas. Ela agradece, todos se sentam. Ela também. Posiciona a pequena resma, pigarreia, toma um pouco de água e logo começa sua explanação. O tema da palestra é “Kierkegaard e a crise moderna da existência”. Ele boceja, ora olha pra capa do disco que comprara, ora observa o teto, vira o pescoço pra trás na expectativa de encontrar alguma bela garota. Muitas vezes se perguntou quem era Kierkegaard e que cú ele tinha a ver com aquilo. Então percebeu que a palestrante citou Sartre e Nietzsche, nomes que ele lembrava dos tempos de faculdade. Perguntou então as horas pro hippie do lado e este, meio a contragosto, lhe informara que eram quatro e treze. Calculou que ainda faltavam mais de uma hora pra terminar tudo aquilo. Ela lê toda sua palestra com entonação, sentia que pegara a prática em cada evento que se apresentava. Pulou alguns trechos que achou enfadonho para a ocasião, deu mais uma pigarreada e tomou mais um pouco da água em copo de cristal, naquelas taças de servir vinho. Enquanto passava folha a folha, parava por segundos pra observar a platéia, porém sem contemplar rosto de ninguém. Sentiu um frio estranho na alma, como se um aviso que você não dá muita atenção. Interpretou aquilo como stress, nervosismo momentaneo, algo assim... Ele abana-se com a capa do disco, solta ar pela boca, pensa em pedir um chiclete pro seu vizinho de cadeira. Tenta encarar umas duas meninas, que não lhe dão tanta atenção. Começa a achar tudo aquilo um tédio, pergunta-se o porque dele estar naquele lugar... A palestra termina, mais palmas e começa a sesssão de perguntas. Ele sai neste momento, sentindo que incomodara o hippie e o asco de seu soluço de salsicha aumentava. Ele não percebe nela, nem ela nele...

Ele – Saiu do auditório e lamentou não ter um cigarro. Olho para o céu, constatou os pingos da chuva pela palma da mão. Ainda estava fraca, talvez desse para chegar em casa de boa. Caminhou, olhou as pessoas ao redor, a chuva começou a engrossar. Protegeu-se então num toldo de botequim. Recriminou-se por não ter um tostão prum trago.

Ela – Após a sessão de perguntas, ainda conversou com outros palestrantes, mas nada tão intimista que durasse uma hora ou mais. Pegou suas coisas que estavam numa sala a parte, observou o celular e viu que não havia nenhuma chamada recebida. Deu uma respirada, ajeitou o cabelo pelo espelho encontrado no trajeto, chegou no carro e constatou a chuva, esta que a molhou um pouco. Riu pois lembrou de suas infâncias, ligou o carro e consequentemente o rádio. Cumprimentou e pagou o flanelinha, colocou os óculos escuros e partiu. A chuva engrossara e ela disparou o pára-brisa.

Ele – E então vê aproximar-se um carro. Resolve acenar para pedir carona...

Ela – Percebe alguém pedindo carona. Não é de confiar, mas sentiu que neste caso deveria ir contrária aos seius princípios. Parou...

Ambos no carro dela – Finalmente se perceberam. Ela pergunta pra onde ele vai, o próprio então indica. “Não é tão longe...”, é o que diz a moça. Seguem em silêncio. No rádio toca outra de Chico das antigas. Ele assovia o refrão, ela nem se toca. Pára num sinal de trânsito. Ela observa o saco plástico onde ele guardava o velho disco comprado, ele nota a garrafa de vinho estrangeiro que ela comprara. Não dizem nada. Ele pigarreia, ela pensa em voltar a fumar. O carro volta a movimentar-se, curva-se, passar por poças d’água e encharcar alguns pedestres. Ele afirma “pô, que chuva...”, ela responde em onomatopéia. Mais um sinal de trânsito, um engarrafamento breve, outro um pouco mais longo, um Milton no rádio... Ele finalmente notara o quanto ela era bonita. Tinha uma fragância boa, um cabelo aloirado, sardas na região do nariz. Não pode ver a cor de seus olhos porque ela estava de óculos escuros, mas imaginou-o esverdeados. O carro tinha cheiro de novo, o asco do lanche comido antes voltava incessantemente. No rádio rola “Endless Love” e ele lembra logo de suas primeiras namoradas. Ela também lembrou-se dos amores passados, um em especial, o primeiro... Foi neste momento que percebera o rapaz em ínicio. Acho os olhos dele parecido com os do namorado lembrado. Deu um riso disfarçado. “Por aqui tá bom...”, ele diz. Ela pára o carro e ele desce agradecendo.

Ela – Com um riso de lado, ela lamenta a música ter terminado. Lembrar do namorado de infância e ver oos olhos do desconhecido e nele achar semelhança com o primeiro mencionado foi algo revigorante. O celular toca, ela atende e ouve do noivo palavras românticas. Ela diz que também o ama e que dentro de algumas horas chegaria no apartamento dele com o vinho prometido. Desligou o aparelho, colocou-o na bolsa, olhou-se pelo retrovisor e achou-se bonita. Os olhos do desconhecido lhe veio a mente. Não se ligou muito ao pensamento, a hora em que chega ao apê do noivo...

Ele – Resolveu descer a poucos metros de sua casa, a chuva cessara. Imitou equilibrista andando pelo meio-fio da calçada, chutou uma poça, viu dois cachorros molhados e, sem querer, assoviou novamente “Endless Love”. Então encontra uns amigos que o chama pruma cerveja. Ele diz estar sem grana, mas aceita de gratidão o convite dos conhecidos. Após dois copos relembrou-se da moça que lhe ofertara carona, achando-a finalmente bonita.

Nenhum comentário: